A realização das casernas-abrigo foi a tarefa mais crucial para os homens da Companhia. Representavam para as tropas que aqui se sedeavam, um local de refúgio, e nestas pequenas 'guarnições' pernoitámos durante cerca de 10 meses, de
Foto 301 > "As estruturas metálicas (pré-fabricadas), que chegaram com as colunas. Eram as infra-estruturas de base ".
Foto 302 > "Sobre a sua parte superior, colocavam-se as traves, constituídas por cibes".
Foto 303 > "Construção do tecto. A colocação de uma espessa camada de betão, sobre um tapete metálico (chapas feitas dos bidões)".
Foto 304 > "Havia todo o cuidado na firmeza do tecto"
Foto 305 > "Visão de 2 casernas em fase terminal; falta a colocação dos blocos de pedra".
Foto 306 > "No transporte dos blocos de pedra"
Foto 307 > "Vista traseira de um abrigo"
Foto 308 > "Aspecto de uma caserna-abrigo, já finalizada"
Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.
VI Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 11 de Fevereiro de 2007.
Assunto: A generosidade de um punhado de gente jovem, onde os ecos dos seus ais de desespero e dor, não ressoavam para além da região do Forreá. Gandembel/Ponte Balana, de 9 de Maio a 4 de Agosto.
Caros companheiros Luís e restantes Tertulianos:
A época plena das chuvas aproximava-se, começava a fazer surtir os seus benéficos efeitos, o que para nós incidia muito especificamente na água que o rio Balana pudesse debitar. Este, logo que retomasse alguma capacidade de vazão, significaria que a tão ansiada água já abundaria, e as restrições ao consumo que tinham prevalecido até então, evolavam-se no tempo.
15 de Maio de 1968: o Furriel António Alves acciona uma mina A/P e é amputado de uma das pernas
Já não se tornaria necessário calcorrear o seu leito movediço, tão propício a dissimular uma qualquer armadilha. Bastava unicamente chegar-se à margem esquerda, através da picada aberta para a ligação ao destacamento de Ponte Balana, e encher os bidões com a ajuda de uma bomba manual.
E o refrigério dos nossos corpos, em copiosos banhos à fula, permitia-nos usufruir de uma incontida satisfação de prazer, ao fazer desaparecer as manchas de sujidade que se haviam incrustado durante todo esse período de permanência naqueles antros imundos, que denominei de abrigos-toupeira.
E aquele trilho para o Balana era sistematicamente o mesmo, com os 2 Unimogs a rolarem sobre o mesmo assento. A paragem e as manobras das viaturas para abastecimento faziam-se quase sempre naquele paradouro exíguo, e os homens apeados não diferiam em muito as suas pisadas. E desta conjugação, que a guerra sabe tão ardilosa e perfidamente fazer uso, a 15 de Maio, surge o horror, com o accionamento de uma mina pelo furriel António Alves, a causar ferimentos graves nas duas pernas, uma das quais viria a ser amputada.
Sendo o primeiro ferido muito grave da Companhia, a comoção do seu sofrimento enquanto o helicóptero não chegava e a desventura do próprio drama em si, que quase toda a Companhia presenciou, fez abalar os nossos mais profundos sentimentos, pois perdíamos sempre um pouco de nós mesmos. E começava a manifestar-se o pesado fardo das intolerantes e desumanas vivências de Gandembel.
Finalização das 8 casernas-abrigo e reforço da fiada de arame farpado
A briosa CART 1689 despede-se do nosso convívio, e esta sua partida deixou-nos claramente mais pobres, sós e indefesos. Em mais de um mês que nos acompanhou, até 15 de Maio [e 1968], desenvolveu um trabalho extremamente meritório, e empenhou-se forçadamente em nos acompanhar. Passou também por graves tribulações, em que perde por falecimento um furriel, alvo de um artefacto armadilhado por ela mesma, e sofre mais de uma dezena de evacuações, por ferimentos e doenças.
