terça-feira, 22 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13021: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (32): Férias da guerra: o "Lourosa", padres, religião, cinema e etc.

1. Em mensagem do dia 14 de Abril de 2014, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos mais esta "boa memória da sua guerra".


Memórias boas da minha guerra 
(não publicado)

31 - Férias da guerra - o “Lourosa”, padres, religião, cinema e etc.

O soldado Guilhermino Dias era conhecido por “Lourosa”, o nome da terra onde nascera. Embora de freguesias diferentes, sendo eu de Fiães, concelho de Sta Maria da Feira, esse facto proporcionava-nos um relacionamento de vizinhos. E, como era do meu pelotão, estávamos mais ou menos ao corrente do que se passava lá na terra. Jogava bem à bola; ele era “quarto de defesa” do Lusitânia de Lourosa. “Adoecia” muitas vezes (tal como outros) mas estava sempre bom para jogar futebol.
Também era bastante religioso. Quem o quisesse ouvir cochichar de noite e em plena operação, era procurá-lo no final do pelotão, junto ao enfermeiro e a um alferes, a rezarem o terço. Este alfero, era também conhecido pelas promessas que fazia ao Senhor Santo Cristo em momentos aflitivos, oferecendo vacas aos pobres lá da sua ilha. Felizmente, como faltou a muitas Ops., safou-se de umas quantas manadas que seriam necessárias para cumprir outras possíveis promessas.

Como eu conhecia a história do “roubo” do padre Damião de Lourosa, brincava com o Guilhermino acerca disso. Estou a referir-me ao conflito de poderes que afastou (chegando a envolver centenas de GNR) o padre que esteve sequestrado durante semanas pela população de Lourosa. Esta história viria a servir de inspiração a Bernardo Santareno para a obra “A Traição do Padre Martinho” (1969). O poder, eclesiástico (Bispo do Porto) e civil (Presidente da Câmara da Feira, que era de Fiães), pretendiam colocar lá um padre de Fiães, contra a vontade e alguma rivalidade da população. As posições extremaram-se de tal forma que o povo deixou de ir à igreja.

Quando vim de férias, da Guiné, ele fez questão que eu fosse visitar a família.
- Está bem. Vou aproveitar para ver a Procissão dos Passos no Dia de Ramos, que calha ao dia 7 de Abril - disse eu, para o provocar.
Ao que ele logo respondeu:
– Ó Silva, sabe que sou muito crente a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, mas não me foda com essas merdas. Não queriam mais nada, não? Padre de Fiães, Presidente da Câmara de Fiães, Bispo do Porto e ainda mais o sacana do Salazar!? Puta que os pariu!

Foto do "Lourosa" comigo, no mesmo local de fronte da casa onde o Padre Damião esteve sequestrado. Também é o mesmo local onde a procissão parava para a primeira intervenção do Padre Pregador.

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- Olha quem está ali à porta. – disse a minha mãe. – É o mestre Rufino. Está sempre a perguntar por ti.
- Então Zéca, como vai aquela porcaria que tanto tem prejudicado a nossa rapaziada? – perguntou o mestre, enquanto me abraçava emotivamente, evidenciando a sua amizade e alguma curiosidade. – Olha que o Salazar está no fim e logo que “vá co caralho”, isto vai mudar tudo. Vê se te safas mais algum tempo, porque a coisa está para muito breve.
- Não há problema nenhum – respondi alegremente, ao mesmo tempo que observava a minha mãe que nos espreitava, enquanto limpava os olhos.
E continuei:
- Olhe que até estou a gostar daquilo. Não se faz puto; é só patuscadas e não nos falta nada. Além disso, viajar é das coisas mais agradáveis e nós tivemos a sorte de andarmos sempre de um lado para o outro. Nunca passeei tanto na minha vida!
- Agora reparo, trouxe esse carro? – perguntei admirado, enquanto ele confirmava orgulhosamente abanando a cabeça. – Mas, como foi possível?

Ele justificou:
- Desde que me morreu a patroa, coitada, com aquele mal maldito, resolvi dar uma volta à minha vida. Como vias, ela parecia uma força da natureza: cheia de saúde e sempre a trabalhar. De repente, lá se foi. Não houve santo nem remédio que lhe valesse. Como a rapariga está lá para Gaia há já uns anos e o meu filho, que se apaixonou por África, não troca o Congo por Portugal, fiquei sozinho. Não veio quando a mãe morreu, mas esteve cá há pouco tempo e trouxe-me uma prenda. Imagina: comprou lá uma carta de condução para mim! Sou analfabeto mas não sou burro, fui à escola de condução e aprendi rapidamente a conduzir. Como tive sempre uma vida regrada, juntei uns tostõezitos e agora quero viver melhor. Não queres vir dar uma volta?
- Parece que adivinhou, porque tenho de ir a Lourosa visitar a família de um colega do meu grupo e ainda não sabia como. Vamos lá então, e aproveitamos para lembrar os velhos tempos. - respondi-lhe.

O mestre Rufino trabalhava de pedreiro e formava equipa com mais 2 ou três ajudantes. Apesar de analfabeto, não receava pronunciar-se sobre qualquer assunto. Como fiquei órfão de pai, ele acarinhou-me ainda mais. Devo a ele algumas ideias que me acompanharam pela vida fora. Pelo menos aprendi a encarar de forma diferente algumas certezas inabaláveis.
O mestre gostava muito de cinema e quando eu era miúdo, chegava a pagar-me o bilhete para o acompanhar. Fazíamos mais de 4 km a pé até Sta Maria de Lamas, para ver os filmes de cobóiadas, capa e espada e bíblicos. Dizia que compreendia tudo mas queria-me ao seu lado para tirar alguma dúvida. O certo é que ele já percebia muitas expressões em inglês. No final, vínhamos ainda pela tasca da “Viúva-alegre”, para comer uma “laroca” de bacalhau. Que belas essas tardes de cinema!

