segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P371: CCAÇ 2636 (Bafatá, 1970/71) (6): Mimos do PAIGC em Mansomine


Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > O João Varanda, junto à sede do BCAÇ 2856, "frente à casa da Dona Rosa Libanesa"...

Acrescente-se que o "café das libanesas" era, juntamente com o Restaurante "A Transmontana", um dos sítios mais populares na nossa época (CCAÇ 12, 1969/71), constituindo um verdadeiro porto de abrigo para quem vinha do mato...

© João Varanda (2005)

"À porta do célebre café das libanesas, filhas da D. Rosa. Sou amigo pessoal do filho, ex-ten. cor. paraquedista, que mora cá, em Portugal, em Linda-A-Velha, e também amigo de infância de um dos genros dela que mora aqui em Lisboa, e com o qual, por acaso, já tenho tido relações profissionais".

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 1996 >

O Humberto Reis, "à porta do célebre café das libanesas, filhas da D. Rosa". Acrescenta o autor: "Sou amigo pessoal do filho, ex-tenente coronel paraquedista, que mora cá, em Portugal, em Linda A Velha, e também amigo de infância de um dos genros dela que mora aqui em Lisboa, e com o qual, por acaso, já tenho tido relações profissionais".

© Humberto Reis (2005)

Texto do João Varanda (ex- furriel miliciano, CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71).


SECTOR DO CAOP - 2

A CCAÇ 2636 através da nota nº. 1107 de 2 de Abril de 1970 do Comando de Agrupamento Leste foi transferida para o Sector de Bafatá, ficando agregados, para efeitos administrativos, alojamento e alimentação, dois grupos de combate e os especialistas ao BCAÇ 2856. Os outros dois grupos de combate, para o mesmo efeito, ficaram agregados ao EREC [Esquadrão de Reconhecimento] 2640.

A CCAÇ 2636 ficou de intervenção ao Agrupamento Leste (que engloba 5 sectores), tendo dois grupos de combate, sido destacados para os destacamentos fronteiriços de Ualicunda e Sare Uale em 9 e 17 de Março de 1970, respectivamente. Os outros dois grupos de combate estacionados em Bafatá continuariam na actividade operacional, ora entrando em operações ora montando emboscadas.

Manteve-se assim o carácter permanente operacional. Assim, e no cumprimento da missão a que ficamos vinculados, iniciamos a actividade operacional com horário de vinte e quatro sob vinte e quatro horas.


OPERAÇÃO FAREJA MELHOR > 19-21 de Março de 1970

Tratou-se de um simples treino operacional, a fim de adaptar os grupos de combate àquelas andanças, contudo, também nos avisaram, que deveríamos ir atentos, pois que na Guiné, até dentro do quartel se corria perigo. Ainda que esse quartel se situasse em Bafatá.

Era fim de tarde, cerca das 19.30 horas, quando partimos de Bafatá para Fá Mandinga (sede leste da 1.ª Companhia dos Comandos Africanos ), localidade a cerca de cinquenta quilómetros de Bafatá.

O transporte foi feito em viaturas auto (Berliets) e cada uma levou vinte e quatro homens armados e equipados. O trajecto fez-se depressa. Não demoramos duas horas. Uma vez chegados, iniciamos a marcha em direcção ao local do “objectivo”, um simples patrulhamento com montagem de emboscada.

Seguimos por uma picada abandonada. Havia muito tempo que as viaturas do exército tinham deixado de a utilizar por causa das minas. No entanto, nós caminhamos por ela, sujeitando-nos a levar com uma mina pela frente. Felizmente não existiam, o que foi uma sorte, já que, de noite, não havia a mínima possibilidade de as detectar.

- Para treino operacional, é muito arriscado! - dizia o cabo António Alves de Medeiros (Machinho), um camarada que possuía já uma certa prática de guerra.
– O que vale é não irmos na frente! - retorqui eu – E segundo creio não será tanto o azar que iremos pôr os pés fora do local, onde os outros já pisaram!

A noite estava muito escura e nós progredimos agarrados uns aos outros para não nos perdermos. Um pequeno descuido e a coluna partir-se-ia e depois não haveria outro remédio senão esperar que o novo dia nascesse para nos voltarmos a encontrar. O sono começava a atormentar-me.

Caminhávamos há várias horas, ora avançando, ora parando. As esperas eram demasiado curtas para nos sentarmos, enquanto as progressões não passavam, por vezes, de mais de uma centena de metros, seguidos de nova paragem. Esta maneira de avançar era muito mais cansativa do que a progressão contínua e chegava a ser irritante.

Trás! … Bato com a cabeça nas costas do furriel Paiva e acordo. Vinha a dormir de pé. Nunca me passara pela mente que tal fosse possível. Agora, contudo, tinha tirado a prova. Mais uma que tenho para contar quando chegar à Metrópole, um episódio em que, muito possivelmente, ninguém vai acreditar. Se … chegar!

(...) A primeira fase da operação foi o patrulhamento à península sul com cambança em Temato – Manssomine – Sissau. Sem vestígios de passagem há quatro ou cinco dias de dezenas de elementos que se dirigiam a Noroeste. Nossas tropas pernoitaram emboscadas na região cota 17 bolanha de Dembel Jule. Amanheceu, com centenas de macacos – cães, fazendo uma algazarra tremenda e caminhando pela copa das árvores em saltos gigantescos. Nunca tinha visto macacos daquela raça.

Eram bichos enormes. Alguns quase do tamanho de homens e com os caninos desenvolvidos, semelhantes aos dos cães. Não pareciam nada felizes com aquela intromissão nos seus domínios, o que levou alguém do grupo a comentar ironicamente:
- Bolas, nem os macacos gostam de nós! …

Saímos da picada para um caminho de pé-posto, trilho muito batido. Via-se perfeitamente que passavam por ali, dezenas de pessoas por dia. Fiquei apreensivo porque, à partida nos tinham, dito que aquela zona era desabitada. E preocupado, indaguei do alferes Martins Ferreira.

– Ouça, meu alferes! O que pensa destes sinais? Serão da população, ou dos turras?
– Olha pá, tanto podem ser da população que a carta assinala lá mais para a frente, de guerrilheiros armados, ou ainda das duas coisas ao mesmo tempo. Aqui na Guiné não se sabe bem quem é guerrilheiro, nem quem não é, portanto o que tens a fazer é ires preparado para tudo. – E acrescentou:
- O seguro morreu de velho, não achas! … O kápa!
– Entendido.

A caminhada continuou em silêncio ainda por mais de meia hora até que o Comandante da Companhia, capitão Manuel Medina e Matos, mandou fazer alto e sair do trilho.