À minha Companhia deparava-se ainda muito trabalho a realizar, mormente no fecho da configuração octogonal do aquartelamento, com a finalização das 8 casernas-abrigo, a colocação de mais 1 fiada de arame farpado e a limpeza roçada de toda a vegetação a distender por um amplo perímetro exterior.
Cada caserna era um compartimento rectangular, de dimensões da ordem dos 15 x 3 metros, e cuja construção se apoiava em 8 estruturas metálicas em forma de um U recto invertido. Tais estruturas eram firmadas ao solo por sapatas de betão.
Na sua parte superior (tecto), a actuarem como vigas, colocavam-se um conjunto de cibes, as quais eram sobrepostas por um tapete resultante do aproveitamento de bidões. Este tapete metálico, seria então recoberto por uma espessa camada de betão. E o coberto parecia apresentar um bom grau de segurança, que aliás se viria a confirmar mais tarde, na detonação de uma granada de morteiro 82.
Já as partes laterais eram construídas na base de troncos de árvores, a que se viriam a juntar blocos de pedra colocados à mão, os quais eram extraídos de um maciço rochoso que por ali havia, geologicamente conglomerados pouco consolidados. Tais blocos, extraídos por acção manual de picaretas, e a sua aposição para fazer parede a encobrir os toros, não ofertava a segurança desejável, mas foi a melhor solução encontrada para fazer uso dos recursos naturais disponíveis.
Havia 2 entradas pela parte de trás, também protegidas por um tapume de troncos. E a parte frontal da caserna, dispunha de 6 frecheiras rectangulares, largas e de pouca altura, com o fim de permitirem uma boa visibilidade e de poderem fazer uso das G3 em caso de última necessidade.
Cada grupo de combate ocupava 2 casernas, e lateralmente a uma delas, construiu-se um posto de vigia, que garantisse a conveniente segurança no alerta do sentinela.
PAIGC: Forte bateria de morteiros 82 e reforço do bigrupo de Nino Vieira
Lutava-se contra o tempo, pois que se tornava bem evidente que o PAIGC vinha progressivamente aumentando o seu efectivo, e uma vez que estava muito próximo da Guiné-Conacri, tornavam-se fáceis as deslocações para desencadearem flagelações mais próximas, quase sustentadas na base de armamento ligeiro, onde os RPG já apareciam e cada vez em maior quantidade. Mais em suplemento, junto à fronteira e talvez postados em território não nacional, dispunham de uma forte bateria de morteiros 82, e estes, de um modo quase perseverante, davam-se ao atrevimento de nos saudar com os seus quase consecutivos estampidos, a pôr-nos em constante alerta vermelho.
Hoje, passados tantos anos, não causar-me-á engulhos de maior, pois é minha forte convicção, ao afirmar que a data de 15 de Maio [de 1968] se revela como marco crucial na estratégia militar do PAIGC para esta zona, e que está apegada de forma visceral, mesmo muito profunda, às colunas de reabastecimento oriundas de Aldeia Formosa, e que redundam na quebra de todos os tabus de matriz religiosa.
Mais, julgo como certo que o bigrupo de Nino Vieira se junta ao já forte efectivo do PAIGC, com um objectivo firme de tentar resolver definitivamente esta questão da fixação das NT em sítios onde se movimentavam à vontade. A concretização de tal objectivo tem por fim contrariar ao máximo as colunas de reabastecimento, como também de encontrar e esperar a oportunidade mais conveniente para poder destruir Gandembel.
Foi efectivamente assim?
Operação Pôr Termo (de 15 a 26 de Maio de 1968, com um efectivo de três companhias)
Os factos e os feitos comprovam-no, dado que é a partir desta data que a situação de aparente tranquilidade e harmonia em que vivia uma vasta e densa zona envolvente a Aldeia Formosa, se altera abrupta e radicalmente.
Nesse dia, por razões que desconheço, as NT dão início à Operação Pôr Termo, com o objectivo de cercear a actividade inimiga nessa zona, para o que dispõe de um efectivo de 3 Companhias (entre as quais, uma Companhia de Comandos), e que se prolonga até 26 de Maio.
Os resultados infligidos ao PAIGC foram bastante diminutos, se se atender às trágicas consequências sofridas pelas NT. O relatório oficial sobre esta operação refere que sofremos 6 mortos, 3 feridos graves e 6 ligeiros, que é distinto do que nesse período pude comprovar e me foi dado a conhecer.
Assim, para além do que se desenrolou nesse trágico 15 de Maio, correspondente à 3ª coluna advinda de Aldeia Formosa, que referenciarei num capítulo sobre as colunas de reabastecimento, com a morte de 6 homens e de mais uma dezena de feridos evacuados, logo a 20 de Maio, há um facto nas imediações de Aldeia, que não lhe conheço os pormenores, mas em que registo ter havido 4 mortos e 8 capturados.
Pesadas baixas para a CART 1612, na sequência do recrudescimento da actividade operacional do PAIGC
Há documentos oficiais que confirmam que em resultado de uma mina anti-carro com emboscada, na estrada Mampatá−Uane, morrem 4 soldados da CART 1612. Não tenho elementos que me permitam concluir se estas acções se interconectam, pois o que então me afirmaram é que a captura dos elementos fora operada num ataque com assalto a um pequeno destacamento.
Esta Companhia de Artilharia, num curto espaço de tempo, é agressivamente fustigada, e relacionada com as colunas Buba − Aldeia Formosa − Gandembel, perdendo um número incrível de militares, em mortos e feridos.
Como mero título de exemplo, e só pela atribuição manifestamente jocosa como foi apelidada essa operação, dou a conhecer a actividade exercida pelo PAIGC sobre Gandembel, neste lapso de tempo. Assim:
— no próprio dia 15, houve 2 ataques, cerca das 20 e 24 horas, uma na base de armamento ligeiro, e a outra com morteiros, com mais de meia centena de deflagrações;
— a 16, cerca de uma centena de morteiradas espaçadas, a terem início por volta das 19.30 horas; às 4 horas, também na base de morteiradas, em menor número (não mais de 50), mas com maior poder de concentração;
— no dia 17, 2 ataques de morteiros, por volta das 19.30 e 22 horas, ambos com detonações a rondar a meia centena;
— já a 18, houve um único ataque de morteiros, ao começo da noite, a ultrapassar seguramente as 70 deflagrações;
— a 19, cerca das 20 horas, houve uma flagelação com duração de cerca de 20 minutos, de lança-granadas e de metralhadoras, a que se seguiu um ataque de morteiros, a rondar a meia centena de despoletamentos;
— no dia 20, ao anoitecer, mais um ataque de morteiros, com mais de 50 deflagrações;
— já a 21, registou-se só um ataque de morteiros, com cerca de 30 detonações;
— a 22, ao fim da tarde, há uma flagelação de lança-granadas e metralhadoras, que se prolonga em cerca de 15 minutos;
— no dia 23, logo pela madrugada, mais um ataque de morteiros, mais intenso, a ultrapassar a centena de disparos;
— já a 24, também há a registar um ataque de características muito similares ao do dia anterior;
— a 25, a meio da tarde, um pequeno ataque de morteiros, com cerca de 20 detonações;
— no dia 26, outro ataque de morteiros, ao princípio da tarde, com mais de meia centena de disparos.
26 de Maio de 1968: Spínola pela primeira vez em Gandembel
E é precisamente neste dia 26 de Maio [de 1968] que Spínola, ainda com poucos dias no cargo das suas funções de Comandante-Chefe, visita Gandembel logo pela manhã e sem qualquer aviso prévio. Debruça-se atentamente quanto às condições que aquele local ofertava às tropas aí sedeadas, não faz muitas perguntas, também não ousa questionar das eventuais dificuldades sentidas, é receptivo quanto à urgência de se dispor de equipamento bélico defensivo de grandes calibres. Faz-se não demorar muito tempo, e o helicóptero que o trouxera, e que sobrevoava Gandembel para não ficar estacionado durante a sua permanência, aterra de novo para o levar para outro rumo.
