Pesquisar neste blogue

domingo, 9 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12814: Manuscrito(s) (Luís Graça) (23): Gostei de voltar a Tavira (Parte VI): E de rever as salinas, a estrada das Quatro Águas, Santa Luzia, Cabanas, Vila Real de Santo António...



Tavira > Convento das Bernardas Residence > 2 de fevereiro de 2014 > Piscina interior, de água salgada, de 400 m2.


Tavira > Convento das Bernardas Residence > 2 de fevereiro de 2014 > Vista das seculares salinas de Tavira... O que os velhos instruendos taklvez não saibam é que a Comissão Europeia atribuiu recentemente  a Denominação de Origem Protegida (DOP) ao produto “Flor de Sal de Tavira” ou ”Sal de Tavira”... As características únicas da Flor de Sal são reconhecidas nacional e internacionalmente pelos grandes chefes de cozinha...A designação DOP é atribuída a um produto ou género alimentício cuja produção, transformação e elaboração devem ocorrer numa área geográfica determinada a partir de um saber fazer reconhecido... A candidatura remonta a 2011... Mas o ten Madeira e outros instrutores do CISMI, na década de 1960,  já estavam avançados quase meio século, quando nos mandavam "trabalhar que nem mouros" para as salinas...


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > Foz do Rio Gilão... O topónimo Quatro Águas designa o sítio da i(i) confluência do Rio Gilão, do (ii) Canal de Cabanas, do (iii) Canal de Tavira e da (iv) barra de acesso ao mar através da ilha de Tavira...


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa >  2 de fevereiro de 2014 > Arraial Ferreira Neto (**)



Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa >2 de fevereiro de 2014 >  Barco de pesca


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014   > O famoso Arraial Ferreira Neto, hoje transformado em umidade hoteleira (**)


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > O barco que faz a travessia para a Ilha de Tavira


Tavira > Quatro  Águas > Parque Natural da Ilha Formosa > 2 de fevereiro de 2014 > Travessia Quatro Águas- Ilha de Tavira... Tabela de preços e horários... Como seriam os preços no final dos anos 60 ?



Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Marginal


Tavira > Santa Luzia > 1 de  fevereiro de 2014 > Ostras da ria Formosa... No nosso tempo, no tempo em que passámos pelo CISMI, não dávamos grande valor às ostras... Alguns de nós passaram a apreciá-las em Bissau e em Quinhamel...



Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Casa típica, tradicional...


Tavira > Santa Luzia > 1 de fevereiro de 2014 > Táxis marítimos: tabela de preços e horários... Não tenho ideia de haver estes serviços no tempo...


Vila Real de Santo António > 1 de fevereiro de 2014 > Praça Marquês de Pombal > A placa do obelisco erguido em 1775, a expensas do comércio local das pescarias, e que simbolizava o poder do rei D. José, e do seu Secretário Estado do Reino, o Marquês de Pombal, verdadeiro fundador da cidade... 

"Vila Real de Santo António foi fundada em 1774, por vontade expressa do Marquês de Pombal, perto da foz do Guadiana. A cidade constitui um testemunho histórico importante devido ao facto de ter sido construída de raíz em apenas dois anos, segundo o padrão iluminista do século XVIII, caracterizado pela planimetria, altimetria e volumetria. A vila começou a ser construída em 1774 com base num processo de pré-fabrico  e estandardização, técnicas que a Casa do Risco das Obras Públicas empregava desde a reconstrução de Lisboa, ficando em Agosto do mesmo ano concluída toda a parte destinada à Sociedade das Pescarias.Foi rápida a sua construção, pois assim o exigiam as contingências da política face a Espanha e a vontade férrea do Marquês de Pombal, ministro do rei D. José I (1714-1777)" (...) (Fonte: CM Vila Real de Santo António).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


1. E damos por encerrado, aqui, o roteiro (breve) de Tavira, aonde regressei, com "olhos de ver" e sem "mágoa no coração", 45 anos depois de ter feito o 2º Ciclo do CSM, no quartel da Atalaia, CISMI, no último trimestre de 1968 (*)...

Fiquei alojado dois dias no Convento das Bernardas Residence,  acessível na época baixa... É um notável projeto de recuperação arquitetónico, com a assinatura de Eduardo Souto de Moura... Aproveitei, obviamente, para percorrer o caminho que  ia dar à ilha de Tavira, a famosa estarad dos Quatro Caminhos, onde se toma o barco, para atravessando o Gilão, se chegar à ilha de Tavira que alguns de nós conheceram, no tempo da recruta e/ou especialidade...

Essa estrada era também uma das estações do calvário dos milicianos,  havendo instrutores que adoravam pôr-nos de salmoura, nas salinas.. Também fui, ou fomos (, eu, a Alice, e os meusw cunhados do Porto, Nitas e Gusto,, a Santa Luzia, zona piscatória de Tavira,  para provar as especialidades gastronómicas de Tavira onde o polvo continua a ser rei... E ainda houve tempo para dar um salto à pombalina Vila Real de Santo António...

Faltou, por manifesta escassez de tempo, revisitar a Cacela Velha, um dos  lugares mais mágicos da costa algarvia (,. pertence já ao concelho vizinho, de Vila Real de Santo António, ) e sobre o qual escreveu a nossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andersen (Porto, 1919-Lisboa, 2004):

As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza

Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza


[A conquista de Cacela, in: Livro Sexto, Lisboa, Morais, 1962]
 ______________

Notas do editor:


Vd. poste anterior:

28 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12783: Manuscrito(s) (Luís Graça) (23): Gostei de voltar a Tavira (Parte V): No último trimestre de 1968, quando por lá passei, não tive condições físicas e psicológicas para descobrir a cidade, as suas ruas, o seu património e as suas gentes... Pairava já na minha cabeça o fantasma da guerra colonial...

(**) Sobre o Arraial Ferreira Neto:

CM Tavira > Património arquitetónico civil:

(...) Arraial Ferreira Neto (Monumento de Interesse Público)

Localização: Praia das Cascas, junto à foz do rio Gilão. Tavira.

O Arraial Ferreira Neto está implantado no lado nascente da foz do rio Gilão, perto de Tavira, numa zona denominada Quatro Águas (confluência do Rio Gilão, do Canal de Cabanas, do Canal de Tavira e da barra de acesso ao mar através da ilha de Tavira), perto da Fortaleza do Rato.

