1. Em mensagem do dia 5 de Janeiro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (20)
Plágio
Todos sabemos o que significa plágio; direi apenas que é bem mais grave, mais recriminável que a “cábula”, o tema que recentemente tratei. Direi ainda que a cábula é jocosa (quase) é frequentemente divertida; o plágio é normalmente praticado com mais anos em cima do autor; é assunto mais sério; é doloso; o autor pode (e deve) ser judicialmente incriminado... mas isto são contas doutro rosário!
Após a revolução dita dos cravos o país entrou em convulsão endémica atingindo o auge logo no chamado “verão quente” de 1975.
As escolas, em geral, não fugiram à regra; o ensino foi “pretensamente” reformulado... em cima dos joelhos... até mesmo nas Universidades. O curso de Filologia Germânica não deixou de seguir as mesmas pegadas; sofreu uma “reforma” que, como noutros casos, constou apenas da redução do número de cadeiras; o objectivo era simplificar ou facilitar para formar à pressa sem que os alunos tivessem de queimar muito as pestanas para concluir os cursos.
Anos mais tarde, consta até que um agente técnico de Engenharia passou a ser engenheiro fazendo exames ao domingo e três cadeiras... com o mesmo examinador... mas esta história é outra... não é das nossas relações!
Antes de 1972 eu tinha feito algumas “cadeiras”, enquanto permaneci no Colégio Militar. Naquele ano comecei a trabalhar na vida civil. Em 1974, quinze dias antes da bronca (leia-se revolução dos cravos) mudei de ramo; estas mudanças tiveram consequências bicudas nos meus estudos. Recomecei no ano lectivo de 1975/76.
Para reiniciar passei pela Reitoria e perguntei:
- Quantas cadeiras tem agora o curso de Germânicas?
- Vinte e quatro! Foi a resposta na ponta da língua.
- Eu já fiz 25! – Curso concluído!
- Não é bem assim! Falta-lhe uma cadeira em seminário! É essencial!
- Quais são as cadeiras que podemos fazer em seminário?
Citaram várias; uma delas era História do Cristianismo.
- Já fiz essa, em Coimbra!
- Mas não a fez em grupo! A situação mantém-se!
Fazer mais uma cadeira... era só mais uma! Eu até já tinha sido engenheiro de pontes...!
As aulas já tinham começado e eu não conhecia ninguém com quem pudesse formar equipa para preparar o tal exame – que era obrigatório.
Encontrei uma ex-colega de Oliveira de Azeméis e de Coimbra, Maria do Céu Sousa e Silva, nome a que, por casamento, já tinha acrescentado “Castro Lopes”; ela estava a preparar o exame (o tal em seminário) sobre a Revolução Industrial.
A Maria do Céu houve por bem interromper o curso para estar perto do marido (casadinhos de fresco) enquanto ele prestava serviço militar obrigatório na Marinha. Acabada a tropa dele, ela voltou à Universidade.
Os grupos podiam ter de três a cinco elementos; no grupo dela eram apenas três (duas moças eram jovens e solteiras); pedimos à professora – e ela autorizou – que eu entrasse naquele grupo com o estatuto de trabalhador estudante – coisa importante!
Sempre que me era possível – naquela época, a vida nas empresas era febril, alucinante – eu ia comparecendo e assistia a uma ou outra aula. Com a frequência permissível reunia com as prestantes colegas de grupo em que, por especial favor e com a sua cara boa vontade, eu me tinha encaixado.
Numa das primeiras aulas a que assisti tomei conhecimento do modo suigéneris como cada grupo iria ser avaliado.
O grupo apresentava o seu trabalho; entregava uma cópia à professora e outra a cada um dos restantes grupos; marcava-se a data em que os eruditos autores iam ser ouvidos (examinados). Cada aluno, vestindo a capa de examinador, colocava objecções e/ou dúvidas e formulava perguntas; os examinandos respondiam, prestando os esclarecimentos cabais e necessários, ou como tal considerados.
Cada grupo de “examinadores” decidia a nota a atribuir ao trabalho em discussão; ao grupo examinado era atribuída a especial nota grotesca de “apto” ou “não apto”; esta apreciação era extensiva a cada elemento do grupo. Obtinha-se a nota final por maioria simples (50% + 1). Em caso de empate, à professora, qual rainha de Inglaterra que reina mas não manda, cabia o supremo poder decisório de desempatar.
Fiquei desapontado, pasmado, quando me apercebi que só havia notas de “sim” ou “sopas” e como elas iriam ser atribuídas; exprimi o meu veemente desacordo mais ou menos nos seguintes termos:
- Que se considere que as notas de zero a vinte já pouco significam nos tempos que correm, eu concordo.
