quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10374: Notas de leitura (401): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (2) (José Brás)

1. Segunda e última parte da apreciação do livro "À Viagem de Tangomau", a última obra do nosso camarada Mário Beja Santos, feita pelo outro nosso camarada José Brás, ele próprio um autor muito importante na bibliografia da Guerra do Ultramar (ou Colonial). 


ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO  (2)

"A VIAGEM DO TANGOMAU" - uma obra prima

Por José Brás

Deixando para trás comentários velhos e por provado que o pormenor levado a tal extremo, não é exagero mas virtude em Tangomau, volto à minha confirmando que tal Tangomau podia ser ou podia não ser eu, de facto, malgrado outra coisa ter dito no início desta conversa que aqui vim ter convosco sobre o livro do Mário, lembram-se, - a minha grande perplexidade perante este livro e perante as suas personagens, o sobretudo o Tangomau, vem da descoberta de um homem que, com alguns pontos de toque comigo próprio, visto assim, é um ser diametralmente diferente de mim, este leitor que agora escreve sobre o que leu e que, obviamente, vivendo por esta via o que viveu por outras e reais, o autor, se modifica também um pouco e ganha opinião, provavelmente diferente da que teria antes da leitura -.
Tangomau, aquele que morre ausente ou desterrado da pátria, não podia ser eu tal como fui na Guiné, não um Alferes atirador e Comandante de um Pelotão de Caçadores Nativos e de um outro de Milícias, numa zona de tudo desprovida menos de acção de combate, de sangue e de dor, sofridos ou infligidos, mas um Furriel de Transmissões de uma Companhia de Caçadores num outro lugar também vazio de referências e de conforto e também agitado pelo combate, pelas mortes e pela dor. Não podia porque foi diferente a abordagem que fiz à guerra, daquela que fez Tangomau.

Na obrigação de comandar muita gente e de cumprir a missão junto ao Geba, salvando o que fosse possível dos sinais de civilização que transportava e das vidas dos seus comandados sem faltar nem um dia ao cumprimento das obrigações que lhe atribuíram, Tangomau tem que mergulhar até ao fundo naquela transformação humana que detectamos na leitura do livro, tornando-se num homem diferente do que fora e até do que imaginara ser, tornando-se num N’Bakê, disponível para matar e morrer e também para abraçar os seus homens e com eles chorar o choro balanta, mandinga ou fula, regressando a Lisboa, aparentemente o mesmo que partira, mas na realidade outro.

Eu, aceitando a guerra porque recusava a fuga, embarquei como civil e tanto quanto pude vivi na Guiné como civil, rejeitando a vida local, sem farda por fora nem por dentro da pele que me cobria, e um claro sentimento de admiração pelos que lutavam, alegadamente pela liberdade do seu povo.
Com isto terei voltado o mesmo que partiu? Creio bem que não e ninguém poderia ter voltado o mesmo que partira para tal missão. Voltei outro, seguramente, porque combati, porque disparei, porque fiz emboscadas e embosquei a gente que admirava, vi os seus mortos e estropiados, as suas culturas e casas destruídas, e, pior, vi os meus próprios mortos e neles morri também um pouco para continuar vivo mas outro inevitável, diferente do que partira e também diferente do Tangomau na volta.
E sei que, mesmo eu, se tivesse tido uma experiência diferente na Guiné, seria ainda outro no regresso, igualmente diferente do que partira, mas diferente também do que regressou de facto.

Por exemplo!
Na recruta nas Caldas eu era sem dúvida o melhor instruendo dos sessenta do meu duplo pelotão, tanto no aspecto físico, como nos testes escritos. Toda a gente o sabia e toda a gente pensava que eu iria ser enviado para Mafra para graduação em Aspirante. Vinha de muito exercício físico, quer da vida de aldeia nas vinhas de Alenquer, quer no remo de competição no Tejo de Vila Franca, na corrida, na prática do boxe, na actividade taurina de forcado a quem “calhavam” sempre os toiros duros e grandes.
Fizera o Liceu a pulso, os dois primeiros ciclos, cada um num ano, e frequentava a alínea F do 3.º ciclo quando me enfiaram no quartel. Vinha com provas e o Comandante do Pelotão sempre me transmitiu a ideia de grande consideração. Porém, próximo do fim da recruta, o Cabo Miliciano que secundava o Alferes na condução da instrução, confidenciou-me que este hesitava muito porque tinha dois outros instruendos, professores da escola primária como os pais do Alferes que ele tinha de proteger.
Resultado! Não fui para Mafra onde seria atirador e fui para Transmissões. No dia em que o Alferes, excelente pessoa, digo, juntou o pelotão para comentar o futuro de cada um dos seus instruendos, desabafou que a única surpresa dele era eu que ia para Transmissões, podendo dar um grande Comando.
Disso recebeu o troco de um enorme grupo de instruendos que lhe fizeram notar que a culpa era dele, Alferes por não me ter enviado para Mafra.
Na altura fiquei chocado com a repetição na tropa dos mesmos tiques sociais do civil e porque o pré seria bem mais baixo, o que fazia toda a diferença para quem vivia apertado. Mais tarde pensei que afinal o homem me havia feito um favor pela diferença dos riscos, coisa que em Aldeia Formosa e em Medjo não se notava, uma vez que fazia todas as colunas a Buba e a Gadamael Porto e ainda ia algumas vezes às operações voluntariamente e apenas pela sede de adrenalina, pela curiosidade sobre as situações de combate, por solidariedade com amigos estoirados e mesmo por uma ou outra loucura.

Este trecho que aqui vem, aparentemente a despropósito, não tem apenas o objectivo de teorizar sobre as diferenças entre cada qual e comprovar o que disse atrás, mas mesmo de navegar na busca de diferenças que podem ocorrer mesmo com um só cidadão na possibilidade de pressupostos e vivências diferentes.
Que poderia ter-me acontecido, se em vez de Furriel de Transmissões me tivesse calhado ser Alferes atirador, muito provavelmente tropa especial, atirado para um sítio qualquer a comandar pelotões de Caçadores Nativos e intervindo em combate com as responsabilidades das missões e das vidas dos subordinados?
Hoje resta-me a lástima de reconhecer que me entreguei pouco àquela gente, a conhecer os seus costumes e culturas, a entender-lhes as aspirações e objectivos, as suas verdades e mentiras, a todos e cada um deles, e de não ter sido seu um amigo engajado. Trajando à civil a maior parte do tempo, recusando convívio com tropa profissional, perdido no afã da recusa, vivi apenas na ânsia de voltar à terra de onde saíra e de esquecer que aquele tempo tinha existido, coisa que, como se vê, não aconteceu a Tangomau.
O relatório...


Agora, a ficção!

A ficção que não pode desligar-se do clima que o relatório definiu, em lugares, em tempos e em modos. Em modos das gentes, já se vê, porque as gentes, e neste caso, principalmente o Tangomau, são o único e verdadeiro motivo de qualquer escrito, seja ele relatório, seja ele romance, partes, aliás, diferentes mas intrinsecamente ligadas à realidade real, num caso relato directo e sem arredondamentos psicológicos ou condicionantes possíveis mas não efectivas, e o outro, especulando, desenhando hipóteses outras e caracteres morais e intelectuais que podem explicar a realidade. E não se tenha o Relatório que atrás vem referido por mim na relação do que li, como peça menor na armadura do que aqui se pretende dizer da Ficção. Nenhum personagem de ficção, muito ou pouco realista, mesmo que muito romântica, terá grandes hipóteses de amar ou de odiar, de escrever ou de guerrear, de cavar terra de vinha ou de sonhar, se respirar outro ar que não seja nesta mistura de setenta e um por cento de ozono, vinte e um por cento de oxigénio e de um por cento de gases raros.
O Tangomau vai despejado de um ambiente citadino, só por acaso muito culto, dessa cultura que se tem como imagem, construída no S. Carlos, no Teatro Nacional, nos museus e galerias, nas tertúlias, nas grandes leituras, na missa da Sé ou da Basílica da Estrela, também com um fino pó de progresso que estas vidas podem ter, com podem ter o seu preciso contrário, e cai na floresta sub-tropical da Guiné a comandar soldados negros que haviam ficado de um lado da contenda como poderiam ter ficado na outra, obrigado, portanto, a instruí-los no combate contra os seus irmãos de sangue ou de vizinhança; obrigado a defender-lhes a vida; obrigado a sofrer-lhes as dores e sofrimentos e a partilhar o nada que tinham para viver ao tempo, nesses simulacros de acampamento, a calcorrear quilómetros de lama e de trilhos, a sofrer os mesmos mosquitos e a mesma febre palúdica; aprendendo com eles a raiva do combate, a ansiedade da espera, o regresso exausto da operação na felicidade dissimulada sob a pele, na certeza que se volta vivo e inteiro, por fora, ao menos. Dois anos desta partilha maltesa, desta quase certeza de uma bala perdida, um fornilho armado, uma noite sem jantar, uma fé que vacila.

E que faz um branco, militar, oficial subalterno nesta tropa fandanga, neste simulacro de vida, neste patriotismo de dúvida e com inimigo que se odeia e que se ama como só ama quem odeia e só odeia quem ama, sobretudo se Pátria aqui é uma abstracção diluída no calor abafado e no capim apodrecido de uma bolanha de mais sangue que arroz?
Transforma-se em ficção. Busca-se nos outros que tem em si e que não conhecia, nem em Lisboa nem em Mafra, nem em Ponta Delgada.
Tenta encontrar-se nos Sancó e nos Fodé, apurar os sentidos no cheiro de enxofre que lhes sobra das partes dos corpos com sua carne em falta.
Ficciona-se obrigatoriamente nesse tempo de transição de branco quase doutor nas calçadas de Lisboa, para esse M’Baké, soldado negro combatendo no lado errado da terra de ninguém na lalas do Cuor, e de novo branco no regresso do Uíge, aos baldões de uma vida nova para refazer no puto, sentindo a falta desses eus que deixou nas matas e nas mãos de seus soldados, tendo que reinventar-se, não a partir do que havia deixado mas do que restou do combate, sempre com um pé cá e outro lá, no eco das balas disparadas, das alegrias e das tristezas que lá deixou como bagagem a mais que sempre nos pesa nas mãos e na alma na ilusão de se possa recuperar.

E é dessa ilusão de recuperação que o herói (todo o herói) vive nas esquinas circunstanciais do tempo e do modo. Uma ilusão que dói e que une todos os que daqui partiram jovens e regressaram velhos, julgando-se todos os dias na possibilidade de regressar aos cheiros, aos trilhos, aos medos e à camaradagem.
O Tangomau regressa ao passado, antevendo a festa do reencontro e a euforia dos lugares e das memórias.
Mas nem os lugares são os mesmos nem as árvores escondem já inimigos.
As vidas mudaram, ainda que não para melhor ou para maior esperança. Tangomau espreme o limão do convívio e da festa até ao âmago, na generosidade e na imagem dessa gente acossada. Dentro de si o abraço vai até ao último fôlego, até às pontas dos dedos que resistem teimosos ao despegar, sentindo já a melancolia da separação que ainda não se deu, a saudade que lhe irá doer nos dias, nas semanas e nos meses seguintes, como se aquela terra e aquela gente lhe corresse nas artérias entre a boca e as células e se escoasse pelas veia abertas na hora da partida.
Só agora, na última viagem, se completa o herói, acabando o filme e o espectador saindo da sala na imaginação ainda do mistério depois do “the end”.

Aparentemente, as vidas que viveu entre Teilhard de Chardin e conversas com Ruy Cinatti, as viagens de lambreta de Mafra e Lisboa, o romance e “a primeira vez” com a prostituta Maria Luísa em S. Miguel, as patrulhas, as emboscadas, os golpes de mão, as flagelações, um casamento de malucos em Bissau entre duas operações de guerra, a psiquiatria simulada, estão fechadas.
Vendo bem, nem existiram nunca. Nem Finete nem Mato de Cão, nem Missirá nem Bambadinca, nem floresta de galeria, nem bolanhas de arroz, nem colónia, nem mandigas, nem balantas, nem guerra colonial.
Portanto, é falso o Alferes Lopes Ferreira, em Mafra dando instrução de ordem unida, de armamento, de batidas em linha ou em coluna, de guerra subversiva, de tática; São criação pura o Furriel Saiegh, o cozinheiro doutor Quebá Sissé, Infali Soncó avô de Malan, Mamadú Balde passeando na Feira Popular de braço decepado, a conversa com o padre Lâncana Sancó acompanhada de fatias de pão quente, talhadas de marmelada e chá de erva cidreira.
O Tangomau não podia ter passado dois anos da sua existência dormindo em tarimbas improvisadas em moranças de colmo, e quartéis/tabanca, entre dois ou três furriéis brancos, soldados negros e suas mulheres/criança, criançada da barriga empinada, armas prontas para o fogo, galinhas e porcos e cabras, porque o Tangomau nunca existiu, nem o PAIGC, nem a guerra, nem o regime que a forçou. Ninguém iria lembrar-se de se por a ler Simenon, Sartre, Steinbeck, Florbela, J. D. Salinger, Mickey Spillane, Camus, nos breves intervalos da instrução sobre granadas, sobre metralhadoras, sobe a eliminação de sentinelas a faca de mato, em Mafra. Ninguém se poria a ouvir Montverdi, ou Bach, ou Mahaler, ou Shostackovich, entre duas patrulhas nas margens do Geba.

Só uma imaginação muito livre poderá entender que balas tracejantes em ataque do PAIGC destrua parte de Missirá, morança a morança ardendo em labaredas altas, alimentos, livros, roupas civis de militares e fardas militares de civis em andanças de guerra, discos de música clássica, tudo ardendo inexoravelmente pelo meio dos tiros de lá e de cá, rebentamentos de morteirada, gritos de gente, deixando cada qual com a roupa do corpo, apenas, alguns em cueca velha e sem mais nada que os cubra além da santidade da situação, até que socorro de fora se arrime no fim do fogachal e reponha trastes, paparoca e algum ânimo.
Tangomau é uma abstracção.
“Tamgomau é um ser que quando chega a adulto passa a viver entre a civilização dos brancos e os mistérios mais profundos das culturas nativas, numa avenida ou rua qualquer da tal civilização dos brancos, sente cheiros tropicais, deslumbra-se com o arvoredo da floresta de galeria, não teme a cobra verde nem a surucucu, é capaz de ficar pasmado diante do poilão sagrado, está sempre a pedir papaia e água fresca da fonte…”

Tangomau é um tempo limite entre dois espaços geográficos e culturais separados por milhares de quilómetros de água de mar, por séculos de ocupação e de resistências, de muitos sinais do sangue que homens feitos inimigos colheram uns nos outros, deixando como marcas nos seus corações até que o oxigénio dos tempos purificou e tornando possível o abraço.

Tangomau, há quem chame a Beja Santos, hoje e aqui deste lado ainda vivo de uma guerra apodrecendo, como haviam chamado antes, outros e no outro lado da mesma guerra, N’Baké, alfero, irmão.

A partir deste livro, as cartas dos jogos que ainda se batem no pano incolor da memória imperial, ganham novas qualidades e enchem-se de trunfos em todos os naipes.

Espantoso Relatório sobre a praxis de uma guerra cheia de contradições que se iniciava nos quartéis do rectângulo entre coronéis de proeminentes barrigas mentais e jovens licenciados saídos da Universidade e da vida já com luzes mais evidentes sobre o homem e sobre o mundo; entre os velhos Manuais de Instrução Militar e uma realidade histórica que os negava; entre eucaliptais e caminhos velhos de um País esgotado onde se disparavam Mausers e se aprendia a escolher a zona de morte, e a floresta de galeria da Guiné.

Ficção habilmente montada sobre uma realidade que a ultrapassaria, não fora a mão cuidadosa do autor que a constrói num jogo de faz de conta que foi o que realmente foi, e nos retrata, a cada um que palmilhou matas e tarrafos; que contou todos os dias até ao seu regresso; que se julgou inteiro na volta e só depois se apercebeu das costelas que ficaram a faltar-lhe porque, não sabe porquê nem como, as deixou nas cartas militares do seu turismo de fogo na Guiné, e naquele gente negra que com ele ou contra ele se bateram de armas na mão em nome de um travão da história.

José Brás
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Notas de CV:

José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo (Guiné) entre 1966 e 1968

Mário Beja Santos foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca (Guiné) entre 1968 e 1970

 A não perder, a leitura da primeira parte deste texto no poste de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10369: Notas de leitura (400): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (José Brás)

Guiné 63/74 - P10373: Agenda Cultural (212): “Do Tejo ao Rovuma” (sessão de lançamento e apresentação), 28 de Setembro, Biblioteca Municipal - Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)


“Do Tejo ao Rovuma” (sessão de lançamento e apresentação), 28 de Setembro, Biblioteca Municipal - Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)


Companheiros e camaradas,

Agradecia (se for possível) a publicação desta informação no vosso blogue.
Os meus agradecimentos
Carlos Vardasca

“Do Tejo ao Rovuma”

(sessão de lançamento e apresentação)

Dia 28 de Setembro (Sexta-feira) pelas 21,00 horas
Na Biblioteca Municipal
Núcleo Cultural José Afonso (Alhos Vedros)

São as novidades em: 


"Do Tejo ao Rovuma" conta a história (em fotos e outros documentos) de cerca de cento e trinta homens pertencentes à Companhia de Caçadores 3309, que partiram da cidade de Chaves rumo ao norte de Moçambique, aquartelados nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia, onde conviveram com a brutalidade da guerra para onde foram enviados "sem jeito nem prosa". Onde viram os seus afectos violentados por verem tombar em combate companheiros seus com quem partilharam as saudades da distância, mas também pela revolta contida por terem sido arrancados do aconchego familiar e obrigados a participar num conflito "que não sentiam como seu". 

É de facto (na sua devida dimensão) um documento histórico a preservar, pois nele está gravada "Uma breve pausa num tempo daquelas vidas".
Gostaria de poder contar com a vossa presença.

O autor
Carlos Vardasca

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Notas de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10372: Blogoterapia (216): As amizades são para serem vividas (José Câmara / Carlos Vinhal)

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73):


As amizades são para serem vividas

Tinha sido uma manhã repleta de emoções, aquela que vivera no Santuário de Fátima. Mas havia mais para viver naquele dia, muito mais! O nosso grupo meteu pés aos aceleradores em direção a Coimbra, a nossa próxima paragem. Naquela cidade universitária, numa das estações de comboio, iríamos buscar o nosso Cap. Rogério Alves que, vindo do Algarve, ali aguardaria por nós.

A esse grande Homem já me referi várias vezes e do respeito que ele me merece, aliás a todos os membros da CCaç 3327. Não é segredo para ninguém a admiração que sinto por aquele senhor. No nosso abraço há um tremendo respeito pelo Comandante, mas acima de tudo pelo homem que foi e nunca deixou de ser.

Cumprida a nossa missão em Coimbra, o nosso próximo destino seria Mealhada, terra onde se serve, diz-se, o melhor leitão da Bairrada. Mas eu não estava ali por causa do bacorinho e dos espumantes que acompanhariam a delícia da região.
Mesmo assim, justiça seja feita ao pitéu, uma delícia.

Tropa especial na Mealhada: Cap. Alves, Furs. J. Cruz, L. Pinto, J. Câmara, Alf. Almeida e Fur. C. Vinhal e na frente o Cabo Isolino Picanço

Em boa verdade, a ida à Mealhada teve um único propósito, abraçar um amigo muito especial e a sua esposa, o Carlos Vinhal e a Dina. Este casal dispensa apresentações e todos sabemos aquilo que o Carlos representa no nosso blogue, o trabalho que desenvolve e a atitude consensual e de equilíbrio que empresta nos seus artigos e comentários.

Mas o Carlos que eu conheço é muito mais que isso. É, acima de tudo, aquele que me aceitou tal qual eu sou, uma salada de culturas. Aquela que me viu nascer, crescer e educar e a que vivi a maior parte da minha vida. Cedo compreendeu a minha forma arrebatada e emocional com que enfrento as paisagens da Vida e não arredou pé quando, num curto espaço de meses, perdi três membros da minha família. A sua amizade e amparo constantes serão sempre profundamente reconhecidos.

Foi a esse homem extraordinário, amigo e irmão que o tem sido, que fui dar um abraço. Valeu a pena tê-lo feito. Há amizades que nascem sem sabermos como, mas sabemos e bem porque continuam e se cimentam.

Carlos Vinhal, José Câmara e Dina Vinhal

Neste abraço de amizade, nesta oportunidade, também conheci a esposa do Carlos, a Dina, uma senhora de sorriso largo e irradiante de simpatia. Feitas as apresentações, a Dina e a minha esposa entabularam conversa, fizeram o seu próprio mundo como se fossem conhecidas e amigas de longa data.

Obrigado Dina pela forma simpática e amiga como recebeste e trataste a minha esposa.

Após o almoço ainda houve tempo para o casal Vinhal conhecer e conversar com o grupo da Caç 3327, testemunha do nosso abraço.

Na hora da despedida carregava com uma garrafinha de Leça de Palmeira. Acima de tudo, levava um saco de saudades e da certeza que um dia nos voltaremos a encontrar.

Porque a amizade é e será sempre um encontro de vidas e de sentimentos.
José Câmara


2. Comentário de CV:

Caro José, se me permites, vou partilhar contigo este poste.

O Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné trouxe à minha vida de reformado duas coisas, imenso trabalho, mais do que supunha, e muitas, boas e sinceras amizades e, uma ou outra situação menos boa é de longe suplantada pela amizade e consideração que me são dispensadas pela esmagadora maioria da tertúlia.

Como sabes, mercê do convívio com camaradas militares madeirenses, em instrução e na situação de Unidade de quadrícula na Guiné, comecei a ver os nossos ilhéus como um povo especial que não se deixa confinar às margens das ilhas onde nasceram. A maioria emigrou e é vista no mundo como exemplo a seguir, constituindo um orgulho para Portugal.

Entre várias amizades açorianas, mantenho contacto frequente com um velho amigo, o faialense Primeiro Rita da minha Companhia, um dos homens que marcou a minha juventude. Já no Blogue criei uma certa empatia com o Carlos Cordeiro e contigo.
Não posso nem devo esquecer ainda os "meus" 1.ºs Cabos Inácio e Ornelas, madeirenses da minha CART 2732, militares com capacidade para substituir qualquer oficial no comando de um pelotão e que ficaram amigos para o resto da vida.

Nesta foto, estou em presença do irmão José e da Isabel sua esposa, a minha cunhada

Aqui estão companheiras de cinco dos sete  bravos militares presentes na operação "Bacorinho"

Voltando a ti, irmão José, assim nos tratamos particularmente, acho que conquistei a tua amizade quando num momento particularmente aflitivo da tua vida te enviei simples mas sinceras palavras  de conforto. Claro que aceitei sem hesitar a tua sugestão de "ser teu irmão" por ser essa a tua vontade, o que considero uma honra já que por coincidência sou filho único. 

Foi emocionante conhecer-te pessoalmente já que nunca pensei que tal fosse possível. Só a partir da altura que começaste a vir ao Continente ao convívio da tua 3327, este ano foi a tua segunda presença, se perspectivou um encontro, mesmo curto que fosse. O ano passado não sugeri que nos encontrássemos porque era a primeira vez em 40 anos que irias rever os teus camaradas e não quis de algum modo retirar-te desse convívio. Este ano pudemos concretizar o nosso encontro com a agradável presença dos teus camaradas.

A Isabel e a Dina facilmente se entrosaram porque ambas são umas mulheres valentes, a tua lutando a teu lado em terras do Tio Sam e a minha dentro deste pequeno rectângulo peninsular.

Falando agora da garrafinha que levei de Leça da Palmeira, era uma garrafa de Porto D. Antónia.
A figura de Antónia Ferreirinha (a Ferreirinha) é um símbolo de persistência e resistência num mundo de homens, onde os ingleses imperavam. Viúva muito nova, lutou praticamente sozinha contra tudo e contra todos, inclusive contra os males que atacavam as vinhas do Douro, sem nunca se deixar abater.
Quando te levei aquela garrafa quis homenagear o homem que longe do seu solo pátrio, encarou, estranhou e entranhou uma cultura muito diferente da sua e venceu.

Caro José, és alguém que na diáspora honra o nome de Portugal e de quem nos devemos orgulhar. Claro que quando falo de ti, falo daqueles que constituem a "tua casa", a tua esposa Isabel e os vossos filhos e netos.

Caro irmão, desculpa ter ocupado o teu poste mas tinha que dizer isto aqui e agora.
Muito obrigado por seres meu amigo e por me quereres como a um irmão.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012> Guiné 63/74 - P10338: Blogoterapia (215): Obrigado por me terem na vossa lista de amigos e camaradas (José Martins)

Guiné 63/74 - P10371: (Ex)citações (194): O então cap mil Jorge Saraiva Parracho foi o meu primeiro comandante de companhia, a CCAÇ 462, em Chaves e em Ingoré, 1963/64 (José Marques Ferreira)

1. Comentário, de hoje,  do nosso camarada José Marques Ferreira, ex-sold ap armas pesadas inf, Ingoré (1963/65)  ao poste P10370:

Caro camarada Luís Graça:

Visitador habitual e colaborador de ocasião [, foto a seguir, à direita,], foi para mim motivo de algum júbilo e de saudade, ao verificar o conteúdo deste post.

Gostaria que me dessem licença para um pequeno atrevimento em deixar duas notas sobre a figura principal deste. Essa figura está centrada no cor inf  ref Jorge Saraiva Parracho.

Claro que, certamente, não está na intenção do Luís fazer a biografia completa daquele Homem e Militar.
Isto para dizer que Jorge Saraiva Parracho (de seu nome completo) foi, em 1963, «buscar-nos» a Chaves e «levar-nos» para a Guiné, onde já estava com cerca de 12 meses de permanência.

Foi, por isso, o primeiro comandante de Companhia Independente, com a patente de capitão miliciano, da CCaç 462 de que fiz parte. Terminou a comissão dos 24 meses e regressou a Portugal, quando a companhia tinha cerca de 12 meses de Guiné. Foi substituído pelo tenente Luís Manuel das Neves e Silva, pouco depois promovido a capitão

Do então capitão miliciano Jorge Saraiva Parracho, posso afirmar que fui colaborador próximo, apesar das diferenças de patentes que nos diferenciavam. E foi ele que, a certa altura, me convidou a substituir o 1º sargento, que tinha sido evacuado para Lisboa, por acidente de viação, que aqui já historiei, passando eu a «responder» - era este o termo militar que se usava, quando nos queríamos referir os aspectos administrativos e de organização paralela ao serviços que desempenhávamos - no que se refere à escrituração contabilística, mapas, mapinhas e outras coisas que tais, até ao processamento (manual) dos ordenados (pré) e prestar contas ao Batalhão de quem dependíamos administrativa e operacionalmente.

Por força deste convite feito pelo próprio, então capitão.miliciano, Jorge Saraiva Parracho, para assegurar a boa continuidade administrativa e organizativa da companhia, tive a oportunidade de «conviver» e tratar com este militar.

Isto não pretende ser um apontamento de lapso do conteúdo aqui expresso, mas um complemento, que, entendo, devia ser feito.

É claro que tenho visto aqui, por outras circunstâncias e factos, referências ao nome do meu primeiro comandante de companhia. Mas não desta forma tão completa como o Luís sabe fazer

Portanto, o cor inf ref Jorge Saraiva Parracho não andou, na Guiné, só pelos locais apontados (*). Mas também por aqueles que acima indico, principalmente, além de Ingoré, onde se situava o comando da companhia, tínhamos o sector acrescido de Sedengal, S. Domingos, Suzana e Varela (que bela praia esta), para além daqueles locais que abaixo menciono. Mas o nosso comandante só esteve nestes que antes se descrevem.
Um abraço aos tabanqueiros.

JM Ferreira
CCaç 462-Ingoré-Bula-Có-Ponate-Jolmete-Pelundo-Mansoa-Bissau-Niassa-Lisboa (1963/65) [, foto de então, à esquerda]
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(*) Ver também o blogue O Mascote da CCAÇ 462 > 18 de abril de 2011

Foi pelas mãos do Alferes Geraldes que entrei p'ra história da CCaç 462 e pela benção de todos os soldados daquela companhia me fiz mascote.

Lembro-me do Capitão Parracho, comandante da companhia...  Lembro-me do incêndio enorme que houve no edifício que servia de messse dos oficiais... da minha cama na caserna a meio dos demais ... Lembro-me  da cidade de Ingoré na Guiné, anos 1963/1965... Tudo isto há cerca de 50 anos atrás.

A todos os da CCaç 462, eis o Domingos,  o vosso MASCOTE!

[Domingos vive em Portugal, em Castanheira do Castanheira do Ribatejo, Vila Franca de Xira, onde é operador de combustíevis GALP]

Guiné 63/74 - P10370: CCAÇ 3325,Cobras de Guileje (1971/73): Parte VII: Mais fotos do álbum do cor inf ref Jorge Parracho, que integram hoje o Núcleo Museológico Memória de Guiledje



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 14 > O cap Parracho inaugura o "Parque de jogos cap Parracho"... Isto quer dizer que na época jogava-se á bola, em campo descoberto, e possivelmente com a rapaziada do PAIGC,  de folga, a assistir nas "bancadas"...



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 37 > Junto à porta de armas: O  cap Parracho  (à direita) e  um ten cor cuja identidade desconhecemos (à esquerda)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 22 > O cap Parracho,  de perfil... Sabemos que é natural de Mafra.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 25 > O alf mil art Cristina, comandante do 5º Pel Art, e o cap Parracho, na hora da refeição ou do petisco...


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 28 > O cap Parracho e  o alf mil Cunha



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 &gt Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 24 > Um dos poucos momentos de descontração  no Bar/Messe de Oficiais: da direita para a esquerda, alf Rodrigues, alf Cunha, cap Parracho e alf Cristina. Na foto veem-se ainda os dois impedidos (fardados a rigor) no bar/messe de oficais. Foto provavelmente tirada pelo alf  mil José Orlando Almeida e Silva.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 3 > O com-chefe gen António de Spínola numa duas visitas que efetuou a Guileje em 1971. Desconhece-se quem é o civil, à direita.  Presume-se que o oficial que está de costa seja o Cristina, comandante do 5º Pel Art. À sua esquerda, o cap Parracho, Recorde-se que a CCAÇ 3325 foi substituída pela CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) , Os Gringos de Guileje. No final da comissão, o cap Parracho e os seus oficiais foram recebidos no palácio do Governador e obsequiados com um jantar de despedida. Presumimos que Parracho e Spínola tivessem relações cordiais. Que eu saiba, não era prática habitual do Com-chefe socializar com oficiais subalternos... em final de comissão. (LG)


Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD- Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje] (**)


1. Jorge Parracho, enquanto capitão, comandante operacional de uma companhia (CCAÇ 3325), é um camarada nosso que gostaríamos muito que aceitasse o convite, agora aqui formulado, para integrar a nossa Tabanca Grande. A probabilidade de sucesso do nosso intento é, porém,  reduzida, sabendo-se a relutância, por razões pessoais, profissioniais e deontológicas, que têm mostrado os oficiais do quadro dos três ramos das Forças Armadas Portuguesas que combateram no TO da Guiné durante a guerra colonial em dar a cara na Internet, participando nomeadamente em blogues como o nosso. (Naturalmente que há execeções, e muito honrosas: o nosso blogue conta com a presença e a colaboração de diversos oficiais do QP, embora estejam todos eles na situação de reforma).

Não conheço pessoalmente o camarada Jorge Parracho, hoje cor inf ref, comandante que foi, muito querido, dos "Cobras de Guileje".  Mas sei que se trata de uma figura pública, embora discreta,  durante muito tempo ligado ao "Programa Escola Segura" (PES), desde o seu início e fase experimental (em 1986) até à sua institucionalização (em 2005). 


Parracho tinha estado no comando da PSP, em Macau, como major, e mais tarde veio a coordenar o gabinete de segurança ligado ao Gabinete do Secretário de Estado da Educação, Em 2006, ainda exercia essas funções. E nessa qualidade sempre recusou um visão meramente securitária do PES:

(...) "Os objectivos do PES ultrapassam claramente a vertente securitária, constituindo metas prioritárias a promoção de uma cultura de segurança e a integração e socialização das crianças e adolescentes, dentro da missão educativa da escola." (...)

No final de 2006, a CONFAP - Confederação Nacional das Associações de Pais, publica na sua página institucional, em 8 de dezembro de 2006, o seguinte comunicado onde são realçadas as qualidades deste militar e a colaboração prestada ao movimento associativo dos pais e encarregados de educação no âmbito do PES:

(...) Comunicado- Agradecimento ao senhor coronel Jorge Parracho

A segurança dos nossos filhos é um dos factores que muito influenciam o seu sucesso na Escola.

Atento a esta constatação o Ministério da Educação, através do seu Gabinete de Segurança, tem feito ao longo dos últimos anos o necessário acompanhamento às Escolas, promovendo a ligação entre estas, os homens do seu gabinete e as diversas forças de segurança agregadas, ou não, ao “Programa Escola Segura”.

Muito do que foi feito teve a coordenação do Senhor Coronel Jorge Parracho que, com a sua experiência, dedicação e serenidade, contribuiu para o êxito dos diversos programas implementados, nomeadamente o “Programa Escola Segura”.

Tendo o Senhor Coronel Jorge Parracho cessado funções no Ministério da Educação e a Coordenação do Gabinete de Segurança deste Ministério, a CONFAP vem publicamente agradecer a colaboração que ao longo destes anos prestou ao Movimento Associativo de Pais, através das múltiplas intervenções realizadas em eventos promovidos pelas Associações em todo o País e constante empenho levado a efeito na defesa de um clima de segurança e tranquilidade essencial para o crescimento saudável das nossas crianças e adolescentes.

A CONFAP deseja ao Senhor Coronel Jorge Parracho as melhores felicidades pessoais e profissionais.

O Conselho Executivo da CONFAP (...).


2.  De Jorge Parracho temos um álbum fotográfico, de cerca de meia centena de fotos a cores, em formato tif, que ele - ou alguém da sua antiga companhia, a CCAÇ 3325 - terá feito chegar à ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, de modo a integrar o espólio fotográfico do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Como parceiros da AD, o nosso blogue tem acesso a esse espólio, donde constam outros álbuns fotográficos de outras companhias que passaram por Guiledje entre 1964 e 1973.

Parte dessas fotos, que trazem legenda,  já foram divulgadas no nosso blogue. Não podemos em rigor atribuir os créditos fotográficos ao Jorge Parracho. Parte destas fotos são comuns as que constam do blogue do Orlando Silva que, em 8 de agosto último, escreveu-nos nestes termos:

(...) "Caro amigo: Antes de mais, gostaria de informar que autorizo a mostragem/publicação de todas as fotos existentes no meu blogue (guiné3325-vamos falar verdade). Tenho muito mais que poderei enviar, no entanto receio ferir algumas pessoas que têm emitido opiniões menos de acordo com a verdade, no terreno, pois algumas dessas fotos vêm, de alguma forma, contrariar algumas afirmações mais fantasiosas. (,,,)

Parece-me, até, o Orlando Silva (mais conhecido como alf Almeida) era o "fotógtrafi de serviço"... Enfimm, ele terá oportundidade de esclarecer isso... Achámos, entretanto,  por bem selecionar mais umas tantas fotos do "álbum de Jorge Parracho", e editá-las em formato jpg, de modo a poder ilustrar mais e melhor a atuação da CCAÇ 3325, os "Cobras de Guileje" (jan/dez 1971), já documentada pelo nosso camarada Orlando Silva, ex-alf mil, residente em Aveiro, a quem também já dirigimos no devido tempo o convite pessoal para integrar a Tabanca Grande. (Aguardo a tua resposta, Orlando, fazes cá falta).

Aqui vão algumas dessas fotos, com os nossos agradecimentos ao cor inf ref Jorge Parracho, nosso camarada. Recorremos às informações do Orlando Silva  para efeitos de legendagem.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 10 de setembro de 2012 > Guiné 63/73 - P10362: CCAÇ 3325,Cobras de Guileje (1971/73): Parte VI: Atividade operacional, de outubro a dezembro de 1971 (texto: Orlando Silva; fotos: Jorge Parracho)


(**) As unidades sediadas em Guilele, por ordem cronológica (com o respectivo elemento de ligação à ONG AD, do nosso amigo Pepito:

CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965)
CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) (contactos: fur mil Alberto Pires (Teco) e cor art ref Nuno Rubim)
CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966) (contacto: cor art ref Nuno Rubim )
CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967) (contacto: cap Rino)
CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968) (contacto: cap José Neto, já falecido)
CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: alf mil Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: cap mil Abílio Delgado)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: cor inf ref Jorge Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: 1º cabo  enf Amaro Munhoz Samúdio)
CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: fur mil op esp José Casimiro Carvalho)

Guiné 63/74 - P10369: Notas de leitura (400): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (José Brás)

1. Integrada na série Notas de leitura, vamos publicar, em dois postes, uma apreciação "À Viagem de Tangomau", a última obra do nosso camarada Mário Beja Santos, feita pelo outro nosso camarada José Brás, ele próprio um autor muito importante na bibliografia da Guerra do Ultramar (ou Colonial). Porque, sem dúvida, estamos mais uma vez perante uma excelente prosa do camarada José Brás, infelizmente para nós, às vezes um pouco arredado do Blogue, chamamos a especial atenção aos nossos leitores para esta forma diferente de abordagem a um livro.


ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO 
"A VIAGEM DO TANGOMAU" - uma obra prima

Por José Brás

Título danado, este que aqui ponho. Raios me partam!
De onde me virá esta desgraçada tendência para a secura e para a dureza, algumas vezes mais parecendo mesmo uma busca qualquer de desamor, ou pelo menos de incompreensões e animosidades variadas, quando entro na discussão do homem, da sua história conhecida, dos seus anseios, dos trambolhões que dá em cada dia do seu calvário, e também das suas supostas alegrias e vitórias, que a mim sempre me parecem pequenas, comparadas com o que deveriam ser no seu projecto de Deus?
Digo isto, indo nós ainda no princípio desta arenga, desta conversa de mesa de cabeceira, pode dizer-se porque o principal da leitura que fiz ao livro do Mário, a fiz na cama, noite fora varando o silêncio da mata de sobro que enreda o Monte Moinho do Meio.
Andando eu, ainda, às voltas com o título que lhe quero pôr, mais ou menos decidido que possa estar no que, encimando, se pode ler, e já aqui tenho o anúncio desta cagança velha, quase tão velha como eu, na aparência de patada inesperada.
É que as palavras têm peso, cada uma por si se estiver só mas variando quando se juntam a outras. Variando no significado, no sentido, na intenção de quem as junta, na música interior dos sentimentos de quem as lê, sobretudo se quem as lê ou ouve, as sente para si escritas ou para amigos próximos, queridos amigos ou apenas conhecidos de estórias bem ou mal contadas.

E até, diria mais, mesmo que não me abalance a profundidades teóricas, digo que as mesmas palavras postas no conjunto em posições diversas, podem verter-se em gritos de raiva ou em lamúrias, em casos fora deste, evidentemente, como uma equipa de futebol em que troquem as posições, os defesas, os médios e os avançados.
Experimentemos com as que constam do título e do subtítulo presentes, peguemos nelas, mudemos-lhe a posição no conjunto e avaliemos se o que se dizem é o mesmo! Então, por exemplo…


A VIAGEM DO TANGOMAU
- uma obra prima entre o relatório e a ficção

Podemos começar já a comparação desta hipótese com a da primeira escolha, e, de mão sobre o coração e cabeça limpa, neste fórum em que cada um vai ter que se defrontar consigo próprio, ponhamos prós e contras a ver se os eus que temos e nos têm, se se entendem nas variáveis do jogo proposto.
Por exemplo! A mim, ou a um dos de mim, me parece que estas duas propostas se encontram em extremos opostos na possível objectividade de uma interpretação asseada. Na primeira, até parece que, quem escreve, suponhamos que nem sou eu, quererá marcar desde logo uma cor de negativo na apreciação do que vier a produzir-se como opinião.

ENTRE O RELATÓRIO E A FICÇÃO, assim, sem mais nem menos, como marca inicial, sabendo como sabemos que a primeira imagem é quase sempre a que perdura na cabeça de quem vê, de quem sente, de quem guarda o que vê e o que sente, e que, por um lado, relatório traz consigo o ferrete de coisa menor como escrita, formal e sem ponta de liberdade criativa na forma, no estilo e no conteúdo, e que ficção é quase sempre coisa tida como fruto de imaginações fora do quadro de um real que nos cerca e esmaga à maioria, largas vezes resultado de um outro lado de uma extremada liberdade criativa.
Só depois aparece, em itálico e maiúsculas menores, o título da obra, A VIAGEM DO TANGOMAU a que se acrescenta a qualidade de obra prima, na verdade, qualidade já emparedada no espaço imaterial que fica entre um relato objectivo e uma ficção sem ferramentas de medida.
Mas experimentemos outras hipóteses, ainda que isto possa parecer um exercício meio-maluco de quem instalou na cabeça uma certeza a que agora quer sujeitar as variantes possíveis de forma a fazer a verdade única da coisa.


A VIAGEM DO TANGOMAU
Entre o relatório e a ficção - uma obra prima

E que dizer desta outra tentativa de busca de uma solução clara, rigorosa e justa, como imagem primeira, A VIAGEM DO TANGOMAU, de quem quer dar opinião honesta sobre o que leu; sobre as emoções que viveu, lendo; sobre a minúcia do relato do acontecimento objectivo, dos transes circunstanciais de situações extremas, dos personagens reais-quase-imaginação, dos sentimentos, das aflições, das carências absolutas, da paisagem avassaladora, da solidariedade, da fraternidade, da consciência de um humano profundo em cada homem-quase-deus?
E que dizer também da qualidade da escrita, do respeito pelas regras da construção literária no meio de tamanha exaltação de almas, do talento em que evolui a minúcia longa do descritivo, seja do armamento; seja da fisionomia dos homens e das suas qualidades intrínsecas ou aparentes; seja da paisagem espantosa; seja do risco e da iminência do perigo radical; seja da violência com que se enfrenta e elimina o inimigo a quem não se odeia?
Entre o relatório e a ficção, aparece, assim, atenuado pelo que tem atrás, o principal do bolo, e seguido da cereja definitiva que contrapõe e dilui os exageros de (pré)conceitos que carregam, em cada um que lê, de seu modo, relatório e ficção.


Uma obra prima - entre o relatório e a ficção A VIAGEM DO TANGOMAU

Aqui, já nem parece aconselhável continuar o jogo, tão evidente me aparece a possibilidade de diferenças nas minhas próprias leituras, e, mais ainda, nas leituras de cada qual, receptor do que aqui ler e, melhor, se comprou o livro e lhe deu a volta.
Pior ainda, é, querendo eu emendar a mão, arredondar, adoçar o título, fazer a experiência de tirar palavras que carreguem negativamente o que devo dizer, e ver-me na dificuldade de não ser capaz de o fazer.
Por exemplo, o título do livro, A VIAGEM DO TANGOMAU, tem, obrigatoriamente, de permanecer e ninguém discordará disso, aposto singelo contra dobrado.
Uma obra prima, dê lá por onde der e seja lá qual for a vossa opinião, não a tiraria daqui nem a tiro, porque é mesmo isto que penso do livro que acabo de ler, ainda que possa desconfiar da minha insipiência crítica, seja por falta de ferramentas teóricas de análise; seja por falta de distanciamento que a emoção da leitura roubou; seja, até, por alguma espécie de insanidade intelectual que me possa ocorrer nesta etapa da vida.
Entre o relatório e a ficção… se pudesse, seria talvez a parte que aceitaria apagar se a isso fosse obrigado em exigência incontornável.
Mas não tiro!

Primeiro, porque ninguém me obriga, e, segundeiro (sic), porque quando leio este livro de viagens, sinto-me um pouco, desculpem os que me julgarem exagerado, sinto-me um pouco como ao ler Fernão Mendes (ou Mentes?) Pinto na sua sublime “Peregrinação”. Quero eu dizer com isto que nunca sei se a quantidade, o rigor e minúcia das peripécias dramáticas das mil viagens e dos personagens delas, são realidades que ultrapassam a ficção ou se são ficção que, na ânsia da busca do mais fundo do humano, recua até se emaranhar na própria realidade, misturando o profano e o sagrado porque caminhando para Deus, ainda que Deus se unifique no ideal dos muitos deuses que conduzem as ânsias e os gestos dos humanos que se cruzam na paisagem, nas dores e nas alegrias e se prolongam e confundem uns nos outros.

E a minha grande perplexidade perante este grande livro e perante as suas personagens, o Tangomau, sobretudo, vem da descoberta de um homem que, com alguns pontos de toque comigo próprio - a preocupação com o mundo, a procura desse fio que haveria de ligar todos os seres sobre a Terra porque todos buscando a felicidade e o caminho para o Infinito; a sede de justiça social; a aflição pelos horrores do crime colectivo se não erguessem eles próprios os muros que os separam irremediavelmente -, e de um homem que ao mesmo tempo e em aparente independência de razões e de razão, se assume herói numa guerra cruenta e distante do seu passado individual, se adapta à ideia da morte e da aniquilação de um inimigo de quem desconhece quase tudo, e da aniquilação de si próprio, na consciência de que, quem mata, se mata a si também, um pouco em cada bala, um pouco em cada emboscada, um pouco em cada noite de espera pelo inimigo que é seu mister eliminar, ainda que possa renascer também um pouco de cada vez e sair da experiência um outro, se não no talhe da figura, pelo menos no olhar e na alma que o comanda.

E esse homem, visto assim, é um ser diametralmente diferente de mim, este leitor que agora escreve sobre o que leu e que, obviamente, vivendo por esta via o que viveu por outras e reais o autor, se modifica também um pouco e ganha opinião, provavelmente diferente da que teria antes da leitura.
Mas para entender tal diferença entre os dois, é necessário que deixe para trás a preocupação com o título do que aqui se escreve, e passar à releitura do livro, tentando conhecer um Tangomau que ainda o não é, distraído no quotidiano da urbe grande com suas representações de vida e de morte, nas letras, na música, nas artes em geral, na aquisição de algum saber científico, na preocupação do sustento, nas relações e nas convenções sociais que o ligam à família e aos amigos, em círculos que sempre se fecham mais facilmente do que abrem…

E passar à ideia da entrada no serviço militar, nessa altura já e o mesmo que a entrada na guerra em África, pela quase certeza de ter que a viver num futuro muito breve, e ter de a assumir no quotidiano de um mundo novo e também desconhecido até aí, nos tempos, nos lugares, nos modos; nas regras sociais internas, regulamentos, valores, práticas, aprendizagens intensivas que haviam de contrariar as do civil, cidadão e urbano culto que crescera homem exaltando a vida e o amor entre as gentes.
Há que acompanhar a sua transformação no seio de uma sociedade hierarquizada, potenciadora da submissão aquiescente e da prepotência dos poderes, que grassava nos quartéis de Lisboa e arredores, e nos quartéis do mundo inteiro, acho eu, geradora de uma cadeia de comando em que o de cima esmaga o de baixo e o de baixo se submete ao de cima em nome do RDM e dos altos desígnios pátrios das Forças Armadas como um dogma total e irrecusável.

E embarcar com ele para o calor da Guiné, sentir-lhe o espanto no mergulho vertiginoso da comodidade de Lisboa ou da pacatez de Ponta Delgada e da travessia marítima em primeira classe, para um Bissau ainda assim-assim, até ao aparente vazio do Cuor, no calor sufocante de uma viagem fluvial pela estranha e longa nomenclatura dos lugares que ladeiam o Geba, adentrando a mata e o risco, até Bambadinca, até à bolanha de Finete, avançando sempre como se às arrecuas nos sinais de civilização, de olhar espantado, a custo tomando nota, descobrindo o anúncio daquela guerra tonta, de milícias, de armamento tosco, de palavrear novo, de cumprimento gentílico, de desconforto absoluto, de andança permanente na lala, na floresta de galeria, na embosca, na armadilha, no combate inevitável e na inevitabilidade da raiva, da dor, do amor, do ânsia de aniquilar um inimigo escorregadio, na sua rápida progressão de branco em negro, na proximidade do caos e na consciência absoluta de o combater e de se salvar, ao mesmo tempo mandinga, balanta, fula, alferes e milícia, um negro de Missirá, de Finete, da aldeia do Cuor, de Mato de Cão, dos lugares onde matou, morreu e renasceu outro, e um branco das salas da cultura de Lisboa onde se salvou, de novo renascendo, não o mesmo que partira dois anos antes, nem o que renascera dos corpos decepados de seus soldados negros, mas um novo, na justificação plena de que Tangomau não é “aquele que morre ausente ou desterrado da pátria”, mas um outro que tendo-se da Pátria desterrado, a manteve sempre em si na provação, e a devolveu aos seus mais clara e justa.

Porquê, então, o RELATÓRIO do título desta abordagem?

Lembro-me de ter lido de um camarada do blogue, Henriques da Silva, um magnífico texto de abordagem ao livro do Mário que, entre muitas palavras de agrado e de positiva opinião sobre a leitura, tocava na questão da minúcia e do pormenor, considerando - Detecta-se uma certa "overdose" no que concerne as descrições exaustivas das armas e mecanismos das mesmas…” Mauser, G3, Dreise, Breda, Vigneron, bazooka, lança-granadas-foguete, morteiros, granadas ofensivas e defensivas, suas peças desmontadas e remontadas, limpeza, utilidades, performances, peso. As ferramentas de um suposto combatente, pás, machadas-picareta, artefactos antigos ou modernos de uma guerra que se teria de assumir por inteiro.
Lembro-me também de, em comentário, ter eu concordado com Henriques da Silva nessa abordagem, excepto na afirmação da “overdose” das descrições, comentando, então, “Partilho inteiramente a opinião de Henriques da Silva, quanto à qualidade da obra literária em apreço, seja qual for o ângulo porque a queiramos analisar, mesmo estando apenas acerca de metade da sua leitura.
Discordo da apreciação que faz a um alegado exagero de pormenor na descrição do armamento e de outros dados, episódios, paisagens e pessoas. Penso mesmo que tal "exagero", abordando numa riquíssima e dinâmica escrita, quase nos pondo nas mãos, nos olhos e na alma as coisas a que dá vida, é mesmo um achado imprescindível que eleva o livro a um nível muitíssimo elevado.”

E eu acrescento aqui e agora os exercícios e as manobras, a prática de patrulhar, de emboscar, de reagir ao fogo, de atacar em golpe de mão ou …
E acrescento ainda a paisagem, o envolvimento, o Convento, a Tapada, os itinerários de vinhas ou de mar-à-vista na Região Oeste, de tabancas de gente pobre da Guiné, de arrozal, de floresta quase virgem, de rios que serpenteiam paralelos ou se cruzam, se continuam, de tarrafo, de bolanhas.

E ponho mais ainda os teatros de Lisboa, as peças e os actores, os filmes, a música de Pucini e seus cantores, as bibliotecas, as tertúlias literárias. Ou Ponta Delgada com sua praxis, sua cultura às claras ou na sombra dos dias, a arquitetura da cidade e, de novo as salas de música, os museus, as famílias. E Bissau com seus edifícios, suas avenidas, Pidjiguiti, alguns museus e bibliotecas e restaurantes e hospital e hotel e QG, no Cuor os palmeirais, o poilão, as laranjeiras, a extensa lista de nomes de lugares como o Chicri, Sansão, os Nhajões, Malandim, Gambana, Amedalai, Xime, Madina Colhido, Colicumbel, Taibatá, Canturé, Buruntoni… trilhos e picadas, operações, as cenas de combate, a violência do fogo, as gentes do inimigo abatidas, moranças ardendo, armas apreendidas, e as minas anti-carro no efeito das suas explosões sob GMC’s e Unimogues, sob o corpo de gente nossa, e as fomes e sedes, os medos, o cansaço, o esgotamento físico e psicológico, o antagonismo tribal e religioso, os usos e os costumes, tudo entremeado por citações, pequenas e extensas passagens de obras filosóficas, de romances, de poesia, de evocações de obras de outras guerras, comparações, lembranças de ditos e sentenças, chamados a propósito e em consonância com o que se escreve sobre a vida, seja um chá no Chiado, uma leitura de poesia, uma emboscada em Samba Silate, uma flagelação em Finete.

Pode parecer exagerado o pormenor de tão abundante descrição dos gestos, das coisas, das urbes grandes e pequenas, dos actos, dos exemplos, dos pensamentos, dos sonhos, das raivas, das dores, das mãos que se dão ou se retiram, da busca de razões e das verdades, das descobertas, das confirmações, de Deus e de deuses, do mínimo, das partes e do todo, do outro e de si próprio, uno, múltiplo e repartível.
Pode parecer, sim um exagero.
A mim, contudo, o que parece é que sem isso, sem os pormenores e as minúcias, sem os odores e os sons, sem as texturas, as formas e os volumes, sem os tempos e os lugares exactos de cada peça, de cada arma, de cada casa, de cada livro lido, de cada concerto, de cada terreno que se pisa, de cada emboscada sofrida ou montada, de cada noite na humidade da mata, de cada patrulha, de cada choro, de cada praga, sem estas coisas descritas ao pormenor da realidade real, como um gigantesco e plural relatório sobre coisas, gente e animais, como, repito, se poderia, depois, garantir a sua recriação extrema em que o real se aproxima tanto da ficção, que se torna ficção o que é real e real parece ficção.

Como se poderia entender esse homem que de Lisboa parte para Mafra e para Ponta Delgada e para Bissau, cristão, humanista, homem pleno dessa cultura que se constrói pelo belo segundo padrões urbanos, e nessas viagens se vai transformando gradualmente no guerreiro que se completa comandando tropas negras e brancas, mais negras que brancas, diga-se, de tropas negras combatendo outras tropas negras e dela recebe combate total, a bem dizer, irmão contra irmão, em o ódio, em raivas, em juras de morte recíprocas, e também na certeza de que nenhum soldado pode evitar o jogo extremo da vida e da morte, mesmo que sem o amparo de grandes filosofias, de pátrias seguras ou de história longa e assumida?
Como poderia tal branco de Lisboa se tornar guerreiro negro do Cuor, N’Baké, sábio e corajoso irmão do negro com quem jogava a vida de mão dada?
Como, finalmente, se poderia aceitar que se colocasse no título disto a palavra ficção, ainda por cima envolta na afirmação da ideia de obra prima, sem se imaginar que cada leitor se vá envolver profundamente com o viver deste homem e destes homens, brancos e negros, por dentro e por fora brancos negros e negros brancos, com eles respirando os odores do capim apodrecido, sofrendo as picadas de mosquitos, delirando nas febres do mesmo paludismo, na pista do mais profundo que pode ter ser humano, tentando, cada um à sua medida, encontrar-lhe os resquícios dessa mesma humanidade que os pode levar a dizer – este podia ser eu.

Por isso, ainda muito cedo na leitura da obra, enviei ao Mário a peça seguinte que foi posteriormente editada no blogue: - “Acabei de participar na visita que o senhor General te fez em Missirá (1).
E se digo participar em vez de assistir, é apenas porque também lá estava quando descobriste os dois pontinhos que haviam de resolver-se na figura de helis, cavalos de Tróia que haveriam de abrir-se para despejar o homem e essa gente/sombra do do monóculo decorativo.
Aliás, cortava "cibo" convosco porque os cibos que vos davam jeito no reforço dos abrigos de Missirá, eram os mesmos cibos que eu cortava a Sul de Medjo, muito perto de Quebo, uma Tabanca abandonada junto a um dos braços em que o Rio Cacine capricha a Norte, ainda antes de caprichar a Gadamael Porto, mesmíssimos cibos que também nos faltavam em Medjo para os mesmos fins.

Saindo um pouco da tua lavra, meto aqui enxada para de dizer do caricato que foi, nessa tarefa, ter eu atravessado uma água não muito funda e dessa água ter saído cravadinho de sanguessugas, perdendo algum tempo de cigarro aceso numa mão e pauzinho fino na outra, para me livrar das bichas, uma a uma.
Voltando a Missirá (adiantando que outra Missirá tínhamos na estrada Aldeia Formosa (outro Quebo-Buba), Missirá, esta, abandonada também e lugar pouco abençoado para tropa branca, voltando a Missirá, digo, ao teu e não ao do Sul, também eu me espantei com os maus modos do homem, retrato exacto nas perguntas e nas questões que te colocou, desse militar antigo, feito na Academia deles, cheio de empáfia e de mando, mestres duma infalibilidade alejada do real da guerra em que andávamos e que por mais comissões feitas não entenderiam nunca, provando-se dito não sei de quem que eu li um dia "a guerra é coisa demasiado complexa para ser dirigida por militares".

Acabara há pouco de viver a tua revolta contra as parvoíces dessas operações volumosas em que te meteram para atacar Madina, porque também em Medjo se meteram um dia duas Companhias a dormir pelo chão para atacarem Salancaur.
Salancaur ficava a tão curta distância de Medjo que quase os ouvíamos falar na bolanha de arroz que cultivavam com esmero. Por isso, Bissau imaginou que saindo de madrugada, atacaríamos ao nascer do Sol e quase almoçaríamos de novo em Medjo. Afinal, três dias não deram para vencer aquela mata densa, aberta à faca para se poder avançar fora da picada. A fome e a sede começaram a fazer efeito e as evacuações por esgotamento, fome e sede. Acabaram com o plano de Bissau.
Sei que estranharás que afirme lá estar contigo mas confirmo isso a pés juntos, porque a ler-te, sinto o cheiro do capim podre e aquele bafo que dele sai a cada passo; sinto as picadas dos mosquitos que nos atacam nos olhos, no nariz, nos ouvidos e na boca; sinto a majestade daquela mata sub-tropical que nos esmaga e desorienta o passo e a vontade; sinto o sabor do sangue dos amigos estraçalhados pelas minas e basucadas.
E se sinto tudo isso, e muito mais que a insipiência da minha palavra não explica e esta mensagem curta não justifica explicação, apenas porque o dizes tão bem que me repões de pés e de alma no Sul da Guiné e num tempo que talvez fosse melhor esquecer.
Continuarei a caminhar nos meus trilhos de Guileje pela palavra que me falta ainda ler-te, e nem sei se hei-de agradecer-te, se lamentar o tempo e o modo que reviverei recuperando-me aqui como se fosse lá.
Obrigado, Mário”.

(Continua)
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Notas de CV:

José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo (Guiné) entre 1966 e 1968

Mário Beja Santos foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca (Guiné) entre 1968 e 1970

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10358: Notas de leitura (399): Guiné-Bissau - O Estado da Nação (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10368: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (24): África subsariana: As ex-colónias neocolonizadas, as ex-colónias abandonadas e os caso da Guiné-Bissau, Gãmbia e Casamansa... É preciso salvar a Guiné-Bissau.

1. Texto enviado pelo Antº Rosinha, há já cerca de 3 meses... Julgamos que não perdeu atualidade, oportunidade e importância... É a opinião de um homem que nunca foi "cólon" /(, trata-se de auto-ironia!), que ama a Guiné-Bissau e os guineenses, e que nos obriga a rever ou questionar ideias feitas, estereótipos, mitos, certezas, à esquerda e àdireita, em suma, um camarada que nos tira, muitas vezes, do "sofá do nosso conforto"... (LG)

De: António Rosinha <antoniorosinha@gmail.com>

Data: 14 de Junho de 2012 19:21

Assunto: África subsariana: As ex-colónias neocolonizadas, as ex-colónias abandonadas e o caso da Guiné-Bissau / CasamanÇA

Amigos editores se acharem que é de publicar no blogue façam-no caso contrário podem divulgar entre o pessoal . 


Um abraço, Antº Rosinha


PS - Data de hoje...

(...) Para justificação do que eu escrevo, queria dar uma pequena explicação pois que cientificamente, jornalisticamente ou políticamente não tenho arcaboiço de qualquer espécie e as pessoas podem pensar que falo por falar.

Tudo o que falo foi "respigos" que fui colhendo, durante 13 anos, de trabalhadores das obras, de engenheiros das Obras Públicas, meus amigos,  em conversas informais, e principalmente de uma viagem a Kolda com um 'chaufeur' meu amigo das Obras Públicas em que fomos abordados por jovens que seriam guerrilheiros, quase todos ou todos mesmo,  pela independência de Casamansa, todos a falar crioulo, muito eufóricos a cumprimentarem-nos por sermos de Bissau.

Ainda não era noite, eu já dentro da Guiné, soubemos que naquela região havia incursões do exército senegalês em perseguição de guerrilheiros dentro da Guiné.

Isto foi em 1993, mas como já conhecia outras fronteiras africanas, e sei o que se passa na Guiné e redondezas,  principalmente quando se fala em petróleo no mar, pode-se esperar o pior.

Esperemos que tudo se resolva, mas as cabeças dos próprios guineenses anda muito baralhada, quando sabemos que há imensos (mais elucidados) na diàspora que já nem pensam em regressar. (...)


2. Salvemos a Guiné-Bissau
por Antº Rosinha


Toda a gente conhece os golpes de estado crónicos da Guiné-Bissau, e a quem interessam esses golpes, mas ninguém fala abertamente. A Guiné-Bissau tem tanta lógica como a Gàmbia a sobreviver naquele mundo francófono.

Quando os países africanos subsarianos, tal como se conhecem a partir dos anos 50 do século passado,  ficaram independentes, foi imposta aos cidadãos uma bandeira e um hino só conhecidos por uma minoria que tinha tido acesso a uma educação colonial.

Alguns desses países (colónias) só existiam no mapa, praticamente a partir de 1900. (Em 1900 foram marcadas em Londres as fronteiras de Angola, Moçambique, Rodésia do Norte e do Sul). Ou seja, etnicamente ainda hoje não há fronteiras, e mesmo fisicamente e geograficamente, ainda hoje para muitos habitantes desses países ainda não há país pois nem há bem a certeza em alguns casos se os marcos fronteiriços coloniais estão bem definidos no campo ou se é apenas no papel.

Mas a guerra civil que se gerou em diversos países dessa África subsariana,  durante e após essas independências, vai continuar periódica ou permanente em quase todos esses países. 

Mas tanto os países colonizadores como as Nações Unidas sabiam que seria inevitável a guerra. E o mundo inteiro acha natural e os próprios dirigentes africanos guerream-se com as melhores armas que os países desenvolvidos lhe fornecem.

Ora , como apenas uns poucos cidadãos de cada um desses países tinham assimilado a cultura semelhante à do colono nos anos 50, como se iam auto-administrar igual a países que vinham do tempo de Carlos Magno e do Rei Artur? E m apenas 24 horas! Foram marcadas datas de independências com poucos meses de antecedência do que devia ser um grande dia.

Muito facilmente se resolveu o problema, os poucos dirigentes mais ou menos preparados passaram a governar sob a orientação do antigo cólon, e aparece o NEOCOLONIALISMO.

E aqui aparecem os países que não tendo uma potência que os "neocolonize", que são os casos das ex-colónias portuguesas e belgas, sofrem as influências mais nefastas do que os outros que têm quem os «proteja».

Os exemplos da guerra de 27 anos em Angola, de Moçambique (mais ou menos 15 anos de guerra fratricida), e os autênticos genocídios nas ex-colónias belgas, são o exemplo das ex-colónias «abandonadas» a que me refiro.

E aqui temos o caso da Guiné-Bissau  que,  segundo muitos guineenses,  «teve o azar de ser colonizado por um país que é tão fraco e tão pobre como a própria Guiné». E como o ex-colonizador perdeu toda a influência militar, política e económica,  naquele território, a Guiné tornou-se vítima de uma invasão descomunal dos mais diversos organismos internacionais, ONG,  empresários, religiosos, muçulmanos e cristãos, enfim, tudo aquilo a que se chamou "COOPERAÇÕES".

Mesmo as cooperações melhor intencionadas tornavam-se perniciosas, porque inadaptadas, impróprias e desestruturantes e viciantes (Suécia e URSS). À Guiné tudo afluiu, até revolucionários ideológicos abrigava a troco de ajudas, refugiados dos países vizinhos (Casamansa, Conacri, independentistas das Canárias, palestinos…).

Os guineenses após a independência nunca tiveram uma guerra civil entre o povo, porque o povo nunca tem armas, apenas os militares as têm e se matam entre eles e os políticos. Mas o povo não compreende nem colabora nem acredita nos militares nem nos governantes, reage apenas muito passivamente. Quem compreende bem os dirigentes guineenses são os vizinhos,  principalmente os do norte.

Muitos comerciantes guineenses tem uma vida dupla e até tripla, como a etnia deles se estende pelo Senegal, Gâmbia e mais distante ainda, são apenas Guineenses enquanto lhe convem.

Como a economia influenciada por esses comerciantes (muçulmanos) é baseada nos países vizinhos, sem qualquer controlo das autoridades (corrupção), para esses comerciantes o desaparecimento da fronteira norte é como que se não exista, na realidade a fronteira serve apenas para dar umas gorjetas a uns tantos polícias de um lado e do outro.

Mas existe um engulho para o Senegal e seu protector,  a França, que é a existência de uma Guiné-Bissau independente, estruturada e personalizada, é perigosíssima e subversiva pois mantem uma ligação étnica e territorial e linguística com a Casamansa, que vive de costas para o Senegal. [Imagem à direita:  Casamansa, a vermelho; Senegal, a cor de rosa; e no meio, a branco, o espaço correspondente à Gâmbia, anglófona... Fonte: Wikipédia].

Portanto cada golpe de estado na Guiné-Bissau que desestabilize este país, é sempre apoiado directa ou indirectamente pelos vizinhos.

Neste golpe e no de 1998 entraram os militares vizinhos, e a intenção é mesmo darem o golpe fatal neste PALOP. Só que desta vez uma tal CEDEAO é um cavalo de Troia que traz na sua barriga todo o veneno para acabar com a Guiné-Bissau como país de corpo inteiro.

Se não for desta tentativa o fim deste país com este golpe de estado, e os guineenses não abram os olhos para ver quem é mesmo guineense verdadeiramente responsável, não demora que haja outra tentativa mais decisiva, em próxima ocasião.

O discurso anti-colonial e anti-PALOP faz parte desse jogo por alguns dirigentes, que muitas vezes é usado ingenuamente por demagogos dos diversos governos, que o usam com outras intenções mais pessoais.

Sempre, desde a independência, o mundo de cooperações internacionais que invadiram a Guiné, massacraram os guineenses com a aleivosia que estavam ali para ajudar a Guiné, que os portugueses atrasaram durante 500 anos.

Este discurso foi e é usado até à exaustão para afastar os guineenses do fraquíssimo cordão umbilical lusófilo (PALOP), por aqueles a quem interessa directamente esse afastamento. Talvez este golpe de estado já tenha acabado com as resistências, e a CEDEAO só já saia quando aquele território se transformar num protectorado qualquer do Senegal, e assim acabar também com o perigo dos rebeldes da Casamansa, que são mais lusófilos que muitos guineenses. (Testemunhei isso pessoalmente em Kolda).

Os rebeldes de Casamansa expressavam-se em crioulo de Bissau, pelo menos nos anos 90. E notava-se que usavam subversivamente essa língua.

Mas pior que tudo o que se passa actualmente, será um dia que se concretize o que se fala de vez em quando: Haver petróleo no mar de Bissau. Existe um contencioso sobre as fronteiras marítimas com os vizinhos do norte e do sul. Este problema está em banho-maria, mas dentro de uma panela de pressão.

Como economicamente a Guiné Bissau é dependente dos vizinhos e da França, directamente (CFA), a solução à Timor não se pode aplicar a este país.

É preciso salvar a Guiné que tem tanto direito a sobreviver como a Gàmbia, seu vizinho. (**)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 29 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10087: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (23): Esse tal de linguajar de Luanda, só foi possível ouvi-lo em 2012 na Ilha de Luanda, porque em 1961 não se deu ouvidos às catanas de Holden Roberto (UPA)


(`**) Tomamos a liberdade de reproduzir aqui o artigo:

Casamansa, um grito de liberdade sufocado, por Adelto Gonçalves (#) 

A situação dramática vivida por uma província do Senegal é mais um exemplo da herança deixada pelos colonizadores europeus

 Provavelmente, você nunca ouviu alguém falar da Casamansa. Também, pudera. Não se sabe de jornal, revista ou emissora de rádio e TV brasileiros que tenham citado o nome da Casamansa nos últimos anos. Não imagine, porém, que, por trás de tudo, haja uma conspiração de silêncio. É falta de informação mesmo dos jornalistas. No Brasil, ninguém sabe onde fica a Casamansa. Nem o que significa.

E, no entanto, a fronteira entre a Casamansa, província do Senegal, e a Guiné-Bissau, na África Ocidental, vive hoje momentos de desespero, com mais de cinco mil de pessoas em fuga pelo campo, atemorizadas com as hostilidades que opõem o exército guineense a uma ala do Movimento das Forças Democráticas da Casamansa (MFDC). Há mais de 2.500 refugiados, segundo a Cruz Vermelha, e a Anistia Internacional já recebeu denúncias de violações dos direitos humanos de civis. Tanto na Casamansa como na Guiné-Bissau fala-se português. Não é incrível que, no Brasil, não se escreva uma linha a respeito de um drama que envolve povos que falam a língua de Camões e Machado de Assis?

Os confrontos começaram no dia 16 de março, quando guerrilheiros do MFDC lançaram um ataque suicida na cidade de São Domingos e 13 rebeldes morreram. O exército guineense respondeu com artilharia pesada contra a base dos guerrilheiros a cerca de 130 quilômetros de Bissau, capital do país, e a menos de seis da fronteira com o Senegal. Os bombardeios têm como alvo bases do comandante Salif Sadio, líder de uma facção do MFDC, a Frente Sul, que se recusou a assinar um acordo de paz em dezembro de 2004 com o governo de Dacar.

Pressionadas pelo exército senegalês, as forças de Sadio deixaram a Casamansa, refugiando-se na Barranca da Mandioca, na Guiné-Bissau. Agora, o exército guineense promete expulsar até o último intruso. “Vamos fazer uma operação limpeza para tirar essa sujeira de nosso território”, prometeu Antônio Indjai, chefe do comando militar estacionado em São Domingos. “Os rebeldes não vão aceitar ser capturados como galinhas”, respondeu Zacarias Goubiaby, lugar-tenente do comandante Sadio. “Vamos combater como leões”.

Esse conflito seja recente. É resultado de outro que começou em 1982, quando uma manifestação em Zinguinchor, capital da Casamansa, reuniu mais de 100 mil pessoas de várias etnias reclamando a independência da província. Houve repressão e mais de mil mortos.

Foi a partir de então que o MFDC partiu para a luta armada contra o governo de Dacar. Os 32.350 quilômetros quadrados do território da Casamansa contam com vastas reservas de petróleo, o que tem atraído a cobiça de empresas estrangeiras, inclusive uma da Malásia, que adquiriu recentemente do governo senegalês os direitos de exploração.

Já o resto do Senegal é rico apenas em fosfato e o país sobrevive com a ajuda que o governo francês envia regularmente. Só que a maior parte desses recursos fica em Dacar, segundo a queixa que se ouve na Casamansa. Isso explica em boa parte as razões históricas do conflito.

Desde 1982, as hostilidades dos separatistas da Casamansa são contra o governo de Dacar, mas, devido à fronteira, sempre ocorreram incursões no território guineense, inclusive com a tomada de “tabancas” (aldeias), seqüestros e mortes. A incursão maior ocorreu em 1998, quando as forças separatistas da Casamansa ajudaram o falecido brigadeiro Ansumane Mane a afastar do poder o presidente João Bernardo Nino Vieira. Depois, com Kumba Ialá na presidência, os separatistas passaram a contar com o apoio estratégico da Guiné-Bissau.

De volta ao poder em Bissau, depois das eleições presidenciais de junho de 2005, Nino Vieira acertou com o presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, uma operação conjunta para acabar com o foco guerrilheiro. Para tanto, Vieira e Wade contam com o apoio do comandante César Badiate, que se opõe a Salif Sadio dentro do MFDC e assinou o acordo de paz de 2004. Resolver a questão da Casamansa, inclusive, é uma promessa de campanha de Wade, eleito em 2000 e candidato à reeleição em 2007.

O bom relacionamento entre os países vizinhos é visto como fundamental para que o petróleo comece a ser explorado em maior profusão. Mas a posição política de Nino Vieira não é sólida: em março, enquanto estava em Lisboa para a posse do presidente português Aníbal Cavaco Silva, correram rumores de uma tentativa de golpe de Estado.

Antes, Vieira havia acusado algumas altas patentes de “conivência” com os rebeldes da Casamansa, enquanto o porta-voz do estado-maior do exército, tenente-coronel Arsênio Balde, desmentia que chefes militares tivessem recebido dinheiro do governo do Senegal para aniquilar a rebelião. Já dissidentes do PAIGC, principal partido do país, acusam Vieira de promover uma “caça às bruxas”, de pressionar cidadãos independentes e de manter “prisioneiros de guerra”.

A ajuda humanitária internacional começou a chegar a Casamansa e a Guiné-Bissau, mas ainda em quantidade reduzida. Vilas como Susana e Varela estão isoladas desde que os rebeldes colocaram minas na estrada que as liga a São Domingos. Uma dessas minas explodiu e provocou 12 mortos nos primeiros dias dos confrontos.

Até agora, o conflito só tem recebido indiferença por parte de Portugal e Brasil. Em razão da ajuda financeira que recebe da União Européia, o governo português, aparentemente, teme incomodar os interesses da França na região.

Também a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), até agora, não se manifestou. A entidade reúne Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste e, em tese, poderia abrigar uma Casamansa independente. Para mediar o conflito, o chefe de Estado do Senegal, com o apoio da Guiné-Bissau, preferiu convidar o presidente da Gâmbia, Yaya Jammeh. 

Um drama esquecido

O domínio do Senegal na região vem sendo contestado há muito tempo, mas recrudesceu quando, entre 1974 e 1975, as antigas províncias de Portugal no Ultramar tornaram-se nações independentes e as forças políticas da Casamansa viram no movimento uma oportunidade de reivindicar a sua origem de “ex-colônia portuguesa”.

Faz quase um século que a Casamansa deixou de ser colônia portuguesa: em 1908, os portugueses foram obrigados a ceder definitivamente a região à França, passando a ocupar apenas a Guiné. Mas, desde 1884-1885, os franceses vinham tentando resolver a questão a seu favor, pressionando Portugal no âmbito da Conferência de Berlim, que dividiu a África entre ingleses, franceses, belgas, alemães e portugueses.

Historicamente, os portugueses chegaram primeiro. Foi em 1445 que o português Diniz Dias “descobriu” a Casamansa, que, na linguagem do país, significa rei do rio dos Cassangas, porque a palavra mansa quer dizer rei ou senhor. Mas há historiadores que afirmam ter sido em 1446 que a região foi “descoberta”, quando Antônio de Nolle e Luís de Cadamosto, por ordem do infante Dom Henrique, percorreram a costa do rio Geba.

A colônia nasceu a partir de uma feitoria em Zinguinchor — hoje uma cidade com cerca de um milhão de habitantes —, criada para intensificar o comércio de escravos com o Império Gabu, reino que englobava, além da Casamansa, a Guiné-Bissau e a Gâmbia, reunindo várias etnias, como a jola — que sempre foi majoritária —, a fula, a banta e a manjaco.

Os franceses, atraídos pelo florescente comércio de carne humana, chegaram em 1459. No século XVIII, franceses e portugueses combateram entre si na região. A partir de 1908, a Casamansa tornou-se colônia francesa, mas não integrada ao Senegal.

Depois da Segunda Guerra Mundial, foi criada a Federação do Mali, que reunia também Senegal e Casamansa. Em 1947, com a liberação das atividades políticas pelas autoridades coloniais, surgiram o Bloco Democrático Senegalês, comandado por Leopold Senghor, e o MFDC, que só optou pela luta armada a partir de 1982.

Proclamada a independência da Federação em 1958, o Mali, dois anos mais tarde, retirou-se da aliança porque exigia que a capital fosse Bamako em vez de Dacar. Casamansa ficou, então, unida ao Senegal por um documento que previa a coalizão por duas décadas. Mas, em 1980, Senghor entendeu que, “para o bem das duas nações”, a Casamansa deveria continuar unida ao Senegal. Quando ele já não estava no poder, ocorreu a tragédia de Zinguinchor.

Dos 3,5 milhões de habitantes, apenas 10% são alfabetizados e aprenderam obrigatoriamente um pouco de francês. O povo fala mesmo o idioma jola e o crioulo português. Só alguns integrantes da elite, que estudaram na França, usam o francês. As ligações com o mundo lusófono são mais fortes. Até porque Portugal esteve lá 462 anos, enquanto a presença francesa não passou de oito décadas.

Apesar do esforço de Dacar para erradicar a cultura lusa, há alguns monumentos em ruínas que testemunham a presença portuguesa. Mas, em razão da repressão, não há na Casamansa nenhum jornal ou emissora de rádio em língua portuguesa. Só entram jornais em francês impressos em Dacar.

Originalmente publicado na Revista Fórum,  São Paulo, ano 4, nº 39, junho 2006, pp. 42-43.  Dispoinível na Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, nº 3, janeiro de 2010 (Com a devida vénia...)

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(#) Adelto Gonçalves, nascido em Santos, Brasil, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanholas e Hispanoamericana pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Universidade Santa Cecília, 1997), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981) e Mariela morta (Ourinhos-SP, Complemento, 1977)... Fonte Revista RTriploV.


Guiné 63/74 - P10367: Convívios (473): Almoço do pessoal da CCAÇ 2791 a realizar no dia 29 de Setembro de 2012 em Penafiel (Luís Faria)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10351: Convívios (472): 23º Almoço/Convívio da 3ª CCAÇ do BCAÇ 4612/72 – 6 de Outubro de 2012 – Caldas da Rainha (Jorge Canhão)