Como conjunto edificado o Arraial constitui um vestígio de grande importância das atividades económicas da Ria Formosa e da região e um dos poucos testemunhos arquitetónicos das instalações de apoio à pesca do atum de toda a costa algarvia, constituindo um exemplo perfeito da organização social, urbanística e arquitetónica do Estado Novo.

O atual conjunto veio substituir as instalações anteriores, demolidas pelo mar no ano de 1943, existentes na praia do Medo das Cascas, na Ilha de Tavira, mesmo em frente ao local onde se localiza agora o Arraial Ferreira Neto. O conjunto foi projetado pelo Eng.º Sena Lino em 1943, tendo por base o conceito de uma unidade urbana autónoma onde pudessem viver cerca de 150 famílias, com a sua zona industrial, as suas oficinas e a sua zona habitacional e de lazer. O Arraial era o local onde se concentravam os pescadores e família, que durante a campanha aí viviam e cuidavam nas oficinas os materiais e apetrechos necessários à faina da pesca do atum.

O Arraial - que é todo murado, apenas com duas portas externas de serviço- foi construído de forma a separar inteiramente a parte industrial da reservada às habitações, que é constituída por dois largos e cinco ruas. No seu conjunto é um autêntico bairro social piscatório, com o aspeto de "uma aldeia de linhas rústico-portuguesas" onde habitariam 400 a 500 pessoas, pois oferecia instalações adequadas ao exercício da atividade industrial, assim como o conforto necessário ao descanso dos pescadores e das suas famílias. Possui edifício escolar, balneário, forno, capela, posto médico, sanitários públicos e clube, além de uma rede completa de esgotos e cinco cisternas. Possui ainda um cais de embarque apetrechado com um guindaste manual na foz do rio Gilão.

Os projetos de arquitetura desenvolvidos no auge do governo do Estado Novo são um exemplo da racionalidade formal típica da época, com o seu aprumo volumétrico e a sua métrica "moderna", o uso de "materiais portugueses" (pedra bujardada, telha de canudo, ladrilhos de barro, painéis de azulejo e portas de madeira pintada com aldraba ou postigo de reixa), e as técnicas mais atuais da altura - fundações diretas em alvenaria ordinária, escadas em betão, paredes de tijolo cheio rebocado e estruturas da cobertura em asnas de madeira.

Com o declínio das capturas de atum até 1970 e 1971, data das últimas campanhas, o Arraial deixa de cumprir a finalidade para que fora destinado. Data de então a sua desafetação definitiva, tendo-se convertido mais recentemente em unidade hoteleira.

Fonte: IGESPAR (...)

Guiné 63/74 - P12813: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (4): Semanas para esquecer

Anúncio do sabão Lifebuoy, 1902.. Fonte:
Wikipedia. Imagem do domínio público.


1. Em mensagem do dia 4 de Março de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, Pelundo e Bissau, 1965/67) enviou-nos a sua habitual Crónica (semanal) Higiénica para publicação.





CRÓNICAS HIGIÉNICAS

4 - SEMANAS PARA ESQUECER

As duas últimas foram tramadas: amigos que nos deixaram sem mais nem ontem e que me fizeram pensar quão mais bera devo ser, considerando o dito "só morrem os bons".
PAZ LÁ ONDE ESTEJAM.

************

Mas o blogue continuou cheio de adesões, pleno de colaborações, muitas fotos e mais histórias vividas.

************

E no P12733, "O que fazer deste blogue", é sugerida uma ideia no sentido de criarmos algo para que possamos usufruir os merecidos cuidados que nunca tivemos por parte dos governantes cá da terra e até colaborar para que não continuemos esquecidos. Mas... e há sempre a porra dum "mas" eu disposto que estou a entrar nessa, devo contudo lembrar, que já muitas petições foram feitas não só por parte das Ligas... das Associações... dos blogues dos Combatentes, e também individualmente, por centenas, entre os quais me incluo e hoje mesmo 1 de Março, até protestamos ao vivo.

Será talvez, através da alteração do voto, que alguma coisa se conseguirá, considerando que botar o "X" nos habituais não tem resultado apesar de que quem o fez, o fez por acreditar no que dizem os seus mentores mentirosos compulsivos. Nanja eu que até democrata sou e aceito os resultados expressos nas urnas, mas desde que o Sporting deu aquela abada dos sete a um, ao Benfica, deixei-me de politiquices e de futebol e só me tenho dado bem.
Até esse dia fui adepto de vários partidos (nunca militante)... aos dezasseis aninhos era da esquerda, com todos os pobrezinhos que trabalhávamos lá na moagem da minha terra e em 1967, após o regresso vivo da nossa Guiné, até delegado sindical dos Bancários me atrevi a ser e continuei, apesar de me terem avisado:
- É pá se queres "subir" na vida, deixa-te disso agora... espera mais seis anos... aguarda pelo vinte e cinco do quatro de 1974, que aí sim valerá a pena. Vão haver "ocupações", os patrões deixarão de o ser, a Banca será nacionalizada e então sim: "quem tiver olho é rei".

E estava certo sim senhor, não totalmente pois que apesar de tudo, subi o que havia de subir, o que prova que os, trabalho e honradez, também tinham algum valor. Mas lá que vivi em liberdade, vivi sim senhor e durante catorze anos seguidos, mais propriamente, trabalhei na Avenida da Liberdade, junto aos Restauradores, como "caixa" do meu Banco e até fui considerado o melhor de todos, podem crer.

Aceito a democracia (que remédio...) mas aceito melhor a Fisioterapia. Nesta, passam-me a mão pelo lombo e as dores vão passando, naquela passam-me a mão pela carteira e dói... dói... dói cada vez mais. Penso até que nunca mais haverá lenitivo que resolva a situação. Daí que e como atrás digo, penso não valer a pena continuarmos a querer que nos olhem doutra forma, pois que eles mesmos (os deputados) têm plena consciência de quem somos, do que nos é devido e o que ambicionamos. Só que essas boas gentes decerto... filhos e enteados doutros que já por lá estiveram e se reformaram no máximo com doze anos de trabalho insano e também os das juventudes partidárias, não querem que existamos e em boa verdade, dentro de quinze ou vinte anos NÃO HAVERÁ MAIS COMBATENTES menos tempo do que Portugal pagará as dívidas contraídas por eles e os seus partidos.

Soluções em vez de críticas? Claro que as tenho, mesmo analfabruto que sou, mas os poderes oligárquicos que são, não aceitarão... era só o que faltava.
Olhando para aqueles excelentíssimos que fazem leis a seu favor, não vejo lá ninguém que nos represente. E então porque não poderá haver pelo menos um antigo Combatente no para lamento Parlamento? Em boa verdade há lá um, qu'até esteve na Guiné, mas as atitudes que tem tomado, mais parece ser contra nós.

Repito a ideia, que a coisa só se resolverá, com consciência de votar em quem mereça. Anarquia por anarquia... mentira por mentira... mais vale dar um pontapé nos fundilhos de quem muito nos tem prometido e melhor humilhado.
Tenho dito.

************

Guiné > Bissorã > 1969: Quartel utilizado pela CCAÇ 13, localizado no centro de Bissorã 
Foto: © Carlos Fortunato (2005)

P12774: O Henrique Cerqueira, que pisou a Bissorã por onde passei uma semana e deixei pacificada, fala-nos daquela pequena dificuldade no atravessamento da fronteira. Também nós tínhamos uma, a d'Elvas, e aquilo era igual. Por isso fizémos outra em terra batida, em Sto. António das Areias, ali perto de Marvão e aquilo era sempre a aviar. Portugueses para lá, Espanhóis para cá e toda a gente sabia como fazer.
Quantas pastas de dentes Colgate bem como Whiskye "Dyc", "caraméis" licores, perfumes o que mais pudéssemos por ali passaram. Havia mais ou menos um acordo entre as autoridades dos dois países, para não chatearem e cumpriam.

************

P12763: Esfalfou-se este marmelo a escrever para quê? Ó pá se queres um conselho... desiste. Vá lá vá... que mesmo assim tiveste um comentário, o que significa que ainda tens um leitor (decerto teu amigo... só pode) e a melhor forma de lhe agradeceres é... não mais o incomodares.
Vai por mim... enrola a caneta no saco e dedica-te à pesca. Vai pró teu monte... vai

Veríssimo Ferreira,
Fur. Mil. da CCAÇ 1422,
Guiné 65/67,
Mansabá, Pelundo, K3, Bissau.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12789: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (3): Esquecer? Nunca

Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

1. Segundo episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

2 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A  BIBLIOGRAFIA DA GUERRA COLONIAL

O meu regresso às minhas memórias da Guiné, iniciou-se quando um colaborador e companheiro de trabalho (que também escreve livros e com vários prémios literários, de pseudónimo Paulo Assim) me falou que tinha lido recentemente um livro sobre a guerra na Guiné e que referia um episódio, de que eu lhe falara, de um acidente com militares, que tinha provocado vários mortos e feridos, na sequência de uma desavença ocorrida num jogo de futebol; que deveria ser o mesmo episódio e que eu deveria conhecer o seu autor. Prontificou-se a adquirir-me o livro. “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura”, de António Graça de Abreu. Li-o de seguida e com sofreguidão. Era a primeira vez que lia algo sobre a guerra da Guiné, onde também tinha estado e logo a falar-me dos lugares e de pessoas com quem tinha convivido, despertando-me assim para outros interesses...

Também, já há alguns meses me havia sentido “estranho”, ao constatar que a série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, tinha mexido comigo, quando os episódios se referiam à Guiné. Dei comigo a discorrer sobre a condução política e militar de Portugal e da Guiné, a esse tempo, interrogando-me: como tinha sido possível que se tivesse deixado acontecer os “infernos” de Guidage e Guileje. Não era previsível o que aconteceu? Onde estavam os serviços militares de informação e reconhecimento? O que faziam? Por que é que não se actuou preventivamente? Porquê?... Onde estava a competência dos senhores da guerra? Se não havia capacidade para controlar, prever e contrariar a actividade do IN, o que andávamos a fazer? Eu, que não era militar nem guerreiro, via os erros que tinham sido cometidos, remediando tarde e em desespero de causa, com elevados custos humanos, morais e materiais, o que deveria ter sido prevenido e evitado. Mas logo, num ato de autocensura, abafei tais sentimentos, pensamentos e considerações. O que interessava agora pensar nisso? Para que serviria? Que parvoíce!... Os responsáveis já não estarão entre os vivos e ninguém responde pelas causas da guerra e pelos seus erros e consequências!


Sede do BCaç 3863 em Teixeira Pinto. Ao centro, edifício do Comando. À esquerda o das Transmissões.

Quanto ao Alf. Mil. António Graça Abreu, decerto que nos cruzámos em Teixeira Pinto, embora por pouco tempo. Teremos partilhado o mesmo bar ou até a mesma mesa, mas a minha memória não o acusava. Ou se apagara o registo, ou estava imperceptível. Lembrava-me sim do CAOP 1, da cena do simulacro de ataque ao quartel na minha primeira noite, dos acontecimentos do dia 1 de fevereiro de 1973, em que fazia pela primeira vez de Oficial-Dia; do Cor. Pára Rafael Durão e do seu porte e conduta militar, que até respeitava, dos seus frugais pequenos-almoços na messe de oficiais, em mesa separada, à base de frutas (grandes mangos da Índia).

O seu livro recordou-me o número de Batalhão a que eu pertencera, as Companhias que o constituíam, tornando-me possível acordar outras memórias. E agora estava disposto a libertar-me dos bloqueios que tinha montado, recordar e sentir a guerra da Guiné, pensar nos bons e maus momentos, poder analisá-la, criticá-la, não por saudosismo ou masoquismo, nem para condenar os envolvidos, governantes, políticos e militares, mas para reflectir sobre o que aconteceu durante esses anos: sobre a política que Portugal trilhou e as suas consequências, identificando os seus responsáveis, chamando os "bois" pelos nomes.

Mesmo considerando que os erros do passado são irremediáveis, sempre poderemos aprender algo com eles, para o presente e para o futuro e se possível minorar os seus efeitos, pela palavra e pela acção.

Iria também permitir-me procurar e saber dos meus antigos camaradas e talvez um dia encontrar-me com eles; principalmente com os do meu Grupo, o 4.º Pelotão, “Os Americanos”. Espero que ainda estejam todos vivos e de saúde. Mas por onde andarão?


Guião do BCaç 3863. Constituiu-se no RI 1 – Amadora. Esteve na Guiné de 22 Set.1971 a 16 Dez. 1973. Dados que obtive nas minhas pesquisas no Blogue.

Aqui chegado, o passo seguinte foi ir ao encontro do desconhecido e a via seguida foi ir à internet ver o que conseguiria, eu, que até então, pouco ou nada tinha navegado. (Já me bastavam as longas horas que passava agarrado ao computador por razões profissionais, quanto mais desperdiçar o meu tempo livre nesses luxos).

Eis-me agora nisto: Google > Bat. Caç. 3863 e entretanto estava a entrar no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Desde então tem sido quase um vício. Pena é a falta de tempo, pois é um mundo que nunca mais acaba. A corroborar a máxima: “O Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca é Grande”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Primeiro poste da série de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12811: Manuscrito(s) (Luís Graça) (26): As intermitências do amor ou uma canção ligeiramente desesperada, ao cair do pano do Dia Internacional da Mulher, para todas as nossas amigas de Alex, no país sem retorno...

As intermitências do amor

por Luís Graça

Na bicha das cinco da tarde,
no pára arranca do trabalho casa trabalho,
pára não pára,
arranca não arranca, empanca,
a vida, 

a vida tão cara, 
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde, 

uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira, 

nas autoestradas das linhas de montagem
onde pára arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre, 

envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto, Portugal,
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.

Tiram-te a pele, 

o tutano,
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o pára arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 

no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar

da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campaínha,
a cama, 
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no pára arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,

a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue, 

o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,

lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros 

do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,

os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da última rua do quarteirão,
no pára arranca empanca
da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,

minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,

e um dia para a casa mortuária,
o ninho da cegonha abandonado,

a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal, 

sem o teu chabéu de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL
,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,

morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
as flores no cabelo,
o Make Love Not War,

o All You Need is Love,
Vietname nunca mais,
black power
blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação da vida,
em casa à tua espera,

o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,

na tua adolescência de Luanda e as suas ilhas, 
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,

o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma,

a cachupa do nosso contentamento,
aos fins de semana,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,

o inferno são os outros...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida, 

o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada,
porque é esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no pára arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar, 

não de Kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar, 
esperar e desesperar.
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor...
Se conseguires rir-te do amor, 
estás salva.

Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas, esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,

lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas da cidade.
Vi um há dias:
Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de um adolescente,
apaixonado, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
Amor ? Amor ?... Amor sou eu!


E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da África nossa,
no pára arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
no país sem retorno,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas... 

e tais.

Alfragide, 15/12/2015. Revisto, 8/3/2014

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 7 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...

Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 24 de Fevereiro de 2014:

Olá Luís!
Já terás percebido que o tal desenho das Caldas que remeti ao Vinhal não passa de uma “ilustraçãozeca” inserta nos meus escritos da tropa, que pretendo possam vir a reflectir um pouco “aqueles anos de castigo” – falo por mim – em que, por paradoxal que isso possa parecer, o ridículo das situações, o humor e a boa disposição, andaram de mãos dadas com o medo, a ansiedade, a tristeza, a raiva, a dor, a própria morte.

O que até agora escrevi – não cheguei ainda à Guiné – nada tem, a não ser um pouquinho de raiva, dos últimos seis condimentos atrás referidos, consistindo, praticamente no seu todo, ao relato de curtos episódios por mim vividos, e, pois, verdadeiros, tão verdadeiros como caricatos e com carradas de humor.
Se conseguirei ou não transmitir com letras e algumas imagens auxiliares essas verdadeiras palhaçadas dos meus tempos das Caldas e de Tavira e também da própria Guiné - se bem que, por aqui, com a mudança brusca das coordenadas geográficas, o humor-humor se vá desviando para o chamado humor negro -, só o futuro, com o feedback daqueles que me possam vir a ler, poderá informar. Talvez tu próprio me possas dar, em primeira mão, esse retorno, o qual, pecando por insuficiente para valores estatísticos, terá, no mínimo, o condão de me motivar ou então, num gesto de sinceridade que agradecerei, a aconselhar-me a voltar os meus esforços para coisas menos exigentes e, porventura, mais frutuosas, poupando-me a desperdícios de tempo e vãos sacrifícios de memória. Nesse sentido, estou a anexar a tal “pontinha do trabalho” que, curioso que és, me estás a pedir (claro que seleccionei a parte do texto que o boneco já remetido ao Vinhal ilustra, ficando, assim, completas as duas páginas correspondentes ao “par de botas”, parte do primeiro capítulo, com o sugestivo título “Os primeiros dias da recruta”, que poderá vir a ser alterado para, por exemplo, “As primeiras impressões”, “Os primeiros dias de um soldado”, “Os primeiros banhos nas Termas da Rainha” – aceitam-se sugestões).

Quanto às “tintas da china de Tavira”, olha que eu falei-te de uns apontamentos a tinta da china e, no caso concreto, os ditos até foram feitos em papel de embrulho - que mais se podia esperar de um simples soldado instruendo a centenas de quilómetros da mesada dos papás?!... “De modos que” a qualidade, com o decorrer dos anos e com os ataques cerrados das traças, deixa muito a desejar, em nada abonando a valia do mestre e os pergaminhos da editora (leia-se “do blogue”). O que eu posso e tenciono, mais à frente, fazer é reproduzir para um suporte em condições e então, sim, estarão os apontamentos em condições de serem vistos e, eventualmente, publicados. De qualquer forma, vou compensar-te com um dos guaches que pintei nas Caldas (já como cabo miliciano), após levar cinco dias de detenção (oficial, pois claro), por ter “respondido mal” ao comandante do Regimento, quando este me interpelou na mini carreira de tiro, durante o tempo de instrução. Acho que tem muito a ver com “a cidade ou vila que mais odiei”, dando a ideia – no meu caso – de uma postura algo rebelde, com muita dificuldade em submeter-me à rígida disciplina militar, para a qual eram dirigidos os meus ódios e, não propriamente, para a cidade que, conforme referes, também a ti não deixou “particulares recordações”. Como o guache está em tamanho “A-3” e não estava ainda digiltalizado, tive que providenciar uma redução para A-4, razão pela qual só agora te estou a remeter o pretendido. Repara na data: 07/09/70. Na altura, ainda não estava mobilizado, mas, daí a mês e meio (18/11/70, véspera do meu aniversário), estava a embarcar para a Guiné).

E, então, onde param os infantes, que não dão a cara à luta, falando das recrutas e das especialidades, durante as quais levaram, como nós, “até ao céu da boca”?!... E a cavalaria?!... E a artilharia – pum! pum!... Ou avançam de uma vez ou então…

…“Siga a Marinha!...”

Confesso que, para além do mais, admiro muito em ti a tua entrega de corpo e alma a este bicho lindo que criaste e à energia que possuis ou inventas a cada instante para o manter vivo e vibrante. Assim o queiram todos os amigos e simpatizantes.

Um grande abraço,
Mário Migueis

P.S
Ainda a propósito das “tintas da china”, não sei se reparaste que o Fernando Gouveia, que, ao longo do tempo, se tem revelado grande entusiasta do blogue (penso que terás idêntica opinião), continuando a contribuir com interessantes textos e, muito especialmente, com belas fotografias da Guiné, com destaque para a interessantíssima Bafatá, que tínhamos ali a dois passos, comentou que também gostaria de ver os meus desenhos. Como vês, com a tua precipitação, deixaste-me ficar mal. Vê lá se arranjas maneira de me desculpar, talvez com a promessa de que o próximo boneco será servido em sua (dele) honra.

Para ele e para o Vinhal mais um abraço muito amigo.

************



Os primeiros dias da recruta

…/…

Ai, pois é, e por isso é que me fazia espécie ter que me sujeitar aos desaforos e impertinências daquele simples 2.º Sargento da Companhia, que, cheio de despacho e com a colaboração de dois Cabos quarteleiros, superintendia na distribuição das fardas aos novos guerreiros do Império. Mal aquela besta me viu abrir a boca para dizer que calçava 44, enfiou-me, a correr, nas mãos, dois pares de botas n.º 47 e uma boina que, de tão grande e espalmada, achei atentatória da minha dignidade!... “Por amor de Deus!... Mas que raio de tropa é esta?!... “, pensei eu, indignado.
- Desenrasca-te!, - grunhiu o “sorja”, já voltado para a vítima seguinte.

O ar tristonho das "47-BL"

O Ferreira tivera mais sorte e, já defronte de um dos espelhos do balneário, ajeitava, com pedantismo, a micro boina à comando, que um dos quarteleiros, menos estúpido que o chefe, lhe reservara. Mas, este, se calhar, até tinha razão com aquela do “desenrasca-te!”, porque o que é facto é que, dois dias depois, já eu conseguira trocar as botas com um calmeirão de outra Companhia. Casualmente, vi-o a atravessar a parada, e o especial aspecto do seu trajar chamou-me imediatamente a atenção: devidamente fardado, com a lustrosa farda n.º 3 encimada por um quico que procurava encobrir-lhe uns olhitos envergonhados, calçava, não as botas da praxe, mas - espanto dos espantos! -, uns sapatos ténis “civis”, por sinal à beira de se desintegrarem, tal o seu estado de ruína. Aproximei-me, curioso, e, feita a verificação mais de perto, constatei que, sem dúvida para que o peito dos pés não lhe saltasse para fora dos “sapatões”, trazia estes amarrados com vária voltas de cordel, tal como os jogadores de futebol faziam antigamente com as “chuteiras”.

O "Calmeirão", ainda sem as "47-BL" 

- Eh, pá!, não tiveste direito a botas?!... - abordei-o eu com algum cuidado, não fosse melindrar o senhor de tão perigosas “solhas”.
- Os filhos da puta não têm botas para gente adulta! - respondeu o calmeirão, olhando, cabisbaixo, para a sua triste figura.
- Não têm botas para gente adulta?!... Não têm o caraças!... Então e estas, são para gente quê?!...

As bochechas do calmeirão, que era loiro, de peles muito sedosas e brancas como o leite, avermelharam-se de espanto perante a magnificência do meu calçado.

Nem era tarde, nem era cedo, poupámos as palavras e demos corda às botifarras.

Cheios de orgulho, já em frente à caserna da 2.ª Companhia – que era a dele -, eu e o meu novo amigo admirávamos o nosso novo par de botas: eu, nas 44 dele, que me serviam na perfeição, e ele, nas minhas 47, que só lhe apertavam um pouquinho no “dedão” do pé esquerdo.

- Arranja umas meias de nylon, que não enchumaçam tanto! – aconselhava eu ainda o calmeirão, cuja beiça inferior, avermelhada e grande como o dono, se babava de contentamento.

.../...

Texto e ilustrações: © Mário Migueis da Silva (2014). Direitos reservados.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

Guiné 63/74 - P12809: Bom ou mau tempo na bolanha (47): De Encheia pediram reforços (Tony Borié)

Quadragésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O Cifra abre o seu diário e vem lá aquilo que todos nós antigos combatentes já sabemos.
Numa página, que não tem data, diz que do destacamento de militares, que na altura se encontrava na povoação de Encheia, do lado de lá do rio, onde o único contacto físico com as forças militares mais próximas, que era o aquartelamento de Mansoa, apenas usavam uma pequena lancha, com motor fora de bordo, que não levava mais do que seis pessoas, que atravessava o rio, viajando depois por um labirinto de árvores rodeadas de água e lama, durante a maré cheia, pois era assim que recebiam semanalmente alguns alimentos de primeiras necessidade.

Continuando, pediram reforços, pediram ajuda, estavam mais uma vez debaixo de fogo, aqueles militares que lá se encontravam foram bastante sacrificados, eram flagelados quase dia sim dia não, eram parte de uma companhia do Batalhão de Artilharia 645, reforçada por uma secção do pelotão de morteiros, que não me lembra o número, que estava estacionado em Mansoa, deles, já aqui falei por diversas vezes, pois muitos deles eram os meus heróis.

Estavam a ser atacados e ainda não havia abrigos, onde se estava a improvisar um pequeno aquartelamento.
Noutra página, também sem data, vem lá a dizer que o Cifra foi a uma aldeia, um pouco retirada do aquartelamento, para os lados de Porto Gole, assistir à cerimónia do “choro”, onde estavam todos vestidos a rigor (foto em baixo), que era uma cerimónia onde velavam e enterravam um morto, o qual tinha sido uma pessoa importante quando vivo, mas que levou com duas balas mortíferas, “à queima roupa”, de um grupo de guerrilheiros que andava naquela zona a recrutar elementos para as suas forças revolucionárias, que lutavam pela independência do território. Como ele disse que não, pois era fiel às tropas portuguesas, até tinha uma pequena bandeira de Portugal, que lhe foi dada pelos militares, que sem saberem, ao dar-lha, sentenciaram a sua pena de morte. Foi eliminado, pois assim servia de exemplo.

Mais à frente diz que no dia 2 de Dezembro, que deve ser de 1965: Um grupo de militares, que tinha saído, pela manhã, em normal patrulha, regressa ao aquartelamento com um guerrilheiro de raça branca, fardado com roupa e equipamento militar de origem chinesa, com documentos em seu poder, que se considerava “capitão”, falava algum português, espanhol e inglês, e vinha sendo açoitado, pois a sua cara estava com algum sangue, por milícias de etnia “fula”.
Encontraram-no, descansando, ou dormindo, dentro de uma morança, junto de diversas raparigas que deviam de ser guerrilheiras, numa aldeia quase abandonada, que já estava debaixo de vigilância dos tais “fulas”, que também serviam de guias e tradutores, que auxiliavam as forças militares já havia algum tempo.
As raparigas, que poderiam ser guerrilheiras ou não, vinham amarradas umas às outras com uma corda, como era habitual, pelo menos naquele tempo. Os militares soltaram-nas a uns quilómetros do aquartelamento, a mando do Comando do Agrupamento, isto foi o que contaram ao Cifra, alguns militares. 

Os militares chamaram a polícia do estado, e nesse mesmo dia, o guerrilheiro que se considerava capitão foi para a capital da província de helicóptero.

O Cifra, não sabe onde é que foi buscar isto de etnia “fula”, pois o aquartelamento estava em zona “balanta”, mas é o que lá vem escrito e, também não sabe qual o destino do guerrilheiro, sabe só que foi de helicóptero para a capital da província.

O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra por hoje!

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12785: Bom ou mau tempo na bolanha (46): Todos fomos cowboys (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P12808: Convívios (567): Almoço de despedida do Inverno da Magnífica Tabanca da Linha, dia 20 de Março de 2014 no Guincho (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 7 de Março de 2014:

Viva Carlos!
Chegaram os dias de sol radioso, e com isso os prazeres da mastigagem em ambiente de camaradas, por isso, e apresar do trabalho que te dou, peço que publiques a convocatória que segue.

Um grande abraço
JD


CONVOCATÓRIA

É verdade, hoje o dia já sugere a magnífica estação primaveril que se aproxima, pelo que a MAGNÍFICA TABANCA DA LINHA convoca os seus responsáveis, aderentes e simpatizantes, para o almoço e encontro de despedida do Inverno, e anuncia triunfalmente, que desta vez o almoço é gratuito, apenas se paga a vista sobre a paisagem magnífica.

De facto, no próximo dia 20 de Março corrente, pelas 12H30, fica marcada a concentração no restaurante panorâmico de Oitavos, na estrada do Guincho, lá no alto de uma ligeira colina, de onde os olhares podem abranger a mata da Quinta da Marinha até ao Cabo Raso e o horizonte Atlântico até não sei onde, numa inusitada perfeição paisagística e em grande angular.
O preço do retrato, depois de muito bem negociado, foi fixado em 15 aéreos.

Que ninguém se iluda, é uma pechincha.
Há quem vá ao Rio de Janeiro, à Cidade do Cabo, à Tailândia, para gáudio dos olhares, mas pagam incomensuravelmente mais. E neste caso, vão de manhã, e podem regressar às suas casas no próprio dia, mas a mesma organização oferece bons aposentos na estalagem do Guincho.


O menu constará apenas de um prato - Bacalhau à Lagareiro, que será precedido por entradas simples, acompanhado por vinhos, refrigerantes ou águas, a que se sucedem doces e, a meu pedido, salada de frutas.
No final, haverá café, tanto para os mais calmos, como para os nervosos compulsivos. Aproveito para informar, de que o senhor Comandante já experimentava notáveis melhoras, mas um achaquezinho na máquina, veio provocar a persistência da baixa médica.
Operacional orgulhoso em matéria de comes e bebes, S. Exª. tem estado a obedecer a um rigoroso período de descanso, mas hoje, fazendo jus à justa fama (passe a redundância) de dar o exemplo para depois exigir a perfeição aos que o seguem devotadamente, mandou-me ir buscá-lo para, pessoalmente, aquilatar do êxito da operação.

E ficou satisfeito. Direi, até, muito satisfeito.
Tanto, que na ida, sentiu tremendas dores na coluna, e fez questão de se deitar no banco detrás, onde prosseguiu muito mais à vontade e sem perder a visibilidade sobre as raparigas jeitosas que floriam naquele percurso.
No regresso parecia outro, mais confiante, com o sorrizinho malandro que se lhe reconhece, e a antecipar o êxito para o próximo assalto.

O local é romântico e deslumbrante, pelo que às poucas senhoras que costumam dar alegria nas nossas paisagens, sugiro a quem possa, que se faça acompanhar pela respectiva, que o prazer a proporcionar será garantido.

Nota final muito importante: este Grupo Muchacho e Filhos, Lda, exige que faça a confirmação das presenças, impreterivelmente, até ao dia 17, pelo que até às 12H00 daquele dia terei que fazer a marcação, após o que não nos responsabilizamos pelos preços dos não confirmados.
À atenção do AGA.

Contactos:
Rosales - 914 421 882;
Dinis - 913 673 067;
ou pelos endereços de e-mail.

E peçam confirmação, just in case.
Antes de acabar, S. Exª. o nosso Comandante ordena-me a máxima divulgação, pelo que peço a todos que sejam solícitos e colaborantes.

E pronto, vão afinando as pontarias com as vossas mánicas de fotografias.
Abraços fraternos
JD
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12795: Convívios (566): 40º aniversário do regresso da CCAÇ 3547 (Os Répteis de Contuboel, 1972/74)... Santa Maria de Lamas, 31/5/2014

Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem do Henrique Cerqueira [ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74, foto atual, à direita ]:

Data: 6 de março de 2014
Assunto: Os autocarros de fim de semana

Caro camarada Luís:
Ao ler o artigo do Tony Levezinho (*),  o qual adorei pela sua  maneira simples e bem descrita das nossas viagens de autocarro nos fins de semana da tropa, eu me lembrei de um acontecimento passado comigo quando estava na recruta nas Caldas da Rainha e que me provocou o meu primeiro e grande cagaço militar.


Pois, como era sabido por todos nós, a malta para conseguir ganhar o direito ao fim de semana tinha que dar à perna tanto na instrução como nos testes escritos. Até aí,  lá se ia conseguindo safar, mas o que nós não sabíamos era que, com bons testes ou não, era sempre necessário "recrutar" malta para as faxinas de fim de semana e aí qualquer situação de erro servia para sermos "recrutados".

Bom, eu como qualquer jovem normal da época cometi um erro, ou seja,  fui apanhado a urinar contra a parede da caserna durante um intervalo na instrução. Nesse momento caiu o Carmo e a Trindade e fui logo direitinho encaminhado ao oficial de dia que me sancionou, com uma carecada e corte do fim de semana.

Quero aqui lembrar que foi exatamente nessa semana que nasceu o meu filho Miguel, ou seja em 9 de Setembro de 1971. Para mim foi um drama dos diabos e tentei junto do comando falar ao coração,  a ver se pelo menos o fim de semana se salvava . Não senhor, o que eu fiz foi "gravíssimo", daí o castigo até tinha mais sentido, segundo o comandante, não é ?


Caldas da Raínha > c. 1970> Um típico autocarro de excursão, da época, pertencente à empresa Claras Transportes, uma das muitas empresas rodoviárias nacionalizadas em 1975... Fonte: Desconhecida.

Quando chegou o fim de semana, eu arranjei um esquema com um amigo e vizinho que estava comigo nas Caldas, já agora de seu nome Eusébio, e que mais tarde casou em Paço de Arcos e por lá ficou.
Então, ele como não vinha ao Porto de fim de semana, comprometeu-se ir a todas as formaturas por mim e creio que na altura também houve uma ajudinha dum cabo miliciano nesse esquema. E então tudo correu bem. Lá me desenfiei num dos tais autocarros que faziam os fins de semana e ala que se faz tarde para o Porto.

No regresso, saindo nós à meia noite da Cordoaria no Porto era para chegar às 7:00 horas às Caldas. Mais ao menos a metade do percurso o autocarro avariou (era um Volvo). Então o motorista, lá com muito sacrifício conseguiu ir até Coimbra para reparar a avaria na Volvo (daí eu me lembrar que era um Volvo) mas só seria visto às 8:00 horas.

Até aí estava tudo bem, íamos chegar tarde à "guerra" mas a culpa não era nossa, portanto até estava a ser divertido.

Então alguém se lembrou que era necessário telefonar para o quartel a avisar da situação. Como sabem, na altura não havia telemóveis. Há então que arranjar um voluntário para fazer o telefonema. Aqui o Henrique, que se tinha esquecido que estava desenfiado e pior ainda tinha-se esquecido que na tropa nem para comer se deve ser voluntário, resolve aceitar a tarefa de telefonar. Fui a um café, telefonei e quem me atende?... O oficial de dia que era um tenente do pior, militarista!

A primeira coisa que me diz interrompendo o meu discurso é :
- Ó militar, primeiro identifique-se e depois conte o que se passa.

Como fui apanhado de surpresa, eu me identifiquei direitinho como mandavam as normas e lá contei o sucedido.
- Tudo bem,  foi aceite e quando chegarem tudo se resolve.

Desliguei aliviado da tarefa, mas de imediato me dei conta da cavalada que tinha feito e pior ainda das pessoas que tinha envolvido no meu desenfianço.

Conclusão: andei todo acagaçado até chegar ao quartel, o  que veio a acontecer já no final da tarde desse dia devido ao atraso na reparação do autocarro, pois que este voltou a avariar pela segunda vez quase a chegar às Caldas.

Olhem, não sei se tinha uma santinha a velar por mim ou não, mas o meu amigo Eusébio lá se desenrascou durante o dia, o cabo miliciano deu uma grande ajuda mas aí também o meu alferes, comandante de grupo, foi um grande amigo. Ele era grande amigo de toda a malta, estava na tropa com contrato após já ter feito uma comissão. Lá me deu um raspanete e pelos vistos o tal tenente limitou-se a mandar um soldado avisar a companhia e, assim sendo,  lá me safei. Mas que apanhei o maior cagaço da minha vida, apanhei!..

Ah!,  também me safei da carecada.

Um abraço a todos e foi mais uma lembrança despoletada pelas estórias dos nossos camaradas do blogue, neste caso a do Tony Levezinho.
_____________

Guiné 63/74 - P12806: Parabéns a você (700): António Marques Lopes, Cor Inf Ref DFA (Guiné, 1967/69)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12778: Parabéns a você (699): Luís R. Moreira, ex-Alf Mil Sapador do BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12805: Notas de leitura (570): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Pergunto-me com sinceridade quantos textos vigorosos como este andarão por aí dispersos, talvez com a conotação de memórias pouco representativas.
No caso das de Florindo d’Oliveira não é verdade: com a presença portuguesa reduzida a Bolama e algumas praças e presídios, esta viagem da lancha “Honório Barreto” é de tal modo impressiva, colorida e de tão grande sentimento português e de respeito pelos valores guinéus, que merecia melhor sorte, tem grande sabor literário, é a história de um moço de 16 anos cheio de curiosidade e de grande abertura.
Oxalá os investigadores desinquietem o que de Florindo d’ Oliveira há de grandioso na aculturação dos portugueses.

Um abraço do
Mário


A Guiné… dos mil trabalhos, por António Florindo d’Oliveira (2)

Beja Santos

É um marujo adolescente, verdor e uma surpreendente curiosidade dão azo a que esse jovem tenha deambulado pela Guiné em 1894 e escreva, cheio de vivacidade as suas memórias na revista “O Mundo Português”, editada pela Agência Geral das Colónias, em vários números ao longo de 1939. É incrível como estes relatos caíram completamente no olvido, não vi até hoje uma menção a seu respeito. Anda a bordo da lancha-canhoneira “Honório Barreto”, já foram intimidar os Balantas, para lá do Impernal, desta feita vão subir o rio Geba. Não se sabe se tomou notas ou trabalha com a memória, a verdade é que de vez em quando os nomes das localidades saem defeituosos, como se vai ver.

Entraram no Geba, os ajudantes Manjacos vão dando informações, passam por Chume (Xime) e depois S. Belchior (que era posto militar) e depois Bambadinca. Tece os seguintes comentários sobre o Geba: “Até ao Corubal, afluente que parece vir do Sul, mas que depois de curvas caprichosas sobe para Leste a perder-se lá para a fronteira francesa, o rio é largo e de bem fácil navegação; e só depois estreita mais, mas dando-nos maior encanto ainda na aproximação das suas margens que, além da beleza com que se ataviam, nos dão a surpresa de saltar de chofre um hipopótamo, mergulhar um jacaré, aparecer uma corda de macacos e surgirem constantemente bandos de pássaros, numa chilreada ensurdecedora, sem nos darem tempo de ver, se são periquitos, papagaios, ou quaisquer outros. Ah! As margens do Geba!... Só por elas mereceria ir à Guiné!... E seguindo vimos Sambeliantá (refere-se seguramente a Sambel Nhantá, ao tempo sede de regulado) e depois Fá, terra que nunca me esqueceu”. Chegaram a Geba e fundearam, rodeado de chalupas. Fá era comando militar. No dia seguinte, surgem de todos os lados cavaleiros Fulas e descreve-os: “São mais bastos que formigas, e são o exército dos régulos que se apresentam ao governador, muito anchos de si e da sua indumentária. Habituados à convivências com os brancos, como auxiliares das forças do governo, e julgando-se por certo tropas de consideração, não escrupulizam de saltar para a "Honório Barreto", de a admirarem, trocando as suas impressões de maravilhados. Outros pretos admirariam com medo, máquinas e peças; estes fingem compreender o que admiram, a dar-se ares de uma cultura que só os seus chefes têm. Não admira que sejam tantos, pois estamos em pleno reino Fula. Que nas suas correrias a cavalo, fazendo acrobacias e dando tiros, imitam talvez o jogo da pólvora dos marroquinos, nos parecem como tal, é que não há dúvida; que nas suas vestes amplas e flutuantes parecem conservar a tradição árabe, também é certo. Mas se lhe perguntarem dirão que são para se darem ares de civilizados e não se confundirem com os outros que são… bárbaros, adoradores de manipanços, cães negros, como me dizia o que esteve a bordo e com quem conversava para conhecer os seus costumes”.

Florindo d’Oliveira confessa que trabalha com a sua memória. Dos vários régulos só se recorda do nome de dois: Bombú e Belá. Segue-se a descrição: “O segundo era uma figura vulgar que se confundia com os outros já vistos; mas Bombú, dizendo que era príncipe de raça, impressionava bastante pela bela figura e porte de inegável distinção. Apesar da sua tez acobreada, via-se que recebera uma educação especial, vestindo com elegância e riqueza e sabendo graduar os seus cumprimentos, desde o governador até às praças, a todos apertando a mão, com uma frase a propósito”. Os chefes Fulas ofereceram uma festa rija em terra, mostraram as suas habilidades de equitação. No dia seguinte regressou-se a Bissau. Houve uma avaria para os lados de Fá, a lancha lá se arrastou até S. Belchior, a passos de tartaruga.

A seguir, rumam para Cacine, antes porém visita o governador um régulo Bijagó. Nova descrição: “Estes Bijagós vêm periodicamente a Bolama fazer o seu negócio de laranjas, bananas, galinhas e quanto cultivam. Vêm nos seus dongos, trabalhados tão pitorescamente e que movem bem. Não é fácil dizer como vestem, pois apenas uma tanga de pele a que podemos chamar cinto, vem pelas nádegas por entre pernas, prender à frente, e… mais nada. As mulheres é que usam umas saias feitas de fibras, semelhantes às palhoças dos nossos camponeses, mas muito curtas e abertas, imitando perfeitamente as saias das nossas bailarinas de ópera. A sua vaidade está nas tatuagens a fogo ou a incisões e que são bastante artísticas, nas anilhas e braceletes de cobre”. Pois este régulo que vinha cumprimentar o governador apresentava-se “envolto como com um manto, em um cobertor de vistas vistosas, berrantes e cobrindo a régia cabeça com um chapéu alto”.

O comando militar no rio Cacine está para a Guiné como o nosso Guadiana está para Portugal, escreve Florindo d’Oliveira, a região é de Nalus, que se estendem também pelo território francês. Aproveita e faz um comentário para o prático (piloto da navegação) do "Honório Barreto": “Embora Manjaco, era homem relativamente civilizado, vestindo como qualquer cidadão da nossa Lisboa, de camisa muito lavada, com o seu colarinho, seus punhos e sua gravata, de casaco, de colete e calças de fazenda, calçava botas como qualquer de nós e cobria a cabeça com um chapéu que não lhe ficava pior que a qualquer criatura que o usasse. Exprimia-se num português relativamente correto e buscava os termos mais adequados com um certo orgulho, bem justificável. Provava saber do seu ofício e conhecia todo aquele intrincado de rios, canais, ilhas e ilhotas, como ninguém. Como pela relativa instrução que recebera, tudo desejava saber para a completar, tudo lhe perguntava do que se referia ao elemento em que vivíamos: terras e gentes, e de tudo informava com muito boa vontade. Quando eu ia ao leme, postado junto a mim, enquanto indicava o rumo, íamos conversando, permutando o nosso saber”. Ali estão dos dois em descanso, naquele dia o comandante do navio acompanhara o comandante militar Cacondó, o seu regresso seria já dentro da noite. O piloto fala dos Nalus a Florindo d’Oliveira: “Viviam da terra, mas eram muito selvagens e atrasados. Que só se queriam com os seus feitiços e ninguém queria nada com eles. Que eram bichos-do-mato. Destes Nalus eu só sabia o que contava a história, de terem dado a morte a Nuno Tristão, ali um pouco mais para baixo, junto do rio Nuno, que lhes conserva a memória, e que fica hoje já na Guiné francesa”. E tece uma crítica: “Não se compreende por que não é portuguesa toda a região que os nossos descobriram e em que sacrificaram as suas vidas!"

E depois o piloto fala dos Beafadas, bravos guerreiros, artistas do couro. Confundido com tanto muçulmanos, Beafadas, Mandingas e Fulas, Florindo d’Oliveira julga que todos têm a mesma origem, o piloto esclarece que não é assim: “Desde cá de baixo do Corubal, por Buba e Geba até lá acima, estão os Fulas; à direita destes e para a fronteira francesa estão Mandingas de Oio, que é do lado de cima, e Futafulas, do lado de baixo; à esquerda estão os Mandingas de Farim, lá para cima, e estes, os Beafadas de Guinala, cá para baixo. Juntando todos, têm a Guiné quase toda, pode crer!”.

É um relato precioso, injustificadamente esquecido, merecia melhor sorte. Aqui se lança o repto aos investigadores: retomem a leitura de Florindo d’Oliveira, está para ali a visão de um jovem entusiasmado com a região tropical que lhe coube na sorte. É um retrato de um homem do seu tempo, pois claro. Tratando com elevada dignidade os africanos que ele considera civilizados ou cultos. Esta Guiné dos mil trabalhos é uma memória belíssima, tocante e ousada. É uma injustiça e um crime de lesa-majestade deixá-la na poeira das bibliotecas.

Entrada do Pavilhão de Arte Indígena (Exposição do Mundo Português, 1940)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12788: Notas de leitura (569): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (1) (Mário Beja Santos)