Um dia, em 1955 ou 1956, o mestre Rufino voltou a convidar-me para ir ao cinema mas, como em Lourosa se fazia uma importante procissão ao Calvário, quando lá passámos, disse-me:
- Hoje é Domingo de Ramos. Vamos ficar por aqui para vermos um espectáculo de categoria. Como não sei ler, dou-lhe mais valor e tenho que o aproveitar. Para mim isto é tudo um teatro.

Terminadas as primeiras cerimónias dentro da igreja, a procissão saiu para a direita em direcção ao Calvário. O andor com o Senhor dos Passos seguia logo atrás dos padres e demais intervenientes nas cerimónias. O tempo nublado, bem como a cor predominante roxa dos paramentos religiosos, ajudavam muito a salientar um aspecto geral escuro, pesado e triste, condizente com as celebrações em causa.
No cruzamento da estrada de Lamas, coincidindo com a esquina do cemitério e o início da subida para o calvário, havia uma pequena capela, a habitual moradia do Senhor dos Passos. Logo ali na sua frente foi colocado um pequeno estrado com um púlpito para a primeira grande intervenção do pregador, fora da igreja.
Ali se juntava a multidão que o escutava atentamente. Intervinha também uma freira capuchinha, que imitava a Sta. Verónica com gritos pungentes, jurando o seu amor a Jesus e pedindo em troca o seu sofrimento. A dada altura, coincidindo com a aproximação dos andores da virgem Maria e de Maria Madalena, vindos da viela ao lado do Café Central, o discurso do pregador ia subindo de tom, num evidente e estruturado apelo emocional:
- Reparai naquela mãe que vê o seu único e querido filho, apesar de inocente, chicoteado, rasgado de feridas e todo ensanguentado.

Ali mesmo à nossa frente, e logo atrás do andor de Jesus, lá estava o conhecido Zé Manel Simplório de Paços de Brandão. Com cerca de 2 metros de altura, rodava a cabeça em todas as direcções e já se mostrava preocupado com a tristeza geral crescente.
E o pregador continuava no seu papel, insistindo na sua expressão emocional:
- Reparai nos olhos de Jesus e imaginai o seu coração e a sua dor ao ver sua mãe, junto de Maria Madalena, em pranto, desesperada por não poder tocar-lhe nem sequer limpar-lhe as feridas do corpo.

O Zé Manel Simplório já não aguentava mais e no seu jeito truculento de falar de rajada, reagiu em voz alta: 
- Qssa foda!,… Que não seja burro!… Já o ano passado lhe foderam o corpo,… para que é que voltou!? É mesmo morcom!

Foto retirada do livro "Cerco ao Cortiçal", com a devida vénia ao seu autor

"Cerco ao Cortiçal", por Rosa Silva, publicado em Março 2013, relata toda a história do sequestro ao Padre Damião.

++++

Lá fomos então, vagarosamente, por ruas becos e vielas até ao lugar de Boco, junto à Encosta Dalém, onde vivia a Dona Preciosa, a mãe do Guilhermino Dias, o “Lourosa”.
Recebeu-nos muito bem e fez questão que tomássemos alguma coisa. Era gente humilde e habituada a trabalhar nas empresas corticeiras, desde os 10 anos.

Com o marido adoentado, os filhos por criar e os baixos salários neste sector, a Dona Preciosa não demorou muito a pedir:
- Ó Senhor Silva veja se me protege o meu Guilhermino, que precisamos muito dele. Ai o meu rico menino que tanta falta nos faz!
- Ó minha Senhora, se dependesse de mim, vinha já embora, aliás, nem ele nem ninguém teria ido para lá. Mas vai ver que tudo vai correr bem - respondi-lhe.
- A Senhora de Fátima o oiça! Esperamos que com a sua graça, lá iremos a pé, todos anos, para dar as 12 voltas à Basílica, de joelhos.

"Lourosa" a ponta de lança

E como não interessava nada falar da Guiné, fomos desviando a conversa e aproveitamos para perguntar se havia procissão, já que estávamos no Domingo de Ramos.
Ela foi peremptória:
- Já lá vão uns 3 ou 4 anos que não.
E sentenciosamente vincou:
- Como nos roubaram o padre Damião, em Lourosa acabou a religião!

Quando regressávamos, o mestre Rufino, ao passar pelo cruzamento da igreja, parou e disse:
- Lembras-te do Zé Manel Simplório?
Respondi:
- Então não havia de me lembrar daquela vez que estávamos ali a assistir quando ele…
- Não digas mais, interrompeu o mestre. - Há poucos dias, no cinema de Lamas ele estava atrás de mim na plateia e quando o bandido estava a dar uma tareia na gaja do artista, a dada altura o Zé Manel Simplório levantou-se e de punho virado para o ecrã, gritou:
- Se lhe tocas outra vez, eu fodo-te!

(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12031: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): "Deixem-nos trabalhar"

Guiné 63/74 - P13020: 10º aniversário do nosso blogue (16): Falar ou não falar da guerra, aos filhos... O 25 de abril, o 11 de março, a catarse do blogue, o meu primeiro livro, os primeiros convívios ao fim de 48 anos... (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba, [ ex-Fur Mil, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66; autor de "Guerra da Guiné: A batalha de Cufar Nalu" (Terras de Faria Lda: Faria, Barcelos, 2012, 341 pp.)]:


Data: 21 de Abril de 2014 às 01:09

Assunto: Falar ou não falar da guerra, aos filhos



Olá, meu caro Carlos Vinhal. Ao mote do 10º aniversário do blogue, tento corresponder com esta achega, cuja primeira emissão parece ter saído defeituosa.


Mil anos de vida para a Tabanca Grande!

Um grande abraço, extensivo a toda a malta.
MLLomba


2. Falar ou falar, da guerra, aos filhos...
Aos 24 anos acabaram-se-me dois empregos - o da vida militar e o da vida civil (as obras da Ponte da Arrábida estavam concluídas). Fiz-me à vida, carregadinho de maleitas, em esforço de mandar as muitas e variadas memórias da guerra da Guiné para o fundo do baú da memória e desenvolvi o tabu de não falar dela, como de coisa íntima se tratasse.

Ainda não eram 8H00 e encontrei-me com o "25 de Abril", junto do QG do Porto; as maravilhas feitas pelos ex-camaradas seus protagonistas encheram-me de orgulho, pela nobreza da sua missão e a categoria revelada pelo seu trabalho militar.

Veio o "11 de Março" e as suas derivas contra-revolucionárias compulsaram-me para outra guerra, desta feita sem orgânicas nem armas, quando Vasco Gonçalves, Rosário Dias, Álvaro Cunhal, Otelo e outros enviesaram pelos caminhos da utopia, pela desestabilização da sociedade portuguesa e a vilipendiar o nosso pluricentenário país. Se as nacionalizações nada me diziam, "as intervenções estatais" vieram bulir-me com a cidadania. Os sindicalistas arvoraram-se em agitadores, furiosamente votados a escaqueirar a harmonia sócio-laboral, para resultar na nomeação de comissões administrativas, enformadas por licenciados indicados pelo ministério do Trabalho, ancorados no PCP ou no MDP/CDE e por oficiais milicianos subalternos, arvorados em MFA, em geral barbudos e cabeludos -, reconhecidamente oportunistas, medíocres e calaceiros, salvo honrosas excepções. Os "trabalhadores" passaram a muitos, mas os que trabalhavam eram cada vez menos.

O primeiro lote dessas"intervenções" respeitava à Facar, Real Companhia Velha, Têxtil Manuel Gonçalves, Salvador Caetano e Soares da Costa - a sede do meu posto de trabalho. A tampa do conhecimento das técnicas da subversão, adquirido na guerra da Guiné saltou e então regressaram as noites sem dormir, as vigílias, a observação perseverante, análise e manobras consentâneas, mas sem laivos de violência. A Facar, Têxtil Manuel Gonçalves e a Real Companhia Velha foram intervencionadas; mas os mais de 3 000 trabalhadores da da Soares da Costa organizaram-se, fizeram abortar a intervenção, foram dar uma ajuda à Salvador Caetano e ainda uma ajudazita ao restabelecimento da normalidade na Têxtil Manuel Gonçalves. Exemplo da intervenção social e da resistência cívica ao desvario, dos trabalhadores que trabalhavam.

Soldado uma vez, soldado para sempre; mas fora actor em duas guerras e conservava o silêncio como o melhor meio para as esquecer.

Iniciava-me no manejo das novas tecnologias e surgiu-me o blogue, por acaso. A curiosidade mata o gato e a sucessão e grandeza dos seus testemunhos, sem complexos nem preconceitos, não fez saltar a rolha - destampou-me as memórias e motivou-me até chegar a autor de um livro acerca da guerra da Guiné e minhas vivências.

Por essa circunstância, os filhos começaram a puxar conversa, num misto curiosidade e de incredulidade, pela recusa de imaginar o pai metido na selva tropical, a sofrer e a montar ataques e emboscadas, com mortos e feridos, numa realidade de tiros, granadas, bombas e minas, envolvido nas acções da aviação e navios de guerra. "O cota está agora numa de imaginação" - pensariam (julgo eu).

Passados 48 anos do regresso da Guiné, decidi-me pela primeira vez a participar no encontro de confraternização do BCav 705 (a seguir fui pela primeira vez ao encontro da Tabanca Grande, em Monte Real), levei o meu filho mais novo, pela primeira vez me reencontrei com o meu comandante, o então Capitão de Cavalaria Fernando Lacerda, e complementei as apresentações, a dizer:
- Olha, pá, nas muitas situações de combate, nunca vi o meu comandante a atirar-se para o chão...
- Seria indigno da minha pessoa sujar a farda - respondeu o meu ex-capitão, a exibir orgulho nobre.

No regresso, o meu filho disse-me que até ali pensava que essa coisa de homens destemidos, a enfrentar tiros e explosões, era próprio dos filmes, dos Rambos. Protestou a sua admiração pela pessoa do meu antigo capitão e adotára-nos como os seus heróis.

E passou a interessar-se pelo tema da Guerra do Ultramar.

E já agora e a propósito: o 25 de Abril, sempre! O anti-25 de Abril, como o 11 de Março ao 25 de Novembro, jamais!

Manuel Luís Lomba
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Guiné 63/745 - P13019: Os nossos médicos (77): Capitão médico QP António Vieira Alves, estomatologista e subdiretor do HM 241, Bissau, 1967/69 (Paulo Alves / J. Pardete Ferreira)



Guiné > Bissau > s/d > O antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Lucínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar, Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.

Foto: © Mário Beja Santos (2013). Todos os direitos reservados.

1. Mensagem do nosso leitor Paulo Alves: 

Data: 9 de Abril de 2014 às 09:13

Assunto: Capitão médico miliciano António vieira alves

Bom dia, sou o filho do Dr Antnio [Alves Vieira] e gostava de saber se teriam fotografias do hospital de Bissau desta altura (1967/69) [, o HM 241]. Houve uma cirurgia na altura em que foi removida a granada de morteiro do corpo de uma mulher. granada essa que foi destruída depois no campo de futebol (?). Veio no Diario de Noticias e na Revista do Exercito. 

O meu pai era estomatologista e, acho, subdirector do Hospital.

Podem ajudar-me?

Paulo Alves

2. Mensagem do J. Pardete Ferreira [ex-Alf Mil Médico, Teixeira Pinto e Bissau, HM 241, 1969/71], com data de ontem, em resposta a um pedido dos editores para comentar:

Já mandei notícias ao filho, mas vou repetir, ou melhor "tripetir", pois, um erro de manipulação apagou o meu escrito anterior. 

Embora o Alves Vieira fosse mais velho do que eu, conheci-o ainda no Hospital de Santa Maria. Na Guiné, ele era Capitão Médico do QP, Estomatologista. e, durante uns tempos, Sub-Director do HM 241. 

Fazia um duo com o Malícia, antigo futebolista da Académica, e partilhavam um pequeno Toyota Coupé Sport, vermelho e preto, que acabpu por trazer para a metrópole, tendo-me várias vezes cruzado com ele na Autoestrada do Sul, pois ele ia fazer umas consultas ao Barreiro. 

Andava quase sempre de calções e, embora "um gajo porreiro", não se ensaiava nada de resolver as coisas "à bruta", quando lhe faltavam ao respeito. Fomos amigos e cheguei a almoçar várias vezes com ele no Restaurante "O Chagão", na Rua Pinheiro Chagas, que era quase o seu "QG", pois tinha o comsultório ali perto. 

Consegui que ele viesse uma ou duas vezes aos almoços do 1º domingo de Junho dos "Canetas e Seringas" do HM 241 (que este ano terá lugar em Cascais). 

Tenho uma fotografia de grupo onde ele está presente mas tenho as minhas fotos em parte incerta, pois, ao fazer arrumações, não descubro onde as meti... Hão-de aparecer...

Alfa Bravo.
José Pardete Ferreira
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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13018: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte III: A vida em campanha (Sidónio Ribeiro da Silva, hoje cor inf ref)

1. Histórias da CCAÇ 2533 > Parte III (Cap Inf Silvino R. Silva, hoje cor ref)


Continuamos a publicar as "histórias da CCAÇ 2533", a partir do livro editado pelo 1º ex-cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia. Esta publicação é uma obra coletica, feita com participação de diversos ex-militares da companhia (oficiais, sargentos e praças). As primeras 25 páginas são do cap Sidónio Ribeiro da Silva, hoje cor ref.

A brochura chegou-nos digitalizada através do Luís Nascimento. Temos autorização do editor e autores para dar a conhecer, a um público mais vasto de amigos e camaradas da Guiné, as andanças do pessoal da CCAÇ 2533, que andou por Canjambari e Farim, região do Oio, estando na dependência do BCAÇ 2879, o batalhão dos Cobras, cuja história já aqui foi publicada pelo nosso camarada e amigo Carlos Silva, carinhosamente tratado por "régulo de Farim".

Recordo, por outro lado, que as nossas duas companhias, a minha CCÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12), e a CCAÇ 2533, do Luís Nascimento e do Joaquim Lessa, viajaram, juntas no mesmo T/T, o Niassa, em 24 de maio de 1969, e regressaram juntas, a 17 de março de 1971, no T/T Uíge!... Ah! uma fantástica coincidência!...

Publicamos agora a parte correspondente às pp. 12 a 17, onde o cap inf Sidónio R Silva  fala de diversos aspetos da "vida em campanha", comuns à tropa que estacionou no CTIG: (i) formaturas e toques; (ii) o pelotão da "lata" (os miúdos que iam rapar o tacho da tropa); (iii) o primeiro ataque de abelhas; (iv) tropas nativas Pel Caç Nat 58 e 61, Pel Mil 183; (v) minitornados e seus efeitos devastadores; (vi) as colunas de reabastecimentos e a ida da Farim (c, 4 mil habitantes, fora a tropa), sede do BCAÇ 2879, apanhar o "ar da civilização"; (viii) a mascote da companhia. o nº 33, um macaco-cão; e, por fim,  (ix) o correio (; esta parte está truncada, vou pedir ao Luís Nascimento que volte a digitalizar as páginas 16/17).















Cortesia de Sidónio Ribeiro da Silva (ex-comandante da CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71), do Joaquim Lessa e do Luís Nascimento


(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de abril de 2014> Guiné 63/74 - P13005: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte II: Embarque e as primeiras impressões do aquartelamento e tabanca (Sidónio Ribeiro da Silva, hoje cor inf ref)

Guiné 63/74 - P13017: Notas de leitura (582): "Por Terras de África - da Terra dos Cancurans ao Reino da Rainha Gunga", por Francisco Búzio Reis (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
É completamente redundante andar à procura de todos os porquês sobre esta febre da escrita, há para aí uma vibração coletiva que está a pôr muita gente a escrever relatos, memórias, romances e obras aparentadas.
Em muitos casos, sente-se a avidez de comunicar a paixão por África, as leituras que se fizeram sobre os povos por onde se andou, faz-se mesmo questão de falar das matas luxuriantes, das panorâmicas edénicas, etc. O pior é a organização do conteúdo, fica-se com a impressão de que certos autores devaneiam por indisciplina e em dado momento, talvez fatigados, acabam imprevistamente. O que é pena, pois há relatos que possuem informação, arrancam bem-intencionados e depois divagam até ao beco sem saída.
Será o caso desta obra.

Um abraço do
Mário


Por Terras de África – da Terra dos Cancurans ao reino da Rainha Ginga

Beja Santos

Francisco Búzio dos Reis cumpriu o serviço militar na armada, teve intervenção autárquica e desempenhou na Guiné-Bissau o cargo do diretor de um grupo empresarial durante três anos. Diz-se um apaixonado por África. Ao que parece, “Por Terras de África – da Terra dos Cancurans ao reino da Rainha Ginga” é o seu primeiro livro, um relato passado na Guiné, em Portugal e em Angola, sobretudo. A organização é de um relato de alguém que se chama Francisco e que viaja pela Guiné, é um entusiasta pela sua história e um aficionado da caça. Tudo começa em Cacheu, fala-se da fortaleza e o cicerone é Mamadu Camará, um Mandinga. Mamadu está perfeitamente informado, ali em Cacheu houve comércio de escravos que seguiam depois para Elia (pequena península a norte do rio Cacheu onde habitam os Baiotes e os Felupes, daqui embarcando para Cabo Verde). À data da visita, vive-se uma grande tensão na área, as tropas senegalesas vão no encalço dos guerrilheiros do Casamansa. A viagem prossegue para Varela, passam por S. Domingos e depois visitam a estância balnear de Varela, regista a decadência e empreendimentos falhados: “A umas centenas de metros uma enorme infraestrutura em construção, interrompida talvez pela antevisão de um fracasso empresarial ou então político. Terá sido a Líbia a financiar aquele elefante branco e que por motivo qualquer a obra foi interrompida. Uma avaliação das possibilidades de êxito da construção de um enorme complexo turístico em cima do areal, aparentemente sem se acautelar a viabilidade de acesso a milhares de pessoas vindas do exterior, sem aeroporto na zona, sem porto e por terra, uma estrada sem asfalto são eloquentes conselhos para parar aquele sorvedouro de divisas”.

É o prazer de contar e iniciar o leitor que desconhece a Guiné nos atributos de uma natureza fascinante: o leite de palma, as cobras de picada mortal, a gastronomia (um destaque para as portentosas ostras), os mercados garridos e, claro está, a caça, mas sempre aproveitando toda a circunstância para acrescentar mais um pormenor sobre a etnografia e a etnologia. Aqui e acolá, uma ou outra nota sobre a guerra de libertação e os seus vencidos, fala-se de João Malaca, um comandante militar do PAIGC que fuzilou o régulo dos Manjacos e que agora estava arrependido do que fizera, e mesmo Orlando Nhaga outra autoridade revolucionária, agora na pobreza com saudades dos portugueses. Caça-se, com grandes ou pequenos êxitos, há repastos. Apareceram amigos no dia 10 de Junho em Cacheu, mais um pretexto para se falar da região, da luta de libertação, vários projetos da cooperação, de usos e costumes e de uma inacreditável corrupção que grassa pelo funcionalismo guineense. Segue-se uma caçada na mítica mata de Ucó, a Leste de Cacheu. Daqui parte-se para Bolama, há sempre um apontamento histórico que facultara ao leitor: “Próximo da cidade, o aeródromo com a gare em ruínas. Ali o sítio onde o governador Velez Caroço recebeu o capitão Pinheiro Correia no dia 2 de Abril de 1925 pelas 15,30 horas no términus da primeira viagem entre Portugal e Bolama”. Regressa a Cacheu. É aqui que aparece Ramos que como o autor sofre de paludismo. Agora abre-se um capítulo novo da obra, Ramos vai falar da sua vida, Francisco está curioso: “Impressionou-me o sofrimento daquele homem. Avaliei a mágoa que sentia e o sofrimento por não ver as filhas. O que teria provocado o seu inferno? Que dramas viveu? Quantas desilusões conheceu que lhe despedaçaram a alma. Estão sentados a beber chá príncipe mais arroz doce e papaia. É então que Ramos vai falar das suas mágoas e da alma que deixou em Angola".

Regressamos a Portugal onde Joaquim da Silva Ramos passou a juventude, tirou o Magistério Primário e conheceu Amélia com quem virá a casar. É mobilizado para Angola. A mulher fica, e já está grávida. Ramos chega a Luanda e conhece uma mocinha bem sensual, Aida, que o impressionou. E parte para Berlinda, no Luso, aqui se passará metade do livro, vamos presenciar a ascensão da luta armada da região do Luso. As tropas portuguesas respondem com uma grande operação, ficamos a saber que a PIDE/DGS é atuante, está muito bem formada. Ramos manifesta indignação com a brutalidade dos interrogatórios da polícia política. Chaga a notícia da morte da mulher, num acidente brutal, vem a Portugal, após o funeral vai meditar a Fátima, resolveu antecipar o seu regresso a Luanda. É um viúvo pesaroso que se vai render aos encantos de Aida. Fazem amor, mas Ramos está profundamente dividido: “A sua moral puritana, própria de um rapaz oriundo de uma sociedade domina por uma moral coletiva de rigor nos comportamentos que a Santa Madre Igreja tinha, de forma generosa, sabido transmitir, fazia-o pensar, era penalizante a conclusão a que chegara. Viúvo há tão pouco tempo, como era possível ter-se envolvido com aquela miúda, filha de uma pessoa que tão bem o tinha tratado? Começou a sentir-se obrigado a um compromisso efetivo para reparar a sua fraqueza e depois temia imenso que uma gravidez acidental o arrastasse de forma definitiva para um novo enlace”.

Meditabundo, vai para uma mesa de café onde ouve uma história de prosápia de caçadores de trazer por casa. E parte novamente para o luso, Berlinda está ferro e fogo, os alvos comandos decidem uma operação aniquiladora dos guerrilheiros operantes naquela região do luso. E, de facto, os guerrilheiros serão rechaçados. Ramos volta a Luanda, Aida está grávida, Ramos promete casar. Entrementes, o grande camarada de Ramos, Tavares, anda de beicinho pela Rita de Viana, a coisa dá para o torto.

É o momento propício para sair da trama ensarilhada, há uma tragédia no horizonte. Ramos parte para o Senegal e daqui para a Guiné. Vive-se a guerra, aceitou ser professor, foi para o Pelundo, instalou-se numa casa em alvenaria, ali residiu até à independência. Depois rumou até Teixeira Pinto, comprou casa em adobo, fez amizades e era respeitado. Foi ali que adoeceu e depois encontrou o português para quem contou a sua história.

O narrador regressa a Portugal e um dia no Algarve, enquanto come sardinhas, avista Ramos, há finais felizes. Procurou informações de Aida e da menina, com a ajuda de um comerciante libanês descobriu-a. Recebeu um telefonema de Aida, em Luanda, a soluçar; acordaram encontrar-se em Portugal, recomeçar a vida. E o relato assim chega ao seu termo: “Dei por terminada uma história sofrida e difícil que teve, contudo, momentos de grande humanismo e solidariedade, sentimentos que constituem nas nossas vidas momentos únicos. Pesei ali o valor de uma amizade e dei graças a Deus por aquele reencontro”.

O título da obra é enigmático, nós nada viremos a saber, ao certo, sobre a terra dos Cancurans nem sobre a Rainha Ginga fará a sua aparição. Mas, diga-se o que se disser, o título é fascinante. Ponto final
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12982: Notas de leitura (581): Quem são os responsáveis pelo assassínio de Amílcar Cabral?, em O Jornal de Janeiro de 1976 e Jeune Afrique de Novembro de 1983 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13016: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte II: Esclarecimentos sobre as circunstâncias da tragéda: excerto do relatório de operações e testemunhos presenciais (Jaime Bonifácio Marques da Silva)



Guiné A> região de Tombali > Mapa de Bedanda (1956) > Escala 1/50 mil > Pormenores: Op Pirilampo, com saída de Catió, [. vd. mapa de Catíó,] passando, a sul,  pela mata de Cabolol e com cambança do Rio Tompar, afluente do Rio Cimbijã, e chegada a Cufar... O sold at cav Mateus ficaria pelo meio, desaparecido nas as águas do Rio Tompar. Foi a 10 de setembro de 1966.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


1. Mensagem, com data de 18 do corrente, do nosso camarada e amigo Jaime Bonifácio Marques da Silva [, natural de Seixal, Lourinhã,  e residente em Fafe, onde foi professor de educação física e autarca (com o pelouro da cultura, e onde é mais conhecido como Jaime Silva), ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), membro da nossa Tabanca Grande]

Estou a tentar coordenar a cerimónia do Mateus na Areia Branca  [, no próximo dia 11 de maio,] e, por isso , envio-te um conjunto de elementos importantes e precisava da tua colaboração e da do pessoal que esteve na Guiné com ele, [em Catió]. Tenho alguma urgência por causa da tipografia e porque preciso de sair daqui.

 (....) Por favor, diz se chegou tudo em ordem

Desculpa o trabalho. É pela causa.

Boa Páscoa para ti, Alice e teus filhos cá do pessoal do Norte.

Abraço, Jaime


2. Ficha biográfica militar do José Henriques Mateus (continuação) (*)

2.ª Parte (em construção) [Elementos recolhidos por Jaime Bonifácio Marques da Silva]

 Luís Graça, esta segunda parte é para fazerem o favor de rever e para complementar com novos dados, caso seja oportuno.


José Henriques Mateus (1944-1966)
AS CIRCUNSTÂNCIAS DO SEU DESAPARECIMENTO E MORTE

1.1 - OPERAÇÃO “PIRILAMPO” - RELATÓRIO DE OPERAÇÕES

No dia 10 de setembro de 1966 o José Henriques Mateus é destacado para participar na Operação de Combate, denominada “Operação Pirilampo”.

NOTAS:

No final de cada Operação de Combate o oficial comandante do grupo de combate tinha, obrigatoriamente, que entregar ao seu Comandante de Companhia um relatório circunstanciado do desenrolar da mesma. Nesse relatório, para além da identificação dos elementos das NT participantes na ação, teria que descrever com pormenor todos os acontecimentos ocorridos durante a sua execução, nomeadamente: horários, itinerários de progressão, locais das ações, contacto com inimigo ou população, resultados das ações com IN (armas capturadas, mortos ou feridos do IN ou das NT), ou, inda, outros incidentes como foi o caso concreto do Soldado Mateus.

Transcrevo (i) o Relatório de Operações, de acordo com a versão já publicada da autoria de Benito Neves; (ii) um documento com a parte do relatório referente ao acidente com o Mateus, (iii) as declarações do Alf Mil Fernando Miguel e (iv) as declarações de um camarada de pelotão que o viu desaparecer

3.1. Transcrição do texto de Benito Neves (#)

“Relatório da operação OPERAÇÃO PIRILAMPO - 10 de Setembro de 1966

Com a finalidade de bater a mata de CABOLOL [vd. carta de Bedanda], de modo a detectar e a destruir o acampamento IN localizado em (1510.1120.A2) - Esta operação foi realizada pelas CCAV 1484, reforçada com 1 Gr Comb Mil 13 e CCAÇ 763 (-), reforçada com 2 Sec Mil 13.
Foi efectuada uma minuciosa batida à mata de CABOLOL no sentido E-W.

Pelas 14H30, não obstante as dificuldades que surgiram pela densidade da vegetação, foi detectado o acampamento IN em (1510.1120A3.15), composto por 16 casas, que foi destruído com fraca resistência do IN. Foram capturados documentos diversos e munições para espingarda Mauser.

O IN, que deveria ter detectado as NT, havia evacuado grande parte do seu material para fora do acampamento.

Em continuação da acção, as NT seguiram em direcção a CABOLOL BALANTA.

Quando queimavam o seu primeiro núcleo de casas mais a sul, o IN, instalado na orla da mata, reagiu em força com fogo de morteiro, lança granadas-foguete, metralhadora pesada, pistolas metralhadora e espingardas, causando 6 feridos ligeiros às NT. Após reacção destas, o IN furtou-se ao contacto, sendo ainda queimados mais 3 núcleos de casas.

Pelas 17H00 as NT iniciaram o regresso, tendo sido flageladas com fogo de morteiro.

Quando as NT atravessavam o rio TOMPAR [, afluente do Rio Cumbijã, a sudoeste de Bedanda], afogou-se o soldado nº 711/65, José Henriques Mateus, da CCAV 1484, não tendo sido possível recuperar o seu corpo, apesar de todas as buscas efetuadas.

Pelas 22h30 as NT chegaram ao aquartelamento de Cufar, depois de uma marcha fatigante em terreno pantanoso.


O que acima se transcreve é o que consta do relatório da operação, extraído da história da Companhia, de que fui encarregado de escrever.

(#)  In: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, quinta-feira, 19 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1676: Vivo ou morto, procura-se o Soldado Mateus, da CCAV 1484, natural da Lourinhã (Benito Neves)


O José Henriques Mateus em Catió (c. 1966).
Álbum da família. Cortesia de Abel Matteus
3.2 TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTO OFICIAL

Transcrição integral de documento incerto no processo individual do José Henriques Mateus consultado por mim no Arquivo Geral do Exército em agosto de 2013.

“COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE DA GUINÉ

BATALHÃO DE CAÇADORES N.º 1858

COMPANHIA DE CAVALARIA N.º 1484

CÓPIA DA PARTE QUE INTERESSA AO RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “PIRILAMPO”

REALIZADA POR ESTA COMPANHIA EM 10 E 11 SET66
……………………………………………………………………………………………………………………………

AO CENTRO:COMANDO TERRITORIAL INDEPENDENTE DA GUINÉ – BATALHÃO DE CAÇADORES N.º 1858. – COMPANHIA DE CAVALARIA N.º 1884. – RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “PIRILAMPO”.

DO ÂNGULO SUPERIOR DIREITO: Exemplar n.º 1. – Ccav.1484. – Catió – 131000Set66---
…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

“5. – DESENROLAR DA ACÇÃO. - ……………………………………………………………………….