E o que Spínola terá pensado sobre o que tinha observado, já que pelo seu mutismo parece dar a entender que tinha perfeito conhecimento da situação bélica que se estava a passar na zona?
Naturalmente que ainda é prematuro extrair quaisquer ilações, pois certamente não foi por razões vãs que quis deslocar-se a este sítio. Posso reconhecer que se lhe tenha deparado aqui o primeiro dos grandes problemas para enfrentar e tentar resolver.
As colunas de reabastecimento tornam-se um pesadelo
Apenas após 3 dias Spínola vir a Gandembel, chega um pequeno contingente de artilharia, sob o comando de um alferes, com 2 obuses, que julgo de calibre 10.5, a que acrescia 2 metralhadoras pesadas Browning, e para as quais já estavam construídos os seus ninhos.
O PAIGC, convicto da sua força, desencadeia no dia 5 de Junho [de 1968] mais uma das suas acções, e que mostrar-se-ia fatídica para a Companhia, conforme referirei no capítulo sobre as colunas de reabastecimento, ceifando a vida ao 3º elemento da Companhia — o alferes Álvaro Vale Leitão, que vinha a caminho de Gandembel, provindo de Guileje.
Estas colunas devastavam e devoravam, provocando consequências de tal modo aterradoras, que iam atingindo penosa e gravemente os elementos da escolta que forçadamente nelas estavam envolvidos, com perturbações profundas e fracturantes no corpo e na mente.
Mas quem, sujeito a um penoso andar, absorvido pelo efeito danoso do inimigo, se confronta aqui com a morte de um companheiro, para mais alguns instantes se deparar com um outro a necessitar de ser evacuado, muito dificilmente conseguiria suportar tantas adversidades. E as perspectivas de as verem acabadas, de lhes pôr termo, não as vislumbrava.
Como forma de mascarar este embate de vida e de morte, havia sempre uma mente brilhante que planificava mais uma operação, mas que à míngua dos seus efectivos, não beliscava minimamente no comportamento bélico do PAIGC.
Foi o caso da Boa Farpa, tão serenamente vista dos céus por uma Dornier, mas tão assustadora e pungente para os que cá em baixo começavam a perder a noção da racionalidade, que se mediava entre o tudo e o nada, inseguros de si mesmos, já a agirem quase sempre maquinalmente. Eram homens em desespero, contando apenas com uma G3 fortemente aperrada e pronta a fazer fogo ao menor indício de perigo.
E ante este desencadear consecutivo de ocorrência deste tipo de vivências ameaçadoras, de uma guerra descomedida e sem limites, não se torna fácil de as descrever, porquanto são tantas e tão diferenciadas que nos impele a omitir as que, embora sofridas, não trouxeram, no imediato, perdas gravosas para a Companhia.
Homens em desespero: o caso do Alferes do Pelotão de Caçadores Nativos
Sem manifestar qualquer pretensão em me arrogar em fazer o papel de advogado do diabo, julgo hoje, há lonjura de quase 4 décadas, que quem chegasse a Gandembel tinha de possuir um temperamento firme e rijo, para enfrentar as adversidades que se lhe deparavam no dia a dia, dado o modo agreste e alucinante como se conseguia sobreviver.
Embora o considere como exemplo raro, ao referi-lo, demonstra um pouco o que este lugar nos reservava, e por isso faço-o figurar na história de Gandembel. Em rendição individual, e logo que chega do Continente, é enviado um alferes (perdi qualquer referência pessoal) para o Pelotão de Nativos, que num prazo de apenas 2 semanas, mediado entre os dias 29 de Maio a 13 de Junho, mergulha num profundo estado de transe que condoía. Era um ser quase inerte, que de tão apoderado pelo medo, já não reagia. Ante esta incontornável situação, a Companhia que estava sob o comando de subalternos [aliás, como numa parte substancial do tempo de permanência], pediu a sua evacuação.
(Continua)
E para todos vocês, um até breve. Um abraço do Idálio Reis.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá
9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo
12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel
2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras
9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel