sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 24 de Fevereiro de 2014:

Olá Luís!
Já terás percebido que o tal desenho das Caldas que remeti ao Vinhal não passa de uma “ilustraçãozeca” inserta nos meus escritos da tropa, que pretendo possam vir a reflectir um pouco “aqueles anos de castigo” – falo por mim – em que, por paradoxal que isso possa parecer, o ridículo das situações, o humor e a boa disposição, andaram de mãos dadas com o medo, a ansiedade, a tristeza, a raiva, a dor, a própria morte.

O que até agora escrevi – não cheguei ainda à Guiné – nada tem, a não ser um pouquinho de raiva, dos últimos seis condimentos atrás referidos, consistindo, praticamente no seu todo, ao relato de curtos episódios por mim vividos, e, pois, verdadeiros, tão verdadeiros como caricatos e com carradas de humor.
Se conseguirei ou não transmitir com letras e algumas imagens auxiliares essas verdadeiras palhaçadas dos meus tempos das Caldas e de Tavira e também da própria Guiné - se bem que, por aqui, com a mudança brusca das coordenadas geográficas, o humor-humor se vá desviando para o chamado humor negro -, só o futuro, com o feedback daqueles que me possam vir a ler, poderá informar. Talvez tu próprio me possas dar, em primeira mão, esse retorno, o qual, pecando por insuficiente para valores estatísticos, terá, no mínimo, o condão de me motivar ou então, num gesto de sinceridade que agradecerei, a aconselhar-me a voltar os meus esforços para coisas menos exigentes e, porventura, mais frutuosas, poupando-me a desperdícios de tempo e vãos sacrifícios de memória. Nesse sentido, estou a anexar a tal “pontinha do trabalho” que, curioso que és, me estás a pedir (claro que seleccionei a parte do texto que o boneco já remetido ao Vinhal ilustra, ficando, assim, completas as duas páginas correspondentes ao “par de botas”, parte do primeiro capítulo, com o sugestivo título “Os primeiros dias da recruta”, que poderá vir a ser alterado para, por exemplo, “As primeiras impressões”, “Os primeiros dias de um soldado”, “Os primeiros banhos nas Termas da Rainha” – aceitam-se sugestões).

Quanto às “tintas da china de Tavira”, olha que eu falei-te de uns apontamentos a tinta da china e, no caso concreto, os ditos até foram feitos em papel de embrulho - que mais se podia esperar de um simples soldado instruendo a centenas de quilómetros da mesada dos papás?!... “De modos que” a qualidade, com o decorrer dos anos e com os ataques cerrados das traças, deixa muito a desejar, em nada abonando a valia do mestre e os pergaminhos da editora (leia-se “do blogue”). O que eu posso e tenciono, mais à frente, fazer é reproduzir para um suporte em condições e então, sim, estarão os apontamentos em condições de serem vistos e, eventualmente, publicados. De qualquer forma, vou compensar-te com um dos guaches que pintei nas Caldas (já como cabo miliciano), após levar cinco dias de detenção (oficial, pois claro), por ter “respondido mal” ao comandante do Regimento, quando este me interpelou na mini carreira de tiro, durante o tempo de instrução. Acho que tem muito a ver com “a cidade ou vila que mais odiei”, dando a ideia – no meu caso – de uma postura algo rebelde, com muita dificuldade em submeter-me à rígida disciplina militar, para a qual eram dirigidos os meus ódios e, não propriamente, para a cidade que, conforme referes, também a ti não deixou “particulares recordações”. Como o guache está em tamanho “A-3” e não estava ainda digiltalizado, tive que providenciar uma redução para A-4, razão pela qual só agora te estou a remeter o pretendido. Repara na data: 07/09/70. Na altura, ainda não estava mobilizado, mas, daí a mês e meio (18/11/70, véspera do meu aniversário), estava a embarcar para a Guiné).

E, então, onde param os infantes, que não dão a cara à luta, falando das recrutas e das especialidades, durante as quais levaram, como nós, “até ao céu da boca”?!... E a cavalaria?!... E a artilharia – pum! pum!... Ou avançam de uma vez ou então…

…“Siga a Marinha!...”

Confesso que, para além do mais, admiro muito em ti a tua entrega de corpo e alma a este bicho lindo que criaste e à energia que possuis ou inventas a cada instante para o manter vivo e vibrante. Assim o queiram todos os amigos e simpatizantes.

Um grande abraço,
Mário Migueis

P.S
Ainda a propósito das “tintas da china”, não sei se reparaste que o Fernando Gouveia, que, ao longo do tempo, se tem revelado grande entusiasta do blogue (penso que terás idêntica opinião), continuando a contribuir com interessantes textos e, muito especialmente, com belas fotografias da Guiné, com destaque para a interessantíssima Bafatá, que tínhamos ali a dois passos, comentou que também gostaria de ver os meus desenhos. Como vês, com a tua precipitação, deixaste-me ficar mal. Vê lá se arranjas maneira de me desculpar, talvez com a promessa de que o próximo boneco será servido em sua (dele) honra.

Para ele e para o Vinhal mais um abraço muito amigo.

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Os primeiros dias da recruta

…/…

Ai, pois é, e por isso é que me fazia espécie ter que me sujeitar aos desaforos e impertinências daquele simples 2.º Sargento da Companhia, que, cheio de despacho e com a colaboração de dois Cabos quarteleiros, superintendia na distribuição das fardas aos novos guerreiros do Império. Mal aquela besta me viu abrir a boca para dizer que calçava 44, enfiou-me, a correr, nas mãos, dois pares de botas n.º 47 e uma boina que, de tão grande e espalmada, achei atentatória da minha dignidade!... “Por amor de Deus!... Mas que raio de tropa é esta?!... “, pensei eu, indignado.
- Desenrasca-te!, - grunhiu o “sorja”, já voltado para a vítima seguinte.

O ar tristonho das "47-BL"

O Ferreira tivera mais sorte e, já defronte de um dos espelhos do balneário, ajeitava, com pedantismo, a micro boina à comando, que um dos quarteleiros, menos estúpido que o chefe, lhe reservara. Mas, este, se calhar, até tinha razão com aquela do “desenrasca-te!”, porque o que é facto é que, dois dias depois, já eu conseguira trocar as botas com um calmeirão de outra Companhia. Casualmente, vi-o a atravessar a parada, e o especial aspecto do seu trajar chamou-me imediatamente a atenção: devidamente fardado, com a lustrosa farda n.º 3 encimada por um quico que procurava encobrir-lhe uns olhitos envergonhados, calçava, não as botas da praxe, mas - espanto dos espantos! -, uns sapatos ténis “civis”, por sinal à beira de se desintegrarem, tal o seu estado de ruína. Aproximei-me, curioso, e, feita a verificação mais de perto, constatei que, sem dúvida para que o peito dos pés não lhe saltasse para fora dos “sapatões”, trazia estes amarrados com vária voltas de cordel, tal como os jogadores de futebol faziam antigamente com as “chuteiras”.

O "Calmeirão", ainda sem as "47-BL" 

- Eh, pá!, não tiveste direito a botas?!... - abordei-o eu com algum cuidado, não fosse melindrar o senhor de tão perigosas “solhas”.
- Os filhos da puta não têm botas para gente adulta! - respondeu o calmeirão, olhando, cabisbaixo, para a sua triste figura.
- Não têm botas para gente adulta?!... Não têm o caraças!... Então e estas, são para gente quê?!...

As bochechas do calmeirão, que era loiro, de peles muito sedosas e brancas como o leite, avermelharam-se de espanto perante a magnificência do meu calçado.

Nem era tarde, nem era cedo, poupámos as palavras e demos corda às botifarras.

Cheios de orgulho, já em frente à caserna da 2.ª Companhia – que era a dele -, eu e o meu novo amigo admirávamos o nosso novo par de botas: eu, nas 44 dele, que me serviam na perfeição, e ele, nas minhas 47, que só lhe apertavam um pouquinho no “dedão” do pé esquerdo.

- Arranja umas meias de nylon, que não enchumaçam tanto! – aconselhava eu ainda o calmeirão, cuja beiça inferior, avermelhada e grande como o dono, se babava de contentamento.

.../...

Texto e ilustrações: © Mário Migueis da Silva (2014). Direitos reservados.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Mário Migueis

A principal lição a tirar desta recordação dos primeiros dias da tua recruta é que afinal 'os bens existem, estão é mal distribuídos', conforme se constactou, e isso é bem verdade para um conjunto de coisas, ainda, e principalmente, nos dias de hoje.
Ainda bem para os dois, que assim puderam resolver os seus problemas.

Quanto ao desafio/interrogação que fazes quanto a outros locais e 'outras armas' deixarem também as suas impressões e/ou recordações, pois também já enviei as minhas, sobre Santarém, que calculo estejam a 'aguardar vez'.

Hélder S.

JD disse...

Caro Miguéis,
Também mes despertaste o apetite para a descrição de assentamento de praça que está para vir. Para mais, se acompanhada por ilustrações ao nível destas, se não superiores.
O Helder já deu a sua quota de esquerdismo e protecção aos pobres e oprimidos, enquanto o sargento personificou o liberalismo reaccionário. Eu acompanho o Helder. Mas sejamos claros, não tenho a veleidade de que todos devemos cantar pelo mesmo diapasão e, às vezes, encontro a verdade, onde menos a espero.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Caros Hélder Valério e JD:
Com efeito, Hélder, com uns míseros e excedentários três centímetros de couro e pneu de avião, pude fazer alguém feliz. E, ainda que não houvesse material contrapartida, seria bastante a satisfação de bem ter feito ao meu semelhante. Fico, ansiosamente, à espera da "Voz de Santarém".
Se o diapasão desse pelo nome de solidariedade, caro JD, não ficaria mal a ninguém afinar o instrumento pelo dito. Mas, neste
mundo desatinado e egoísta, quem é que pode esperar orquestra tão afinada?!... Olha, é uns a gemer em ré, outros a grasnar em/ao sol. E não é por isso que vamos desatar à "rabecada", que os instrumentos, coitaditos, que culpa têm eles...Talvez um dia a música se componha em boa e harmoniosa pauta!... Obrigado pela bondade do teu comentário e, já agora, aproveito para adiantar-te que o liberal e reacionário sorja virá a revelar-se um amigo de respeito quando, meses mais tarde, regresso, já licenciado, à Quinta das Caldas.
Um abraço,
Mário Migueis

Luís Graça disse...

O Miguéis tem o mmeu inestimável apreço... Teve comigo em Bambadinca, no final da minha comissão... Gostava de o voltar a encontrar... Um dia destes passo por lá, pela tabanca dele...

Ab.Luis