Quadragésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
O Cifra abre o seu diário e vem lá aquilo que todos nós
antigos combatentes já sabemos.
Numa página, que não tem data, diz que do destacamento de
militares, que na altura se encontrava na povoação de Encheia,
do lado de lá do rio, onde o único contacto físico com as forças
militares mais próximas, que era o aquartelamento de Mansoa,
apenas usavam uma pequena
lancha, com motor fora de
bordo, que não levava mais do
que seis pessoas, que
atravessava o rio, viajando
depois por um labirinto de
árvores rodeadas de água e
lama, durante a maré cheia,
pois era assim que recebiam
semanalmente alguns alimentos
de primeiras necessidade.
Continuando, pediram reforços,
pediram ajuda, estavam mais
uma vez debaixo de fogo,
aqueles militares que lá se encontravam foram bastante
sacrificados, eram flagelados quase dia sim dia não, eram parte
de uma companhia do Batalhão de Artilharia 645, reforçada por
uma secção do pelotão de morteiros, que não me lembra o número, que estava estacionado em Mansoa, deles, já aqui falei por
diversas vezes, pois muitos deles eram os meus heróis.
Estavam
a ser atacados e ainda não havia abrigos, onde se estava a
improvisar um pequeno aquartelamento.
Noutra página, também sem data, vem lá a dizer que o Cifra
foi a uma aldeia, um pouco retirada do aquartelamento, para os
lados de Porto Gole, assistir à cerimónia do “choro”, onde
estavam todos vestidos a rigor (foto em baixo), que era uma
cerimónia onde velavam e
enterravam um morto, o qual tinha
sido uma pessoa importante quando
vivo, mas que levou com duas balas
mortíferas, “à queima roupa”, de
um grupo de guerrilheiros que
andava naquela zona a recrutar
elementos para as suas forças
revolucionárias, que lutavam pela
independência do território. Como ele disse que não, pois era
fiel às tropas portuguesas, até
tinha uma pequena bandeira de
Portugal, que lhe foi dada pelos
militares, que sem saberem, ao
dar-lha, sentenciaram a sua pena de morte. Foi
eliminado, pois assim servia de exemplo.
Mais à frente diz que no dia 2 de Dezembro,
que deve ser de 1965: Um grupo de militares, que tinha saído, pela manhã, em
normal patrulha, regressa ao aquartelamento com um guerrilheiro
de raça branca, fardado com roupa e equipamento militar de
origem chinesa, com documentos em seu poder, que se considerava
“capitão”, falava algum português, espanhol e inglês, e vinha
sendo açoitado, pois a sua cara estava com algum sangue, por
milícias de etnia “fula”.
Encontraram-no, descansando, ou
dormindo, dentro de uma morança, junto de diversas raparigas que deviam de ser guerrilheiras, numa aldeia quase abandonada, que já estava debaixo de vigilância dos tais “fulas”, que também
serviam de guias e tradutores, que auxiliavam as forças
militares já havia algum tempo.
As raparigas, que poderiam ser
guerrilheiras ou não, vinham amarradas umas às outras com uma corda, como era habitual, pelo menos naquele tempo. Os militares soltaram-nas a uns quilómetros do aquartelamento,
a mando do Comando do Agrupamento, isto foi o que contaram ao
Cifra, alguns militares.
Os militares
chamaram a polícia do estado, e nesse mesmo dia, o guerrilheiro que se considerava capitão foi para a
capital da província de helicóptero.
O Cifra, não sabe onde é que foi buscar isto de etnia
“fula”, pois o aquartelamento estava em zona “balanta”, mas é o
que lá vem escrito e, também não sabe qual o destino do
guerrilheiro, sabe só que foi de helicóptero para a capital da
província.
O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra por hoje!
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12785: Bom ou mau tempo na bolanha (46): Todos fomos cowboys (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro "Cifra"
Esta coisa das memórias é 'danada'!
Parece que à medida que nos afastamos no tempo dos momentos das ocorrências que 'eles' doem mais.
Neste teu pequeno recuo no tempo conseguiste 'pescar' uma boa meia-dúzia de situações que não deixam de parecer não fazer sentido nos dias de hoje. Quem não viveu esses 'tempos de brasa' é bem capaz de desconfiar da sua veracidade. E, até, questionar o sentido de tudo aquilo.
A verdade é que os tempos eram vividos vertiginosamente (afinal como todos 'os tempos', na sua própria época) e não havia muito para pensar, envolvidos que estávamos nessa espiral.
Enfim, como se diz que "recordar é viver", então 'vivamos'!
Abraço
Hélder S.
Caro Cifra,
Tens feito relatos quase em directo das experiências na Guiné.
Hoje referes uma estranha forma de aliciamento na guerrilha. Era uma escolha de caminho único, tal como os impuros foram sacrificados num congresso em Cassecá, em nome dos deuses, da fertilidade, do progresso, da paz, e da felicidade.
Um abrasso
JD
P.S. Não arrisques a escrever com os meus erros
Olá Helder e JD.
Obrigado pelos vossos comentários.
Uns familiares de terceira geração, tinham em seu poder, alguma informação de quando fui militar, que ficou na casa que foi de meus pais, onde eles agora vivem, sabendo desta minha vontade em escrevinhar essas recordações, enviaram-me quase todo o material que estava em estado mais ou menos, portanto recuperei parte dela, que vou compartilhar, de pouco a pouco com todos vocês, uma espécie de diário, onde estão alguns relatos que lendo bem, alguns não fazem lá muito senso, mas é o que lá vem, talvez fosse escrito, depois de fumar aqueles célebres "cigarros feitos à mão", ou depois de beber o álcool que se roubava ao "pastilhas"!.
Um abraço para ambos, e ouve lá JD, os teus "erros na escrita", são "obras de arte", que nós antigos combatentes muito gostamos de ler!.
Tony Borie.
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