1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 9 de Fevereiro de 2011:
Caros Camaradas
Gostaria de prestar a minha homenagem a todas as Madrinhas de Guerra.
Sem elas, a guerra teria sido diferente e, seguramente, mais desastrosa. Elas foram o conforto e a esperança, o carinho e o amor que nos acompanhou, nas horas mais difíceis das nossas vidas. Por isso, devemos-lhes uma gratidão desmedida.
A história que hoje junto, parece estranha mas foi verídica. Esta madrinha teria hoje cerca de 110 anos! Todavia, por razões óbvias e por respeito aos seus familiares, substitui-lhe parcialmente o nome.
A todas as Madrinhas de Guerra, um abraço com toda a gratidão do
Silva da Cart 1689
Memórias boas da minha guerra (12)
Uma Madrinha de guerra
Aproximava-se o fatídico dia 26 de Abril de 1967.
O destino estava traçado e o medo parecia aumentar à medida que essa data estava mais próxima. Constava que a guerra na província da Guiné estava cada vez pior.
Vivíamos sob a ditadura de Salazar. A comunicação social era controlada e só éramos informados sobre aquilo que o regime permitia. Ora isso era muito pouco, as cartas eram censuradas, os militares que regressavam temiam a PIDE e receavam falar sobre as experiências vividas. Por outro lado, notava-se uma certa preocupação em abafar e amenizar o assunto, para bem das famílias. É que se tinha já chegado ao ponto de as vilas e aldeias terem visto chegar as caixas de pinho com os seus “soldadinhos”, como lembrado nas baladas do Zeca Afonso. A agravar isto, havia cada vez mais feridos nos hospitais e aumentavam os deficientes mutilados. Claro que os meninos ricos, em dinheiro ou em poder, safavam-se devido a influências ou à fuga para o estrangeiro. (Muitos foram, mais tarde, anti-fascistas).
Os mobilizados viviam já num ambiente totalmente diferente do habitual: por um lado, era evidente o desenvolvimento das paixões, do carinho e da simpatia de toda a gente que lhes era próxima, mas, por outro, viam-se afastados pelas jovens que não se queriam comprometer com um possível “condenado”.
É assim que se acentua o relacionamento baseado em correspondência entre os militares e as madrinhas de guerra. Esta prática foi muito incentivada pelas associações religiosas (católicas) e pelo MNF- Movimento Nacional Feminino.
Penso que ninguém é capaz de descrever com realismo a importância de que se revestia o facto de recebermos cartas da Metrópole. O correio era o elo que mantinha o sentido racional e moralizador de todos os militares. Assisti a situações dramáticas relacionadas com as notícias recebidas ou a ausência delas.
Havia uma excepção que muito me admirava. Era o caso do Feliciano de Santa Maria da Feira que raramente recebia correspondência e que várias vezes, talvez por sermos do mesmo concelho, me perguntava se eu conhecia alguma vizinha que quisesse ser sua madrinha de guerra.
Castelo de Santa Maria da Feira
Curiosamente, eu conhecia uma vizinha que gostaria imenso de ter um afilhado. Ela também me havia pedido isso.
Inicialmente não dei grande importância a este pedido mas, depois de notar a necessidade do Feliciano, vi uma oportunidade de se satisfazerem os dois desejos. Todavia, devo confessar que não sentia vontade alguma em “oferecer” a Idalina Crista a um dos meus camaradas militares. E porquê?
Penso que o facto de a Idalina ter apenso o apelido de Crista, se devia mais à sua atitude de permanente crispação e arrogância do que a um prémio à sua religiosidade, apesar de, pelo apelido, parecer concluir-se da existência de parentesco com o Salvador do Mundo, o que muito a envaidecia. Não saía da igreja. Era uma beata assumida, que aproveitava todos os momentos para defender a Igreja Católica e combater ostensivamente quem não acreditasse nos seus princípios e dogmas. Era solteira e, seguramente, ainda virgem. O seu aspecto não cativava ninguém. Teria mais de 65 anos, pernas muito arqueadas e escondidas com meias escuras e saia comprida. Esticava os cabelos lisos e grisalhos, arranjados em carrapito. que segurava na nuca e que cobria com um lenço também escuro. Não cortava os pelos do bigode (tipo chinês) nem os da verruga, perto do queixo. Faltavam-lhe já muitos dentes, mas mantinha bem visíveis dois incisivos em cima e dois em baixo, que se encaixavam perfeitamente. Não se lhe notavam seios nem curvas no corpo. Parecia uma tábua lisa. Usava sempre sapatos fechados, tipo homem. De altura teria, incluindo o carrapito do cabelo, cerca de um metro e meio. Sobrancelhas tipo Álvaro Cunhal, encimadas nos óculos de fundo de garrafa bem assentes numa penca avançada.
No dizer do vizinho Néquita era, realmente, uma carcaça de primeira. Segundo a minha sobrinha Margarida, só lhe faltava o chapéu e a vassoura para ser a bruxa má!…
Ela não tinha culpa de a beleza não lhe ter sido atribuída. E, possivelmente, também não a teve quando não foi aceite para fazer os seus votos de castidade numa irmandade de freirinhas descalças (?).
Tinha imensas razões para viver triste e complexada. Porém, ela não o mostrava e, contrariamente, vivia exuberantemente a sua devoção, a sua vaidade e o seu orgulho através das suas actividades religiosas. Digamos mesmo que ela merecia alguma compensação do Deus a quem tanto se dedicava.