- Que se pretenda praticar escalas de 1 a 10 ou de 1 a 5 como já acontece em muitas escolas secundárias e até em algumas Faculdades, é pura aberração.
Que se pretenda “legislar” que o aluno não pode ter zero (nota eliminada) só porque assinou a folha é estupidez no seu mais alto expoente; e se não assinar!?... Também não pode ter zero porque essa nota já não “consta” dos alfarrábios.
No entanto, mais abstronso que tudo isto é pretender atribuir, na última cadeira do curso a nota “apto” ou “não apto”. Não pretendo ofender o burro... Caso contrário diria que é burrice pura!
Neste ponto fui interrompido por uma colega que diziam ser MRPP (meninos rabinos que pintam paredes):
- Oh colega! Isso já foi discutido no início do ano! Agora não podemos voltar atrás!
- Pode-se voltar atrás (e deve-se voltar) sempre que nos apercebermos que errámos; é mais fácil defender o erro que reconhecê-lo! O futuro mostrará, por certo, o lamaçal para onde nos deixámos arrastar.
Ao que disse anteriormente só pretendo acrescentar três pontos:
1 – Ao contrário de muitos de vós eu estou a tentar concluir um curso que “devo”... aos meus pais pela sua coragem inaudita e pelos imensos sacrifícios que, deliberadamente enfrentaram para me proporcionar a possibilidade de estudar; penso que, em princípio, não o utilizarei eu proveito próprio, pois exerço já um cargo cimeiro numa empresa onde me sinto bem e sei que os patrões estão satisfeitos com o meu desempenho.
2 – Se um dia me aparecerem dois candidatos a um emprego (um cota dez na escala de zero a vinte e outro classificado desconexadamente com nota “apto” – (a nota do “sim ou “sopas”) podem ter a certeza que, mesmo de olhos fechados, eu escolherei o candidato do 1º caso; e tenho a certeza que a ilustre colega que tão denodadamente, tão acerrimamente defende este desconjuntado sistema, se tiver de proceder à mesma escolha, na hora da verdade, ela será sem dúvida, da minha opinião.
3 – Numa época em que os povos mais evoluídos optaram por notas de zero a cem será que nos dicionários existem reais palavrões para classificar esta brutal decisão?
Eu prefiro afirmar que não os conheço... para não ter de os utilizar porque seriam obscenidades tais que fariam corar as faces de um qualquer jumento inocente.
É verdade que fiz o sermão aos peixes! Não houve mais discussão! E nada foi alterado!
A professora não se pronunciou. Era muito jovem – creio que seria o 1º ano que lecionava – e talvez tivesse também ideias um tanto revolucionárias.
Começaram a aparecer os primeiros trabalhos de grupo para serem avaliados. Se bem me lembro, o primeiro foi mesmo do grupo da colega MRPP. Todos os primeiros trabalhos foram considerados aptos. Só me lembro de um cujos autores foram classificados de “não aptos”.
E o trabalho do meu grupo?
Nas variegadas reuniões que tivemos (frequentemente em casa da colega Micéu, porque ela tinha dois filhos; o mais novo com apenas 3 anos e que não frequentava o pré-escolar – coisa rara ou ainda inexistente) quase sempre houve acordo sobre os textos apresentados. Apenas recordo duas situações discutidas com mais calor: num caso houve desacordo e noutro houve apenas sugestão de alteração de forma (imperativa).
O primeiro caso ocorreu quando uma colega (das mais novas) escreveu que tinha lido algures (e pretendia incluir no texto colectivo) que, durante a Revolução Industrial em Inglaterra, havia patrões que admitiam crianças de 3 anos para trabalhar nas suas fábricas.
Protestei veementemente! A moça defendia que tinha lido e citava obra e autor. Retorqui:
- Os maiores disparates e/ou baboseiras podem aparecer em qualquer livro de autor menos coerente ou mais distraído; a opinião pública influencia os autores menos cuidadosos ou mais ingénuos. Numa época em que se pretende deliberadamente molestar os criadores de postos de trabalho que, tal como hoje, eram os – “causadores” de todos os males – qualquer autor é bem visto se conseguir denegrir a imagem deste sector da sociedade, mesmo que através de disparates. Nós temos de discernir e atingir o que terá “naturalmente” acontecido e o que poderá ter sido tomado por base em tal descalabro. Não podemos confundir deliberadamente “inchaço com gordura”.
Depois de avanços e recuos dirigi-me à colega Micéu, mãe duma criança de 3 anos e ali presente:
- Entendes que alguém consegue que o teu filho trabalhe, produza para ser remunerado mesmo que mal, numa qualquer oficina?
- Claro que não! Absolutamente impossível! – Foi a resposta.
O que terá acontecido foi o seguinte:
- Uma qualquer mãe extremosa solicitou ao bom do patrão que a autorizasse a trazer a criança para a oficina porque não tinha com quem a deixar e “ela é bem comportada e não prejudicará” o trabalho de ninguém. A certa altura a criança estava saturada; a mãe deu-lhe uma vassoura para “varrer a oficina”; a criança “brincou” com os resíduos, empurrando-os dum lado para o outro.
Eis que um inoportuno escrevinhador passou por ali e poderá ter perguntado à criança:
- Que estás a fazer aqui, minha menina?
- Estou a varrer! Terá respondido inocentemente a bebé.
Assim, o escrevedor, provavelmente mal-intencionado, conseguiu um “belo tema” para sua obra.
Logo se decidiu que aquela tolice não constaria do nosso trabalho. Boa decisão! Devemos ser sempre imparciais ou... procurar sê-lo!
Àcerca dum texto meu sobre o “Emile” de Rousseau, aconselharam-me a “desempolar” o tema porque o estilo não se enquadrava no texto geral. Sem alterar o conteúdo (isso não estava em causa) lá “desenfatuei” o que tinha escrito.
Caro leitor! Está surpreendido porque ainda ninguém plagiou? Então aí vai!
Um grupo de 4 moças apresentou as necessárias cópias do seu trabalho; lembro-me que foi dos mais acaloradamente discutidos; as autoras foram advertidas pelos muitos erros ortográficos e sintáticos.
Elas defenderam-se, atribuindo a “culpa” ao dactilógrafo e elas não tiveram tempo de reler e corrigir o que tinham “bem” escrito. Ainda não tinha chegado a era da informática e a fotocópia ainda era um luxo de má qualidade e de custo elevado.
A discussão continuou acesa mas o trabalho foi aprovado não sei já com que percentagem de votos a favor e elas foram consideradas “aptas”.
Dois ou três dias mais tarde, estabeleceu-se a confusão! Que grande balbúrdia! Autêntico regabofe!
Umas colegas que trabalhavam no Algarve enviaram o seu douto comentário escrito e formularam uma série de perguntas absolutamente pertinentes. Afirmavam e demonstravam claramente que o trabalho em causa era um constante plágio (elas diziam cópia) quase de fio a pavio. E citavam:
- No parágrafo tal da página tal as autoras afirmam categoricamente... e transcreviam o citado parágrafo.
Elas continuavam: - o autor fulano na obra e página tal e tal diz... e concluíam que até a tradução estava falseada e os erros ortográficos e sintáticos eram assíduos.
Citaram uma chusma de parágrafos plagiados e quase sempre mal traduzidos e com erros.
Alguém perguntou à professora se era ainda possível recuperar e anular a nossa decisão anterior. A professora respondeu que tal era absolutamente impossível porque as notas já haviam sido escrituradas nos cadastros individuais. Nada se podia fazer para repor a legalidade. Talvez pretendesse defender-se do erro coletivo!
Chegou a minha vez de reentrar na contenda, atacar o sistema, tentando desancar os seus defensores:
- Temos de concluir, doa a quem doer, que somos acusados de ter cometido uma tremenda injustiça e a culpa não pode ser atribuída ao “sistema”. Já sabíamos que tal decisão não poderia conduzir-nos a bom porto. Cada macaco no seu galho! A professora na sua cátedra, deve defendê-la e respeitá-la; nós nos nossos assentos devemos ser alunos até ao fim.
Por outro aldo, perante a avaliação elaborada pelas colegas do Algarve, somos obrigados a concluir que elas conhecem a fundo esta matéria; elas detectaram com grande pormenor o que, nem nós, nem a professora, conseguimos denunciar. Somos levados a concluir que nenhum de nós tem condições para aquilatar os conhecimentos que elas irão exibir no trabalho que apresentarão dentro de dias. Perante isto e tendo em conta que elas já provaram que são excelentes conhecedoras da matéria, proponho que o seu trabalho seja considerado apto sem qualquer discussão. É a maneira de reconhecermos que elas já são na verdade “doutoras” no assunto em causa. Eu recuso-me a atribuir-lhes nota doutra maneira,... por incapacidade minha.
A proposta foi aprovada por unanimidade, incluindo a professora.
A colega MRPP, logo que viu o seu trabalho aprovado, nunca mais apareceu nas aulas.
De seguida a professora lamentou profundamente o que tinha acontecido e garantiu que tal não mais se repetiria – nunca!
As fraudulentas, (plagiadoras) porém, foram (já tinham sido) consideradas “aptas” e não havia (?) maneira “legal” de corrigir aquela bestial monstruosidade. Era mais um acontecimento excêntrico, estupendo (estúpido) do PREC (processo revolucionário em curso)... no seu auge!
Lisboa, 04 de Janeiro de 2012
Belmiro Tavares
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego