sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12809: Bom ou mau tempo na bolanha (47): De Encheia pediram reforços (Tony Borié)

Quadragésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O Cifra abre o seu diário e vem lá aquilo que todos nós antigos combatentes já sabemos.
Numa página, que não tem data, diz que do destacamento de militares, que na altura se encontrava na povoação de Encheia, do lado de lá do rio, onde o único contacto físico com as forças militares mais próximas, que era o aquartelamento de Mansoa, apenas usavam uma pequena lancha, com motor fora de bordo, que não levava mais do que seis pessoas, que atravessava o rio, viajando depois por um labirinto de árvores rodeadas de água e lama, durante a maré cheia, pois era assim que recebiam semanalmente alguns alimentos de primeiras necessidade.

Continuando, pediram reforços, pediram ajuda, estavam mais uma vez debaixo de fogo, aqueles militares que lá se encontravam foram bastante sacrificados, eram flagelados quase dia sim dia não, eram parte de uma companhia do Batalhão de Artilharia 645, reforçada por uma secção do pelotão de morteiros, que não me lembra o número, que estava estacionado em Mansoa, deles, já aqui falei por diversas vezes, pois muitos deles eram os meus heróis.

Estavam a ser atacados e ainda não havia abrigos, onde se estava a improvisar um pequeno aquartelamento.
Noutra página, também sem data, vem lá a dizer que o Cifra foi a uma aldeia, um pouco retirada do aquartelamento, para os lados de Porto Gole, assistir à cerimónia do “choro”, onde estavam todos vestidos a rigor (foto em baixo), que era uma cerimónia onde velavam e enterravam um morto, o qual tinha sido uma pessoa importante quando vivo, mas que levou com duas balas mortíferas, “à queima roupa”, de um grupo de guerrilheiros que andava naquela zona a recrutar elementos para as suas forças revolucionárias, que lutavam pela independência do território. Como ele disse que não, pois era fiel às tropas portuguesas, até tinha uma pequena bandeira de Portugal, que lhe foi dada pelos militares, que sem saberem, ao dar-lha, sentenciaram a sua pena de morte. Foi eliminado, pois assim servia de exemplo.

Mais à frente diz que no dia 2 de Dezembro, que deve ser de 1965: Um grupo de militares, que tinha saído, pela manhã, em normal patrulha, regressa ao aquartelamento com um guerrilheiro de raça branca, fardado com roupa e equipamento militar de origem chinesa, com documentos em seu poder, que se considerava “capitão”, falava algum português, espanhol e inglês, e vinha sendo açoitado, pois a sua cara estava com algum sangue, por milícias de etnia “fula”.
Encontraram-no, descansando, ou dormindo, dentro de uma morança, junto de diversas raparigas que deviam de ser guerrilheiras, numa aldeia quase abandonada, que já estava debaixo de vigilância dos tais “fulas”, que também serviam de guias e tradutores, que auxiliavam as forças militares já havia algum tempo.
As raparigas, que poderiam ser guerrilheiras ou não, vinham amarradas umas às outras com uma corda, como era habitual, pelo menos naquele tempo. Os militares soltaram-nas a uns quilómetros do aquartelamento, a mando do Comando do Agrupamento, isto foi o que contaram ao Cifra, alguns militares. 

Os militares chamaram a polícia do estado, e nesse mesmo dia, o guerrilheiro que se considerava capitão foi para a capital da província de helicóptero.

O Cifra, não sabe onde é que foi buscar isto de etnia “fula”, pois o aquartelamento estava em zona “balanta”, mas é o que lá vem escrito e, também não sabe qual o destino do guerrilheiro, sabe só que foi de helicóptero para a capital da província.

O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra por hoje!

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12785: Bom ou mau tempo na bolanha (46): Todos fomos cowboys (Tony Borié)

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro "Cifra"

Esta coisa das memórias é 'danada'!

Parece que à medida que nos afastamos no tempo dos momentos das ocorrências que 'eles' doem mais.

Neste teu pequeno recuo no tempo conseguiste 'pescar' uma boa meia-dúzia de situações que não deixam de parecer não fazer sentido nos dias de hoje. Quem não viveu esses 'tempos de brasa' é bem capaz de desconfiar da sua veracidade. E, até, questionar o sentido de tudo aquilo.
A verdade é que os tempos eram vividos vertiginosamente (afinal como todos 'os tempos', na sua própria época) e não havia muito para pensar, envolvidos que estávamos nessa espiral.

Enfim, como se diz que "recordar é viver", então 'vivamos'!

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Caro Cifra,
Tens feito relatos quase em directo das experiências na Guiné.
Hoje referes uma estranha forma de aliciamento na guerrilha. Era uma escolha de caminho único, tal como os impuros foram sacrificados num congresso em Cassecá, em nome dos deuses, da fertilidade, do progresso, da paz, e da felicidade.
Um abrasso
JD

P.S. Não arrisques a escrever com os meus erros

Tony Borie disse...

Olá Helder e JD.
Obrigado pelos vossos comentários.
Uns familiares de terceira geração, tinham em seu poder, alguma informação de quando fui militar, que ficou na casa que foi de meus pais, onde eles agora vivem, sabendo desta minha vontade em escrevinhar essas recordações, enviaram-me quase todo o material que estava em estado mais ou menos, portanto recuperei parte dela, que vou compartilhar, de pouco a pouco com todos vocês, uma espécie de diário, onde estão alguns relatos que lendo bem, alguns não fazem lá muito senso, mas é o que lá vem, talvez fosse escrito, depois de fumar aqueles célebres "cigarros feitos à mão", ou depois de beber o álcool que se roubava ao "pastilhas"!.
Um abraço para ambos, e ouve lá JD, os teus "erros na escrita", são "obras de arte", que nós antigos combatentes muito gostamos de ler!.
Tony Borie.