Íamos montar a enboscada a Dembel Jule. Afastámo-nos cerca de vinte metros da picada, ficando paralelos a esta. Fizemos uma zona de morte de mais de trezentos metros que reforçámos com um dispositivo de armadilhas eléctricas à base de granadas de mão, defensivas, e minas M 7. Estas eram accionadas por um “explosor”, logo que alguém se aproximava da nossa posição. Findo este trabalho que não levou mais de alguns minutos, recolhemos à mata e ficamos a aguardando.

(...) O calor começara a fazer-se sentir, já estávamos a 20 de Março / 70, segundo dia da operação e às 10.00 horas era quase insuportável, mesmo debaixo das árvores, o que, aliado ao cansaço produziu os seus efeitos. A tarde, mais de dois terços dos grupos de encontravam-se a dormir.

De repente em Dembel Jule, no fim do trilho avistámos três elementos inimigos, dois armados não reagiram fugiram em direcção ao rio, um no cimo de uma palmeira (Chefe de tabanca de Manssomine), controlada pelo PAIGC, foi capturado enquanto extraía vinho de palma.

A captura deste elemento só por si deu-nos saldo positivo desta operação, embora ficassemos paralisados pela surpresa, ao mesmo tempo completamente amedontrados.

Sem perder tempo continuamos a operação, patrulhando vários trilhos na região sul de Dembel Jule, na mata marginal direcção norte até cota 13 para 19, sem vestígios foi onde decidimos fazer uma refeição de ração de combate, para depois pernoitarmos.

Na manhã de 21 de Março de 1970 acordámos cedo, ao som de “costureirinhas” (PPSH) num matraquear infernal. Os projécteis cortavam ramos de árvore por cima das nossas cabeças ou ricocheteavam, levantando terra, ali mesmo na frente dos nossos olhos.

Nunca nos víramos num assado daqueles, era a hora da vingança do PAIGC. Todavia reagimos rápido e corri para detrás de um baga – baga que por sorte, se erguia ali perto. O suor escorria-me pela cara e sentia como que um aperto na garganta e no peito, à altura do coração.

A fogachada não parava e nem sequer diminuía de intensidade. Apontei a minha espingarda G - 3 para o local de onde me pareciam vir os disparos e carreguei no gatilho. A arma saltou-se nas mãos como se tivesse vida própria e três segundos depois, tinha esvaziado o carregador. O primeiro da guerra do leste, numa guerra em que eu ainda pensava ser a minha. Foram trinta e cinco minutos, debaixo de fogo ininterrupto, em que nenhum de nós conseguiu levantar a cabeça.

Do lado dos guerrilheiros do PAIGC chegava-nos uma algazarra tremenda. Chamavam-nos nomes e alguns nada abonatórios. Entre eles, havia alguém que, em bom português, nos insultava:
- Vão para a vossa terra, filhos da puta!...Enquanto andam aqui na guerra, as vossas mulheres, andam em Lisboa a fornicar com quem lhes apetece! …

Do nosso lado o Comandante da Companhia, sem sair detrás do enorme baga – baga, incitava ao ataque:
- Para a frente! Nós somos os melhores!...Agarrem-nos à mão, agarrem-nos à mão! Pago uma grade de cervejas a quem me trouxer um!

A resposta não se fez esperar. Alguém de entre nós gritou:
- Apanha-o tu, meu herói de merda!... De heróis mortos está o inferno cheio! … O capitão ficou pior que uma barata, mas, ao tentar indagar quem fora o engraçadinho, chocou com uma muralha de rostos fechados. Estávamos todos de acordo com o nosso camarada.

O fogo guerrilheiro acabou. De um momento para o outro, nem mais um tiro, e a mata voltou a mergulhar no mais absoluto silêncio. Parecia que nada se havia passado. Entretanto na Companhia, ia um verdadeiro pandemónio. Era difícil entender como nos deixamos surpreender daquele modo, estando emboscados, portanto com todas as vantagens do nosso lado. Fora um erro gravíssimo e, ao mesmo tempo estúpido, que nos custou caro e nos podia ter custado muito pior.

No chão, dois feridos bastantes graves, contorciam-se com dores e gemiam baixinho enquanto um enfermeiro lhes prestava os primeiros socorros.

Um com um tiro nas costas que só por milagre não lerpou. A bala atingira-o de raspão, passando-lhe por debaixo das costelas sem lhe atingir os pulmões, e saindo pelo ombro abrindo um enorme buraco.

O outro levara um tiro na mão direita e ficou com alguns dedos esfacelados. Ficaria deficiente para o resto da vida. A recuperação dos feridos tornara-se impossível de helicóptero, seria difícil aterrar no meio da mata, extremamente cerrada. Só restava uma solução. Regressar a Fá Mandinga com os feridos e de lá enviá-los de ambulância para o Hospital de Bafatá. Mas ao iniciar a marcha, novos problemas surgiram.

Faltava a secção do furriel Monteiro e os seus homens evaporaram-se sem deixar rasto.
Ficamos trespassados pela surpresa. Os nossos pensamentos eram unânimes naquele momento: - O furriel Monteiro deixara-se certamente apanhar pelos turras, com todos os seus homens. Que grande bronca! Como é que fora possível?

Ninguém se lembrava de o ter visto durante o combate, portanto devia ter sido aprisionado logo no início. Mas sendo assim, porque é que nem sequer gritara? …Entretanto o furriel Monteiro encontrava-se perdido na mata, com meia dúzia de homens. Não foram apanhados.

Fugiram simplesmente ao ouvir os primeiros tiros, abandonando o pelotão e levando atrás de si todos os homens sob o seu comando, pois estes ao ver o chefe cavar, não pensaram duas vezes e piraram-se com ele. O Comandante da Companhia estava resolvido a partir. Não podíamos ficar ali eternamente à espera, com dois feridos perdendo sangue, que enfraqueciam de momento a momento. Até Fá Mandinga eram mais de vinte quilómetros que teríamos de fazer a passo de tartaruga. O furriel Monteiro, conseguira estabelecer contacto rádio connosco. Ao ouvir a sua voz, através do emissor T.H.C. – 736, um suspiro de alivio.

Faltava agora que ele se juntasse a nós o que, numa situação de escuridão como aquela e sem qualquer ponto de referência, era pelo menos muito difícil.

Optámos pela maneira que nos pareceu mais fácil: disparámos espaçadamente alguns tiros para o ar, a fim de se poder orientar para a nossa posição.

Demorou mais de uma hora a chegar e com ele trazia outra vítima: O cabo Lagoa que, com o susto, perdera completamente a fala, que só passados mais de quatro meses recuperou. Esta fuga de um graduado da Companhia, logo na primeira operação na zona leste, deixou-nos muito desanimados e levou alguns de nós a pensar se, com homens assim, algum dia ganharíamos a guerra. Com a Companhia completa, iniciamos finalmente a marcha no regresso à bolanha de Sissau, cambança de Manssomine. Marcha penosa e lenta, pois um dos feridos teve de ser transportado às costas durante quase todo o caminho.