O Feliciano era bom moço, muito alto e desengonçado, um tanto gago, ingénuo e pouco atraente. Claro que merecia melhor mas para o fim em questão, nada o iria prejudicar. Tive ainda o cuidado de lhe dizer que ela já não era jovem. E ele, perguntou:
– Tem mais de trinta? Acenei-lhe afirmativamente, ao que ele acrescentou que não tinha problema. E, como sempre acreditei que a Idalina Crista não lhe enviaria fotografias, resolvi dar-lhe o endereço.
Dois meses depois, era notório que o rapaz andava muito mais animado. E fazia-me várias perguntas sobre a Idalina Crista. – Que tal é a Idalina? Que relacionamento tínhamos? Se era boa rapariga? Etc., etc. Sem procurar entusiasmá-lo, lá lhe fui dizendo meias verdades para não prejudicar esse saudável e santo relacionamento.
O tempo ia passando e eu via o Feliciano cada vez mais ligado à Idalina. Ele ainda não tinha recebido qualquer fotografia dela mas trazia no bolso as santas imagens que ela lhe mandava, desde a Senhora de Fátima à Sta. Teresinha do Menino Jesus. Parecia uma criança a coleccionar os cromos da bola. O curioso é que ele, conhecendo a minha posição pouco entusiasta sobre essas causas religiosas, passou a evitar-me parcialmente. Eu não me preocupava, porque o que queria era que ele se sentisse bem.
Já faltavam poucos meses para regressarmos e eu começava a preocupar-me com o desfecho daquela paixoneta, que eu, afinal, causara.
Quando o Feliciano me perguntou como se ia para casa dela, senti um calafrio. Estávamos a um mês do regresso e eu ainda não sabia como havia de desatar esse nó. Mas tinha que começar a “desmontar” a relação. Mostrei interesse em saber como estavam as coisas e perguntei-lhe se ela lhe tinha mandado alguma foto. Ele disse que não e que até não estava muito contente com ela porque lhe tinha pedido fotografias e ela lhe mandava santinhos. Já tinha mais de 5 gravuras da Senhora de Fátima com os três pastorinhos. E que quando lhe pediu uma foto na praia ela lhe mandou uma da irmã Lúcia, vestida de freira. Mostrei-me surpreendido e aproveitei, então, para lhe dar razão e dizer que ela não precisava de se portar assim. Prometi-lhe que iria saber o que se passava.
Pouco mais de uma semana depois procurei-o para lhe dizer umas novidades. Apercebi-me de que a correspondência entre eles havia refreado um pouco, devido à não satisfação do pedido da foto.
- Oh Feliciano, tenho muita pena mas, por aquilo que me dizem, a Idalina anda embeiçada com um sobrinho de um tal Padre Inácio, que está a viver com ele na residência paroquial. E continuei: – Não sei se tem notado alguma coisa, mas ela agora deve estar a aproveitar esse relacionamento mais próximo. No entanto, ela não o quer magoar a si e vai mantendo a correspondência ou, então, está a aproveitar para fazer ciúmes a alguém.
Ele ouviu atentamente e disse:
– Pensei sempre que ela era uma rapariga séria e até acreditei no namoro mas, à medida que íamos avançando, ela não deu “chances”. Já há uns tempos que ando a matutar que ainda não é aquela que vai ser a minha mulher.
Já faltavam poucos dias para o regresso e o Feliciano disse-me:
- Oh Silva, se calhar não vou ver a Idalina porque afinal, as mulheres são todas iguais e as que andam pela igreja, às vezes, são as piores.
Logo que cheguei da Guiné dei, de repente, com a Sra. Idalina, que me veio perguntar pelo Feliciano. Fiquei de boca aberta quando a vi toda recauchutada, que nem parecia a mesma. Tinha o cabelo armado, barba feita a rigor, verruga disfarçada como se fosse um sinal e uma dentadura nova tipo actriz de cinema. Com as sobrancelhas aparadas, uma blusa ligeiramente aberta, uma saia pelos joelhos, pernas descobertas e rapadas e usava sapatos altos. Parecia uma boneca.
- Então, onde está o meu afilhado? Quando é que ele me vem ver? E acrescentou - Tenho muito que falar àquele maroto. Respondi-lhe, então:
- Olhe, Dona Idalina, ele não é o que eu pensava. Acabei por saber que ele já andava a namorar com uma sobrinha dum tal Padre Inácio, que agora vive com ele na residência paroquial. Pelo menos, foi isso que eu me apercebi, devido à fotografia que vi de uma rapariga em “maillot” tirada na praia de Cortegaça. Sabe, é muito tempo para um homem novo, viver afastado de uma mulher. Ela, matreira e orgulhosa, respondeu:
- Ó Zeca não te preocupes com o assunto, porque quando ele me começou a pedir fotografias obscenas, cheguei logo à conclusão de que os homens são todos iguais, o que eles querem bem o sei e os que andam pela igreja, às vezes, são os piores.
Então, gritou: - Oh meu Deus, será verdade que não há ninguém que se aproveite neste mundo?
Benzeu-se, deitou os olhos ao céu, puxou o crucifixo para o centro do peito e exclamou: - Já vi, meu Senhor, que me queres pura e honrada, junto de ti!
Silva da CART 1689
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011
Guiné 63/74 - P7710: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Chico d'Alcântara, um homem de exceção