Demos por terminada a operação quando chegamos a Fá Mandinga cerca das 14.30 horas, completamente arrasados de nervos e cansaço, evacuando de seguida, os feridos para o Hospital de Bafatá.

Esta operação veio demonstrar-nos que os guerrilheiros do Movimento de Libertação , o PAIGC, não eram nada do que nos tinham feito acreditar na Metrópole, durante a instrução. Que não se borravam de medo a fugir dos Combatentes do Exército Português, mas que muito pelo contrário, nos atacavam e nos venciam com a maior das facilidades.

A Op Fareja Melhor serviu para compreender, que naquela guerra, nós iríamos ser mais patos do que caçadores.

Nota: Para a história da CCAÇ 2636 esta operação mereceu os seguintes comentários do Exmº. Comandante Interino do Batalhão de Caçadores 2856.:

“ Considera-se que a operação foi bem executada e conduzida. Oo Comandante da força executante, Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Medina e Matos, evidenciou desde a fase de preparação excepcional interesse e entusiasmo pela operação e conduziu-a com nítido espírito de missão revelando larga experiência de comando de tropas em operações”.

Guiné 63/74 - P370: CCAÇ 2636 (Có, 1969/70) (5): Gastando o primeiro par de botas e as letras do alfabeto

Texto João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, Có)

Os primeiros quatros meses de actividade operacional da CCAÇ 2636 (Có, 1969/70)


No Sector do CAOP - 1

A Companhia chegou a Có em 4 de Novembro de 1969, tendo no dia seguinte participado na protecção aos trabalhos em curso na estrada Có-Pelundo, ao lado da CCAÇ 2584, já com alguma experiência.

A protecção aos trabalhos de estrada (intitulada Operação Via Livre), para além do desgaste físico, exigia às tropas empenhadas longas progressões a pé, quilómetros de picagem. Teve contudo um aspecto altamente positivo: a familiarização com a mata e com a técnica de pesquisa de engenhos explosivos, pelo processo da picagem.

Viu-se, assim, a Companhia empenhada nos trabalhos de estrada sob um horário rigoroso: saída às 5,00 horas da manh, chegada por volta das 14,00 horas com reflexos inevitáveis no regime alimentar pela quase sobreposição das suas refeições básicas diárias.

Passado algum tempo a Companhia com alguma experiência de mato, entrou na actividade propriamente dita (Operações de contra – penetração)


Em 1969

Operação Via Livre – Início em 5 de Novembro de 1969 – Duração 1 dia.

Finalidade - Evitar que o IN fizesse investidas contra os trabalhadores e consequentemente atrasar os trabalhos de estrada.

Devido ao adiantado dos trabalhos e para protecção das máquinas de Engenharia esta CCAÇ, conforme a progressão dos trabalhos, embarracou em Tel e mais tarde em Dimpel.

Esta Operação foi constituída pelas seguintes acções:

Valongo - Protecção trabalhos de capinagem estrada Có - Bula, região Ponta Valentim – Plama. Início às 5,30 horas da manhã do dia 5 de Novembro de 1969. Resultado: Sem contacto

Velhice - Idem, região Plama. Início 5,30 horas da manhã do dia 6 de Novembro de 1969. Resultado: Sem contacto

Vigarizar - Protecção trabalhos de capinagem na estrada Có – Pelundo, região Plataforma. Início 5,30 horas da manhã do dia 7 de Novembro de 1969.
Resultado: Sem contacto

Vírgula - Protecção aos trabalhos de capinagem na estrada Có – Bula, região Plama – Bieio . Início 5,30 horas da manhã do dia 8 de Novembro de 1969.
Resultado: sem contacto

Vintém - Protecção aos trabalhos de capinagem na estrada Có - Pelundo região 4,5 km a Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 9 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vantagem - Segurança afastada aos trabalhos de capinagem na estrada Có – Pelundo, cruzamento estrada velha com estrada nova. Início 2,00 horas da manhã do dia 11 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Viscoso - Protecção aos trabalhos de capinagem na estrada Có – Pelundo, região cerca de 0,5 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas do dia 11 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vitrola - Idem, região 5,600 km. Oeste de Có. Início 5,30 do dia 12 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto

Vitrina - idem, região cerca de 6,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 12 de Novembro de 1969.
Resultado: sem contacto

Valéria - Idem, região cerca de 6,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 13 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Valete - Segurança afastada aos trabalhos de capinagem no cruzamento da estrada velha com estrada nova. Início 2,00 horas da manhã do dia 13 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto

Virgem - Patrulha e emboscada nas tabancas: Bedasse – Bejimate – Cassama – Cantintanha e Utanque. Início 2,00 da manhã do dia 13 de Novembro de 1969.
Resultado: sem contacto

Varsóvia - Segurança afastada aos trabalhos de capinagem região de Tel, região cerca de 2,00 km. Sudoeste de Catora. Início 2,00 horas da manhã do dia 14 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto

Valente - Protecção aos trabalhos de capinagem na estrada Có – Pelundo, região cerca de 6,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 14 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto

Viena - Patrulha e emboscada na região cerca de 3,00 km. Nordeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 14 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vácuo - Segurança afastada aos trabalhos de capinagem na região a cerca de 11,00 km. Oeste de Có. Início 2,00 horas da manhã do dia 15 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vacina – Protecção dos trabalhos de capinagem na estrada Có – Pelundo, região cerca de 8,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 15 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vagão - Segurança afastada região de Tel a cerca de 1,5 km. A Sudoeste de Catora. Início 2,00 horas da manhã do dia 16 de Novembro de 1969.
Resultado: Sem contato

Vagabundo - Protecção trabalhos de capinagem estrada Có – Pelundo região cerca de 6,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 16 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Valgio - Patrulha nocturna na região a cerca de 2,00 km. Nordeste de Có. Início 19,30 horas da noite do dia 16 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Valioso - Segurança afastada aos trabalhos de capinagem região cerca de 10,00 km. Oeste de Có. Início 2,00 horas da manhã do dia 17 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Valido - Protecção trabalhos de capinagem estrada Có – Pelundo região cerca de 6,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 17 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vicente - Protecção descontínua cerca de 4,00 km. Nordeste de Catora, região de Tel. Início 3,00 horas da manhã do dia 18 de Novembro de 1969.
Resultado: sem contacto.

Violino - Protecção aos trabalhos de capinagem estrada Có – Pelundo e picada pedreira de Tel, região cerca de 8,00 km. Oeste de Có. Início 5,30 horas da manhã do dia 18 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vocação - Patrulha e emboscada região Calonque. Início 5.30 horas da manhã 30 de Novembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vitreo - Patrulha e emboscada região cerca de 4,00 km. Norte de Catora (Quedanga). Início 5,30 horas do dia 1 de Dezembro de 1969. Resultado: sem contacto.

Vitelo - Patrulha e emboscada região Quete e Dulequene. Início 5,30 horas da manhã do dia 2 de dezembro de 1969. Resultado: sem contacto

... A rotina da actividade operacional lá continuou ao longo do mês de Dezembro, sem contacto nem vestígios do IN:

Vitelo (2), Verruga (3), Vagoneta (4), Vagem (4), Vapor (9), Varal (11), Varandas (12), Via Livre 25 (13), Vareira (14) , Varina (20), Varredoura (24)...

E em 1970, a CCAÇ continuou o seu suplício de Sísifo, com mais patrulhas e emboscadas, em acções sempre designadas, obsessivamente, por termos começados por V:

Vaselina - Patrulha e emboscada região de Tel. Início 6,00 horas do dia 1 de Janeiro de 1970.
Resultado: sem contacto.

Vassalagem- Patrulha e emboscada região de Tel. Início 6.00 horas da manhã do dia 3 de Janeiro de 1970. Resultado: sem contacto.

Vaticano - Patrulha região Pelundo 4B8. Início 5,30 horas do dia 4 de Janeiro de 1970.
Resultado: sem contacto


Intercalada com a protecção da estrada, viu-se a CCAÇ 2636 empenhada em operações de contra penetração:

Operação Dália Velha

– Realizada em 9, 10 e 11 de Janeiro de 1970.

Comandante Capitão Miliciano de Infantaria: Manuel Medina e Matos.

Finalidade: Bater toda a Península de Quedanga – Pieme, procurando detectar e aniquilar quaisquer elementos IN na região.

Evolução da Acção: A força iniciou a progressão para o ponto de referência 309, inflectiu para o ponto 306, iniciando uma batida para Norte (área de Quedanga) onde emboscou os trilhos que dão acesso à mesma.

A força caminhou para o ponto de referência 307, onde se encontrou um acampamento IN, já destruído pelas NT na região de Pelundo 5F – 6 – 63 junto à bolanha. Depois de ter pernoitado no referido ponto, a força caminhou para o ponto de referência 309, deste para o 308 onde detectou um acampamento IN, com 13 palhotas e abandonado no máximo há 3 dias, na região Pelundo 5 – G5 – 65.

Iniciada a busca foram encontrados diversos documentos, utensílios vários e 125 cartuchos de 9 m/m escondidos nos ramos das palmeiras. Depois da busca feita, a força iniciou a progressão para o ponto de referência 311 e daí para a base em Dimpel em fim de missão sem contacto.

Depois da operação realizada esta mereceu as seguintes considerações feitas pelo Exmº. Comandante das Forças Territoriais de Có:

"A operação foi bem dirigida, cumprindo-se o planeamento anteriormente estabelecido".
Também mereceu as seguintes considerações do Exmº. Comandante do CAOP 1:

"Não se oferecem comentários ao planeamento e à execução da operação. O Comandante da força conduziu a acção com determinação e tenacidade cumprindo o planeamento e explorando os indícios detectados".

Mas as acções continuaram em Janeiro de 1970: Veículo (13), Verbo (19), Velhaco (20), Velhinha (20), Veneno (24), Venera (26), Venida (27), Verbena (30)... E em Fevereiro: Verdugo (4), Vermute (10), Verniz (11), Vertical (14), Vertigem (19), Vegetal (21), Vespa (21)...

Entretanto, parece que se esgotou a letra V e recorreu-se à úlima do alfabeto, o Z:

Zelar - Protecção aos trabalhos de reparação de bolanha em Ponta Luís Cabral. Início 7,00 horas da manhã do dia 25 de Fevereiro de 1970.

Apenas na acção Velhaco (Patrulha com emboscada na região da Peconha – Bacar, com início pelas 4,30 horas da manhã do dia 20 de Janeiro de 1970) houve um contacto ligeiro com o inimigo: em sinal de registo da nossa passagem, o IN saudou-nos com uma rajada de costureirinha... Agradecemos e ripostamos com umas boas morteiradas de morteiro 60.

Operação Incrível Almadense

Realizada em 22, 23 e 24 de Janeiro de 1970.

Comandante – Manuel Medina e Matos – Capitão Miliciano de Infantaria.

Finalidade: Bater toda a Península de Quedanga – Pieme, procurando detectar e anular quaisquer elementos inimigos que se revelem e destruir todos os meios de vida.
Evolução da Acção: A força iniciou a progressão em 22 de Janeiro de 1970 às 4,00 horas da manhã em direcção ao ponto de referência 306. Eram 11,00 horas quando foi detectado o acampamento inimigo assaltado pelas NT. na operação “Cesário Verde” (C.Caç. 2584). Foi passada uma rápida busca durante a qual foram detectados 5 buracos cobertos onde estavam enterrados elementos inimigos. Mais tarde a força emboscou o trilho Quedanga – Pieme. No dia seguinte caminhou para os pontos de referência 307,308, e 309 e daí para a base de Có em fim de missão sem contacto.

Após esta operação a mesma mereceu as seguintes considerações do Comandante das forças territoriais de Có:

“Operação bem dirigida “. Notou-se a preocupação de reconhecer antigos acampamentos, na procura de novos indícios de presença do inimigo.

Nota: Esta operação deu-nos um gozo especial, já que eramos periquitos atrevidos, pois no ponto 307 onde encontramos um acampamento inimigo já destruído pelas nossas tropas na região de Pelundo 5F-6-63 junto à bolanha, foi local e serviu para pernoitarmos (sinal de desprezo pelas tropas do PAIGC), mas deu para perceber que o grupo inimigo era reduzido uma vez que este se encontrava entre quatro palmeiras e coberto por tarrafo e parte do nosso grupo de combate pernoitou fora daquele palco.

Operação Nunca Falha

Realizada em 30 e 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 1970.

Comandante: Manuel Medina e Matos, Capitão Miliciano de Infantaria.

Finalidade: Bater toda a Península da Peconha procurando detectar e aniquilar quaisquer elementos inimigos na região.

Evolução da acção: A força saiu de Có para o ponto de referência 337 e daí para o ponto de referência 336 (Peconha). Desta ponto (Peconha) a força saiu para o ponto 335 indo emboscar próximo à bolanha no ponto 333. Levantada a emboscada e depois de contornada a bolanha a força atingiu o ponto 331 indo pernoitar a 1 km. a Norte de Bacar. No dia seguinte a força seguiu para Bacar onde emboscou os trilhos Bacar – Peconha, Bacar – Beloi – Có e a cambança para Dulaquete.

Pelas 15,00 horas a força seguiu para Igate depois de Beloi onde emboscou. No dia seguinte pelas 6,00 da manhã a força seguiu para Có em fim de missão sem contacto.
Depois da operação realizada esta mereceu as seguintes considerações feitas pelo Exmº. Comandante das Forças Terrestes de Có:

"A operação foi bem conduzida cumprindo-se o planeamento anteriormente realizado, tendo o Comandante da CCAÇ 2636 demonstrado mais uma vez determinação e tenacidade no cumprimento da missão".


Operação Melhor Êxito

Realizada em 15, 16 e 17 de Fevereiro de 1970.

Comandante: Luís Mendes Alferes Miliciano de Infantaria.

Finalidade: Bater toda a Península da Peconha.

Evolução da acção: A força saiu de Có e dirigiu-se para o ponto de referência 329, seguiu para Bacar onde emboscou os trilhos Bacar – Peconha e Bacar – Beloi – Có.

Seguiu depois para Igate onde emboscou o trilho Igate – Peconha, no dia seguinte dirigiu-se para os pontos de referência 336,335 e 334 onde emboscou a cambança para Ponta Matar. Levantada a emboscada a força deslocou-se para Sul e em Beloi emboscou o trilho Có – Beloi – Bacar. No dia seguinte dirigiu-se para Có em fim de missão sem contacto.

Resultado: sem contacto


Operação Ovo Grande

Realizada em 25, 26 e 27 de Fevereiro de 1970.

Comandante Manuel Medina e Matos – Cap. Milº. de Infª.

Finalidade: Bater toda a Península da Peconha, procurando detectar e aniquilar quaisquer elementos Inimigos na região.

Evolução da acção: A força saiu de Có para o ponto de referência 333 onde emboscou a cambança para Ponta Matar. Depois de levantada a emboscada, a força circundou o Norte da Península, seguiu para o Sul de Bacar onde montou nova emboscada junto à bifurcação dos carreiros que vêm da Peconha e Beloi., pelas 19.00 horas a força seguiu para Igate onde pernoitou. No dia seguinte a força deslocou-se para a cambança da Peconha onde montou nova emboscada. Levantada a mesma a força progrediu até à Bolanha e contornou a Península até ao ponto de referência 329. Pelas 19.30 horas a força emboscou o carreiro Có – Beloi – Bacar e no dia seguinte pelas 6.00 horas a força dirigiu-se para o Aquartelamento de Có em fim de missão sem contacto.

A actuação da Companhia de Caçadores 2636 no Sector da AOP – 1 mereceu a seguinte citação elogiosa do Exmº. Comandante do BCAÇ 2884 transcrita na Ordem de Serviço nº. 51 de 2 de Março do BCAÇ 2884:

“Que muito me apraz distinguir todo o pessoal da C.Caç. 2636, pela disciplina, preparação militar, espírito de sacrifício e dedicação demonstrada em todas as missões, serviços e actividade operacional intensa em que foi empenhada durante a sua permanência temporária de 4 meses na zona de Có.

"Constituída por um conjunto de graduados briosos comandados por um Capitão do Quadro de Complemento, desembaraçado, muito dedicado, leal, perfeitamente enquadrado e compenetrado da missão que superiormente lhe fora determinada, a C. Caç. 2636, pelo seu aprumo militar, valor cívico e moral e muito há a esperar em novas missões em que for encarregada”. A presente citação foi considerada como sendo dada pelo CAOP – 1 na sua Ordem de Serviço nº. 8 de 21 de Março de 1970.

Assim foram passados quatro meses, onde por terra fomos a tudo quanto era sítio. Sem conta os kms. percorridos. Gastámos o primeiro par de botas, e no dia 2 Abril de 1970 partimos para nova aventura: o Sector Leste – Bafatá esperava por nós.

domingo, 18 de dezembro de 2005

Guíné 63/74 - P369: O meu Natal de 1968 em Barro (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Barro > 1968 > Aerograma > Feliz Natal...

"Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor".

Aerograma:

"Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sepre melhor que o anterior. António Manuel... Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dor é o melhor"...

© A. Marques Lopes (2005)

Guiné 63/74 - P368: O meu Natal de 1969 em Bambadincazinha (Luís Graça)


Guiné > Bambadinca > 1970 > Tabancas de Bambadincazinha onde estava instalada a Missão do Sono. Estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

© Luís Moreira (2005)(ex-alf mil da CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/71; BENG, Bissau, 1971).


Este texto foi um dos primeiros aqui publicados no nosso blogue: 7 de Dezembro de 2004 > Guiné 69/71 - IV: Um Natal Tropical.

Nessa data ainda não havia tertúlia (que se começou a partir de finais de Maio de 2005), pelo que muitos dos nossos amigos e camaradas não o devem ter lido. Nesse texto (que tem de ser lido à luz da época, já que é tirado do meu diário...), relembro o que se passava nas vésperas de Natal e Ano Novo num sector como o de Bambadinca, onde a nossa companhia (CCAÇ 12, independente e de intervenção) tinha sido colocada.

O meu primeiro Natal passado na Guiné - tinha chegado em finais de Maio, eu, o Humberto, o Levezinho, o Fernandes e os restantes camaradas tugas da CCAÇ 2590, mais tarde rebaptizada CCAÇ 12 e integrada na "nova força africana" - terá sido igual ao de tantos outros de camaradas, de milhares de camaradas, emboscados ou enfiados nas suas tocas em aquartelamentos com abrigos subterrâneos, muitos deles (Mansambo ou Guileje, por exemplo). Talvez mais triste por ser o primeiro passado num cenário de guerra, e numa guerra na qual eu procurava ser um "resistente passivo"...

1. Excertos de: História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Cap. II. 19-21.

Bamdabinca, Dezembro de 1969:

(...) a 24, 2 Gr Comb [grupos de combate] da CCAÇ 12, em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca [onde estava aquartelada a companhia], levam a efeito uma rusga (com cerco) à tabanca de Mero [aldeia balanta, junto ao Rio Geba]. Apesar de alguns indícios suspeitos, não foram detectados elementos IN [inimigo].

Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero (Op Acção Guilotina)[nome de código da operação]. Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo enquadrado por brancos que retirou para a região de Bucol, cambando o RGeba [atravesando o Rio Geba de canoa, para norte].

Por outro lado, prevendo-se a possibilidade o IN atacar os aquartelamentos das NT [nossas tropas] durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca. Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinha (em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo (1).

A 26 [de Dezembro de 1969], forças da CART 2520 [companhia de artilharia], reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12 realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).

A 30, Sua Excia. o Comandante Chefe [General António de Spínola]visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852 [comando e companhia de comando e serviços do Batalhão de Artilharia 2852], e sub-unidades adidas [a CCAÇ 12 incluída].


2. Excertos do Diário de um tuga:

Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969:

Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o cordão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal. Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina.

Mas é terrivelmnete cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

No aquartelamento, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelhos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito).

- Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe! - lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento.

E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias: "Mesmo na noite mais triste / Em tempo de servidão / Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não".

__________

(1) O Grupo de Combate ficava instalado na famosa Missão do Sono (uma estrutura sanitária, criada no âmbito do Programa de Luta contra a Doença do Sono, e na altura desactivada, presumo que em consequência da guerra). Era um edifício térreo, de tijolo de adobe, rachas de cibe e telhado de zinco (ou de colmo ?, já não me recordo). A nossa posição era mais do que conhecida pela população e pelos elementos simpatizantes do PAIGC que havia em Bambadincazinha e em Bambadinca. Em caso de ataque ao aquartelamento de Bambadinca (sede de batalhão), eramos um alvo fácil. Uma ou duas roquetadas punham-nos a todos fora de combate.

Guiné 63/74 - P367: ´'Bom festa pa tudo dgenti' ou o Natal de Bissau de 52 (Mário Dias)


Guiné-Bissau > Bissau > 2001: A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, num país em que as religiões (o Islão e o cristianismo) disputam almas e território.

© David J. Guimarães (2005)


1. Mensagem de L.G.:

Grande Mário ! És aquela máquina (não era assim que se dizia entre a rapaziada dos comandos ?). Devo dizer-te que apreciei muito o teu relato (inédito) sobre a Op Tridente, os teus longos dias na Ilha do Como. Vejo que a idade se tornou um homem sábio e ponderado.

Fico à espera da tua crítica aos escritos fantasiosos e propagandísticos que por aí circulam, de um lado (NT) e doutro (PAIGC). Dá-lhe neles!... A verdade (dos factos) acima de tudo.


2. Resposta do Mário:

Obrigado, Luis, pelas tuas palavras. É verdade que a idade nos torna mais sábios pois, como dizia a minha avó, "o diabo sabe muito não é por ser esperto; é por ser velho".

Quanto à minha prometida crítica aos relatos fantasiosos sobre a Guerra do Ultramar que por aí circulam, vou deixa-los para o início do próximo ano que já não está longe.

Não quero estragar com críticas, que terão forçosamente de ser muito contundentes e polémicas, esta época natalícia de paz e amor. ( embora, para mim, Natal seja todo o ano).

Entretanto, aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebradao o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.

Caros camaradas de tertúlia:

Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”

Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.

Mário Dias


3. O NATAL EM BISSAU, NOS TEMPOS “DO ANTIGAMENTE”

Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.

Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.

Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.

Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.

Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…

Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: ( por sinal bem afinados)

S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.


(refrão)

Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)


O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)


(repetiam o refrão)

Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:

- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.
Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:

- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?

- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)

Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.
O portador do boneco atirava:

- Kinkon, kinkon.
Respondiam os outros em coro:
- Rabada di kon.De novo o líder:
- Kinkon, Kinkon.
Resposta do coro:
- Nariz di Kon.
E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:

Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.


Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:
-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).

Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.

Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.

E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez ver as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo:

…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…


Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.

Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.

Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?

Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.
_________

(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”

(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.

(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.

Guiné 63/74 - P366: O meu Natal de 1966 no QG, em Bissau (Virgínio Briote)

O meu último Natal na Guiné, no QG. Um luxo!
vb

NATAL DE 1966,

Virgínio Briote

Uma eternidade aquele mês de Dezembro, nunca mais acabava.

Arrumações no quarto, ordem na papelada, cópias dos relatórios das operações, as centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, quem é este gajo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente, parecia um romance.

O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, pensa em mim. E uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar.

Quero estar contigo, só contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, nem sei o que devo escrever.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Uma chega, leva tudo. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis e militares, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto fica tudo.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação de medo a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, só falta um mês.

Tinha que ser, numa daquelas tardes entrou no cemitério. Foi directo à campa do Silva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que capturaram, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. Tantos trabalhos que ele e o capitão Leão tinham feito e o Silva ainda aqui está, à minha frente.

António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966. Sem flores, sem nada.

A menina Teresa? É noutro lado. Lá em baixo, aquela do meio, sim, à beira daquela palmeira. Uma tampa de mármore. “A saudade dos teus Pais e Amigos. Maria Teresa Campos Correia. Nasceu na Praia em 27 de Maio de 1947. Faleceu em Bissau em 23 de Outubro de 1966. Paz à sua alma”. Um jarro simples com flores frescas.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato.

A nova companhia de comandos andava por Tite. Raramente saíam com efectivos inferiores a dois grupos. Entretanto chegara outra companhia, de um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Manilha, quando chegar a Lisboa contacte-o.
Praticamente inexpugnável o Sul, as NT confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que só viviam dentro dos abrigos, cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, era um assunto arrumado, ouvia-se em muitas bocas.

Um Allouette mergulhou numa bolanha, na zona de Tite, não se sabia se fora atingido ou se fora um acidente. Foi montada uma autêntica batalha, daquelas que se vêem nos filmes. Fuzileiros e comandos a protegerem o heli, sob fogo cerrado. O coronel da base aérea, ele próprio a pilotar um Dakota teve que se impor para meter os páras dentro do avião. Largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo, não acreditas, Gil?

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos helis foi transportado para o local com o equipamento todo para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu, pá?

O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o leste ainda assim-assim!

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Devia estar a fazer um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.

No QG organizaram uma ceia de natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Brigadeiro incluído.

Beberam todos muito bem, alguns demais, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor novo que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, o que é que havia de ser? Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, dizia um major do cága-e-tosse voltado lá para trás!

No outro dia, corria pelas mesas da messe uma história meio esquisita. Lá para as tantas, um noctívago quando ia a entrar para o quarto, ouviu música de samba a vir da porta entreaberta de uma das vivendas. Quis dançar também, empurrou a porta e fechou-a logo. Deve ter visto mal, uns gajos todos nus a dançarem encostados uns aos outros, pode lá ser?

Se calhar o líquido que tinha nos olhos era álcool! Mas eu vi, o fulano encostado ao sicrano, o beltrano amarrado ao… Estás a ver, nem te lembras dos nomes dos gajos!

Guiné 63/4 - P365: Comandos à procura do Amílcar (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1966 > O Alf Miliciano Comando Briote eo seu grupo, prontos a entrar em acção. © Virgínio Briote (2005)

Texto do Virgínio Briote:

À PROCURA DO AMÍLCAR (1)

No quarto em Brá, o capitão Leão sentou-se numa das camas.

O Amílcar Cabral esteve até ontem no Oio em reunião de quadros, dois ou três dias.

Está a retirar, a caminho do Senegal, para os lados de Sano, presume-se. Certeza é que já passou, está a passar ou vai sair pela zona de Bigene, num dos caminhos para a fronteira.

Está tudo mobilizado na zona, Força Aérea também, todas as tropas disponíveis nos trilhos para a fronteira. Uma boa oportunidade para o apanhar, que tal?

Amanhã, às 5 no aeroporto, nos helis. Vou estar em cima no PCA.

O Alegre teve que se pôr a pé, meteu-se no jeep para Bissau à procura dos furriéis. Reunião com eles, grupo acordado, conferir o material, o costume. Pequeno-almoço na cantina às 4 e meia, grupo ao corrente dos pormenores.

Era apenas uma hipótese em mil na melhor delas e, se os encontrássemos, teríamos que contar com uma larga coluna do IN a servir de escolta.

Levantaram à hora, com a Guiné a acordar, dirigiram-se para norte, pouco mais de meia hora depois estavam próximos da fronteira, T6 a aparecerem, a brilharem ao Sol, vai estar um dia quente.

Do heli viram os trilhos, o tenente Caldas, o piloto, a dizer-lhe para escolher. Onde quer ficar, talvez ali, sim, aí mesmo, OK, vamos baixar mais.

Ouviu a comunicação com o resto da esquadrilha, preparar a formação, por cima das árvores, abrir portas, uma mão no cinto outra na arma, saltar!

Tiros dispersos para os helis, a virarem-se em formação, os T6 lentos, a picarem, fumos a sair das asas, estrondos, mais uma vez o costume, nada que não tivesse acontecido antes.

Reagrupados, correram a abrigar-se, vegetação rasteira, não tinha muito aonde. Os T6, no rádio, diziam estar um pequeno grupo para aí a um km, na direcção da fronteira, iam picar nessa direcção. Coluna por um, trilho fora, o sol em cima deles, pegadas frescas, mais nada a não ser estrondos ao longe, de vários lados.

Pouco tempo depois, o PCA num DO a comunicar que já não havia sinais de movimento, informações agora mesmo a confirmar a presença de Amílcar Cabral no Oio, e que terá passado a fronteira há já algumas horas, por outra zona, mais para leste.

Terá? E as suas instruções, quais são? De momento não pode adiantar mais nada? O que sugiro? Não, nós não, aqui de baixo a vista alcança pouco, e aí em cima vê alguma coisa? Nada? Para procurarmos aqui em baixo, onde, pode dizer? Não sabe, cá em baixo é que devemos saber, OK, terminado.

Uma conversa que já tivera antes, lembrou-se, mas com outro protagonista.

Sempre em frente, a caminho da fronteira, nem tempo tiveram para meter guias da zona, iam por ali como se estivessem a subir a Avenida da Liberdade. A boca seca, borbotos brancos de saliva nos cantos dos lábios colados, uma chuvada agora é que vinha a calhar, nem uma nuvem, um sol muito grande. Ao longe, no caminho para lá, pareceu-lhes ver uma sombra de árvores.

Gigante, arranque com a sua equipa, olho vivo, atenção. Os 5 a andar, parecia um bailado, uma eternidade! Desapareceram na mata, uns minutos. Um sinal deles, lá foi o resto do grupo abrigar-se do sol.

Uma plantação de abacaxi, a crescer meia selvagem. Cortaram o que lhes apeteceu, sentaram-se à sombra, limparam a saliva da boca com fatias cortadas com o punhal. O silêncio, um oásis!

Tinha passado pelo Bento (2) depois de jantar, as pernas doridas a pedirem descanso, mas a levarem-no para a Sé, rua acima, as luzes das janelas a apagarem-se.
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. o post anterior >Guiné 63/74 - CCCLXXXIII: O que diziam os jornais estrangeiros (1): Le Nouvel Observateur no Morès

(2) Café Bento, ou a 5ª Rep, em Bissau, onde se juntavam os militares.

Guiné 63/74 - P364: O que diziam os jornais estrangeiros (1): Le Nouvel Observateur no Morés (1966) (Luís Graça)

Gérard Chaliand: Com os Rebeldes da Guiné. Nouvelle Observateur (Paris) 13 de Julho de 1966. Notas de leitura de Virgínio Briote (ex-alferes miliciano, comando, Brá, 1865/66)

O autor começa por descrever um bombardeamento aéreo, algures no norte da Guiné, pela aviação portuguesa, com aviões americanos e alemães, o 11º num período de 12 dias e dizendo que, desta vez os portugueses iam em força porque havia uma razão: Amílcar Cabral encontrava-se naquela região.

Depois de descrever a visita de Cabral a uma aldeia da zona libertada, referindo uma concentração de 3.000 homens aclamando o dirigente do PAIGC, o jornalista prossegue:

"(...) Tudo se passou sem história. Em linha recta está-se a 80 kms de Bissau, a capital, mantida pelos portugueses que dispõem de 25.000 homens (...)..

"Em Abril de 1964, 3.000 portugueses apoiados pela aviação, não podiam, depois de 65 dias de combate, retomar a ilha do Como (1), no sul do país. Este pequeno país de 36.000 kms e de 800.000 habitantes é a zona mais activa de África (...)

"Os aviões picam antes de metralhar. Depois é o som espesso das bombas. Durante a noite um informador preveniu um dos postos portugueses da região. Os portugueses sabem certamente que o dirigente se encontra na zona. Bombardeiam com intensidade durante toda a manhã. No entanto, não haverá senão 7 mortos e 5 feridos em Djagali (2). Dissimulados num pequeno bosque - um grupo de 15 – esperamos que tudo se acalme. Muito perto fica a base de Maqué (2), onde há mais de 100 guerrilheiros. No dia da nossa chegada, depois de 40 kms de marcha, Cabral passou-os em revista. Com uniformes de caqui, correctos, quase todos calçados com sandálias de plástico – a propaganda portuguesa descreve-os nus – têm morteiros, bazucas e metralhadoras pesadas. Pertencem às FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Nas aldeias existem aldeões sem uniforme, mas armados de espingardas de modelos recentes.

"Nesta base realizou-se, durante 2 dias, a reunião dos quadros do norte do país. Uma grande casa onde a luz penetra. Duas mesas rodeadas de cadeiras de palha. Trabalha-se com magnetofone, pois evita-se assim a papelada (...).

"O acolhimento, na dezena de aldeias que visitámos, foi sempre caloroso. Numa delas ofereceram-nos nozes de cola e sal, às vezes um frango e vinho de palma. Os camponeses conhecem os combatentes pelo próprio nome; às vezes, estes últimos são até da própria aldeia. Por toda a parte os camponeses elegeram os comités do Partido: 3 homens e 2 mulheres, que estão em ligação com o comissário político que comanda cada grupo de combatentes.

“ - No tempo dos Portugueses - diz um responsável de uma aldeia - existia o trabalho forçado, o imposto, os castigos de palmatória e o chicote. Há já dois anos que nunca mais vimos Portugueses por aqui" - (...) Este ano o Partido vai fazer armazéns para o povo. Trocar-se-à o arroz e o amendoim pelos tecidos (...)".

E depois de uma entrevista com um desertor português, em que este refere a vida impossível nos estacionamentos e o mau trato dado aos soldados, o autor da reportagem aborda a assistência médica e educativa nas zonas sob controlo do PAIGC:

"Na base, dois médicos cirurgiões tratam os feridos, quando os há – havia uns 10 quando por lá passámos. A mesa de operações é rudimentar, mas os medicamentos não faltam. Enfermeiras formadas no estrangeiro, preparam por sua vez, no próprio local, jovens auxiliares. Ensina-se igualmente a ler. Duzentos alunos, rapazes e raparigas, estudam em Morés. Têm entre os 7 e os 15 anos. Divididos em secções, já todos sabem ler e escrever correctamente o português. Professores-combatentes dão-lhes 4 horas de aula por dia. Os exercícios fazem-se num quadro suspenso numa árvore. Há exames trimestrais e semestrais para transferência de secção. No bom tempo da Paz Lusitana tinham os portugueses escolarizado 2.000 crianças. Em três anos o PAIGC escolarizou 4.000, sempre a conduzir a guerra (...).

" - As razões do sucesso da nossa luta - diz Chico, comissário político do Norte - estão no facto de dois anos antes de rebentar, Cabral ter formado centenas de quadros em Conakry e de ter enviado dezenas deles para fazer o trabalho de explicação e mobilização nas aldeias. Quando começou a luta não tivemos que nos esconder dos Portugueses e dos camponeses, pois estes últimos informavam-nos sobre todos os movimentos das tropas. Depois velou-se sempre para que não surgissem atritos entre os combatentes e a população" (...).

E o artigo termina assim:

"Esta manhã, enquanto bombardeavam Djagali, os Portugueses(3) mandaram uns 50 homens de helicóptero até à zona da fronteira. Foram interceptados por combatentes do PAIGC; retrocederam, depois de algumas horas de combate, deixando vários mortos no terreno. Quando chegámos, a estrada estava livre. A estação das chuvas vai começar. Para poderem ver, os aviões descem abaixo dos 1.000 metros. É a esta altitude que os guerrilheiros já abateram 3 aparelhos no último ano. Além do mais chegaram armas pesadas.
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. a crónica do Mário Dias: pots de 15 de Dezembro > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias).

(2) Região do Oio > Jagali entre Bissorã e o Rio Cahceu. Maqué fia entre Bissorã e Olossato. Vd. mapa geral da Guiné (1961)

(3)
"O meu grupo esteve numa acção nesta zona, na data indicada. Ver a seguir aquilo que escrevi na altura (VB)": Guiné 63/74 - CCCLXXXIV: Comandos à procura do Amílcar.

sábado, 17 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P363: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Jorge Cabral)

1. Através do Humberto Reis, reencontrei o Jorge Cabral que é do nosso tempo de Guiné. Falei com ele pelo telefone, soube do crescente interesse com que ele tem acompanhado o desenvolvimento da nossa tertúlia e lido as nossas estórias...

O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).

Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...

Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!

Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...

2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?

É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.

O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:

O HELICÓPTERO

Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço

A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa

A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.

Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)

(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.

3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).


Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral

p: Quando é que assistiu à excisão?

r: Em 1969

p: Foi na Guiné Bissau?

r: Sim

p: Porque é que quis assistir?

r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.

Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.

Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!

p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?

r: Não, não! eu estava na guerra!

p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?

r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.

p: Em que condições foi feita?

r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.

p: Com que objecto?

r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.

p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.

A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.

p: Porquê?

r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.

p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?

r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.

Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.

Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.

Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.

p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...

r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”

Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.

p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.

r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...

P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?

R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.

p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?

r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.

Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.

p: A quem seria aplicada a medida?

r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.

p: Quer dizer que não estamos preparados...

r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:

"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).

"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".

(2) Sede da Associaão Apoiar:

Rua C, Lote 10, Loja 1.10 - Piso 1
Bairro da Liberdade
1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
E-mail: apoiar@mail.telepac.pt

(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.

(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Guiné 63/74 - P362: Poesia de Cabo Verde de Aguinaldo Fonseca (Jorge Santos)

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >

"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".

Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).

© Luís Graça (2005)

Selecção do nosso camarada Jorge Santos

Aguinaldo Fonseca (1)


POVO

É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.

É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.

É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.

In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960


TERRA MORTA

Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.

Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.

Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.

In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
____________

(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:

"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).

"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.

"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.

"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".

"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".

Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)

* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.

Guiné 63/74 - P361: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)



Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. 

Foto (e legenda): © Mário Dias,

Da esquerda para a direita: 

(i) sold João Firmino Martins Correia; 

(ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; 

(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; 

(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; 

(v) fur Mário F. Roseira Dias; 

(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco 

(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).


Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):


OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

III (e última) Parte

7. As abelhas

Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.

No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. 

As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 cabo-verdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.

Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.

Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.

Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.

8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN

Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:

- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! 

Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.

Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espingarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.

Voltemos então para a praia.

Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.

- Eh pá, ainda só são cinco horas.

- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.

- É isso? É para já.

Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.

Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.

Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.

Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.

Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.

Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 

  • 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 
  • 80 cartuchos 7,62; 
  • muitas munições de diversos calibres; 
  • 1 granada de mão incendiária; 
  • 1 cantil USA; 
  • catanas.

Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.

Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:

“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,

Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.


9. As vacas e o arroz

Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.

Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.

Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.

- Que desperdício!... 

 E pensava:

- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.

Coisas da guerra … sempre impiedosa.

Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).

10. Últimas operações.

Às 03h30 do dia 16 de março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.

Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.

Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.

Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.

Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23h30 do dia 20 de março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02h30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.

Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.

Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.

Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”. Foram também os últimos banhos.

No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2).

Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.


BAIXAS DE AMBOS OS LADOS

Das NT:

8 Mortos
15 Feridos


Do IN:

76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros


CONCLUSÕES

De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.

Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.

Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:

- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;

- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;

- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;

- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;

- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;

- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;

- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;

A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:

1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;

2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;

3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (mas isso, é outra história);

Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,

Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.



COMO É BOM VIVER EM PAZ!...

Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:

Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.

(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)


Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.

© Virgínio Briote (2005)


Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:

- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;

- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;

- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.

PAZ ÀS SUAS ALMAS!

Guiné 63/74 - P360: Uma aposta estúpida (Rui Esteves)

Guiné > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu.
Aqui o rio é largo e lodoso.

© Virgínio Briote (2005)


Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)

Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.

No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.

Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.

Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.

Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.

Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.

Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?

Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.

Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.

Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.

Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.

Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.

Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!

Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.

E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
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Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.

(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).

O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P359: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962) (Pepito)

Guiné > Bissau > Brá > 1965 O General Schultz (à esquerda)

© Virgínio Briote (2005)

Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)

Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.

Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços
pepito
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Comentário de L.G.:
Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
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Um conto de Natal

Noite luarenta de Dezembro …

Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.

Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.

O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.

Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».

Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.

Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.

Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.

Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.

- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.

A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.

Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…

Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

Artur Augusto Silva, 1962
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Nota de L.G.

(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)