“Cerca das 10.17.00 evacuámos os feridos e iniciámos o regresso (conforme croquis). Na passagem do RIO Tompar a qual se efetuava nadando agarrados a uma corda,  afogou-se o soldado n.º 711/65, José Henriques Mateus, por bruscamente ter largado as mãos da corda a que se agarrava. Foi imediatamente socorrido por equipas de nadadores que se encontravam despidos e a postos para tais casos mas não foi possível recuperar o militar vivo ou morto. São testemunhas: alferes Mil. Fernando Pereira da Silva Miguel e 1.º Cabo Radiotelegrafista n.º 1055/65 Osvaldo Freitas de Sousa. O regresso com travessia de 3 rios, com lodo e água, sendo frequente ter se arrancar do tarrafo pessoal enterrado e exausto, e ainda com 4 homens transportados a dorso, foi uma epopeia de sofrimento. ………………………………………………………….
…………………………………………ESTÁ CONFORME ……………………………………………………..

Quartel em Catió, 19 de Setembro de 1966

O Comandante de Companhia

(assinatura elegível)

Virgílio Fernando Pinto

Capitão de Inf.ª “

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Guiné > Região de Timbali > Catíó > c. 1966 > CCAV 1484 > Foto de grupo tirada frente às instalações do comando do batalhão de Catió. Esta parece ser a secção a que pertencia o sold at cav Mateus. A que pelotão pertencia? Quem era o furriel, comandante da secção,  e os demais elementos? Pede-se ao Benito Neves para completar a legenda e identificar, se possível, todos estes militares. Sabemos, pelo Benito Neves, ex-fur mil, que vive em Abrantes, que o comandante de secção era o ex-fur mil, madeirense, Teles.


Foto do álbum de família, gentilmente cedida por Abel Mateus ao Jaime Silva.


3.3 - EXTRATOS DO PROCESSO INSTAURADO NA COMPANHIA

Do processo sumário organizado na Companhia pelo Alf Mil José Rosa de Oliveira Calvário em 22.9.66, extraio as declarações (síntese) das três testemunhas ouvidas:

3.3.1 – Alf Mil Fernando Pereira da Silva:

“Quando o acidente se deu eram cerca de 17.45 minutos (…) não dava passagem a vau por se encontrar em maré cheia. (…) Quando o Soldado José Henriques Mateus se encontrava a atravessar o rio agarrado a uma corda, que fora colocada, para apoiar a travessia de uma à outra margem, quando esta se partiu. Em consequência disto o sinistrado desapareceu imediatamente não dando mais sinais de si. Mais disse que ouviu o Primeiro Cabo Osvaldo gritar: “Está um homem debaixo de água. (…)
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3.3.2 – Primeiro Cabo [Radiotelegrafista] Osvaldo Freitas de Sousa

O Primeiro Cabo Osvaldo Freitas de Sousa (natural de Fafe) declarou:

“Que se encontrava, quando do acidente, na extremidade da corda que travessava o rio para apoio da sua passagem, a ajudar seus camaradas a saltarem para a margem. E que quando o sinistrado se encontrava ameio da travessia, agarrado à corda, esta se rebentou. (…) Atirou-se à água para tentar agarrá-lo (…) agarrou-o ainda por um ombro, embora ele já se encontrasse submerso. Mais disse que começou a gritar pelo que foi ouvido pelos seus camaradas, os quais se lançaram à água. (…). Que um deles (talvez um milícia) o segurou quando ele já se encontrava prestes a ser arrastado para o fundo, devido ao peso do corpo do sinistrado. E que em virtude de se encontrar agarrado não consegui mais sustê-lo por mais tempo. (…) o corpo nunca mais foi visto. (…)”

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3.3.3 - Alf Mil José Martinho Soares Franco Avillez

A terceira e última testemunha foi o Alf Mil José Martinho Soares Franco Avillez que declarou:

“Após ter sido dado o alarme sobre o desaparecimento do sinistrado, correu até junto da margem e lançou-se à água, para participar nas buscas do corpo do desaparecido. Mais declarou que houve impossibilidade nas buscas feitas na zona onde desapareceu o sinistrado em virtude da escuridão que se acentuava, da forte corrente das águas do rio e além disso por estas se encontrarem bastante turvas. (…) levou cerca de quarenta e cinco minutos dentro de água (…) e dado que a coluna estava a ser flagelada na cauda e que havia possibilidades de sofrer emboscadas no regresso e dado também o adiantado da hora, foi dado ordem para regressar a quartéis. (…)”



Após a conclusão do processo sumário organizado na Companhia em 22.9.66 e da responsabilidade do Alf. Mil. José Rosa de Oliveira Calvário, o Comando Territorial Independente da Guiné manda encerrar o processo com a seguinte informação:

“ Sou de parecer que deve ser considerado em serviço” o desastre de que teria resultado a morte do Sold. 711/65, José Henriques Mateus, da CCAV 1484 a que se refere o presente processo.”

Quartel General em Bissau, 2 de novembro de 1966

O Comandante Militar

António N.M. Reymão Nogueira, Brigadeiro”



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3.4. - Depoimento de José Francisco Couto em 3 de fevereiro de 2014

O José Francisco Couto, natural do concelho do Bombarral, foi camarada de pelotão e participou na “Operação Pirilampo”, assistindo ao desaparecimento do Mateus quando ambos atravessavam o Rio Tompar.

Consultei o espólio do Mateus, por deferência do irmão Abel, e encontrei na sua correspondência dois Aerogramas enviados à mãe do Mateus pelo José Francisco Couto nos quais lamentava o desaparecimento do filho. (irei transcrevê-los).

Entretanto consegui, através de um amigo, saber a morada do José Francisco. Emigrou para o Canadá, onde vive atualmente e na troca de correspondência que trocou comigo escreveu sobre o momento do acidente:

“ (…). O Batalhão ia fazer uma emboscada na qual o José Henriques estava incluído. Éramos bastante amigos. O Alferes ia com uma corda atada à cintura para atar a uma árvore para nós podermos passar um a um. A corda atravessa o rio de um lado a outro. Ele agarrou-se à corda a seguir ao Alferes. Quando o Alferes já tinha passado para o outro lado, ele agarrou-se e a seguir ia eu e eu ouvi ele gritar e não o vi. Eu recuei para trás. Começaram as emboscadas por terra e por rio e nunca ninguém o viu mais. Ao fim de 15 dias passámos ao rio e vimos a camisa dele pendurada numa árvore toda rota . Ele umas semanas antes tinha-me desafiado para nós fugirmos para os turras. Por isso, nunca pensei que ele tivesse morrido no rio e que ele se tivesse passado para algum lado porque ele sabia muito bem nadar e pronto é tudo o que sei para contar. De resto não sei mais nada. Não sei se foi comido por algum bicho do rio ou o que se passou mais. (…)
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Final do texto em construção,
Jaime Silva
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Guiné 63/74 - P13015: 10º aniversário do nosso blogue (15): Manuscrito(s) (Luís Graça): O país que via passar os comboios (Ilustração de Joana Graça)

O país que via passar os comboios

por Luís Graça


14:13h. Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B, de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP 

urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo 

são deprimentes.
Abro talvez uma exceção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros da CP,
quando havia o cavador, 

o burro, 
o boi, 
a charrua,
o camponês, 

o zé povinho, camponês e burro,
besta de carga, carrejão.
A horta, a saída direta para os campos.
As hortas.
Ah!, e os azulejos azuis e amarelos Viúva Lamego
nas quatro estações do ano!
O termo apeadeiro enternece-me,
faz-me lembrar os tempos em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios:
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Sintra, Caneças, Colares ...
Faziam piqueniques,
cantavam o fado da desgraçadinha

e no fundo eram felizes.
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão 

que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
E aos operários que as construíram.
Ao zé povinho da cidade e dos campos.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Ao Pereira.
Ao Melo.
Ao fontismo.
Ao positivismo.
Ao génio organizativo.
Mesmo que a minha professora
de Sociologia Histórica das Classes Laboriosas,
discípula do E.P. Thompson,
só gostasse dos corticeiros.
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses e dos burros e dos bois.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, 

não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
Colhiam-se papoilas vermelhas no meio do trigo.
Não havia tempo para se ter stresse.
Morria-se cedo.
Ou nascia-se tarde,
sem tempo de ver crescer filhos e netos.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel,
da Nokia, da Samsung ou da Siemens, tanto faz,
que as novas tecnologias quando nascem 

(não) são para todos!
Ou talvez houvesse stresse
mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, essa coisa é tão velha como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
A esperança média de vida é um artefacto estatístico.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
os ferroviários também punham bombas.
Nas linhas de caminhos de ferro.
Matavam os seus postos de trabalho
em nome da liberdade.
Punham bombas para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem. 

Resistência ao ocupante nazi.
Hoje seriam caçados como terroristas internacionais.
Não sou ferroviário 

nem resistente 
nem terrorista.
Nem sequer anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Este país, bom aluno da Europa, 

devia merecer uma letra A.
Nem que fosse Coimbra A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos. 

Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
É algures no meu país profundo.
Assim como Freixo de Espada à Cinta 
que ninguém conhece.
Não, vim de boleia.
Muito obrigado.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.

── Lisboa, Santa Apolónia ?
── Não, Lisboa, Sociedade Anónima! 
──
corrijo o portuga por detrás do guiché.
── Não, não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
── Lisboa, SA!
Pergunta o portuga, caixa de óculos,
por detrás do bunker envidraçado,
que fala em nome da CP de todos nós.
── Conforto ou turística ? ──
olhando para mim, 
como se quisesse me tirar as medidas.
Ou adivinhar a minha secreta conta bancária.
── 2ª classe, se faz favor!
── Turística.... 2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe.
Gente de 2ª classe.
País de 2ª classe no desconcerto das nações.
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
e a tua, nossa, gente de 3ª classe
nos porões nauseabundos dos cargueiros
que rumavam às Américas da Liberdade!).
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há conforto e turística,
no Alfa Pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
minha querida professora.
Mas, mais seguro, é no cofre forte da Suiça 
ou num off shore qualquer.
É o que se chama mobilidade social total.
Fugir à condição de besta de carga.
── Vê-se mesmo que o senhor 
é um utente acidental da CP,
já não há 2ª classe.
── Sou um mau utilizador do comboio, 
peço desculpa ──
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.

Apeteceu-me dizer-lhe:
── O senhor, desculpe, 
mas eu sou fã dos comboios.
Tenho uma dívida histórica 
para com os comboios,
que unificaram o meu país.
Pode não ser seu, mas é meu.
Tenho orgulho nele, o meu país.
E tinha que lhe dizer isto.
Vou para Lisboa, SA, 

capital do reino que já foi império,
desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo.
Ou penso que tenho tempo.
Nada como esperar um comboio
numa estação de tipo B, Coimbra B
para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Nada de stresse.
Não penses na morte.
Que o stresse mata, 
como uma bala de Kalash.
Peço uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo,
que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque
como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
que está afixada numa das paredes da estação de Coimbra B.
Alguém ali mandou afixar,
creio que em bronze (sou mau em metais),
o seguinte:
"Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
no dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
o Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B ?,
O que diria a corte papal! 
Os grandes deste mundo!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores!
E os vindouros!

Que mais vale um ano de tarimba
do que dez de Cloimbra ?!
Nem pensar.
Por isso lá fica a tabuleta. 
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu.
Ou se calhar para ninguém.
Só para a História.
Afinal, quem lê neste país placas de bronze
afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país, 
perguntaria a minha querida professora ?
Histórias aos quadradinhos
mas não a História com H grande.
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
desaparafusa a placa 

e leva-a para casa,
para o museu 

ou para a loja de antiguidades.
Não, nada acontece em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II. 
Um dia, em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia,
mas esta é a minha leitura.
Que me desculpem os escribas mais doutos do que eu.
Que me desculpem os lentes de Coimbra.
Chega o Alfa, just in time, à tabela,
como na linha de montagem automóvel pós-taylorista 

da Auto Europa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
na ponta mais acidental da Europa ocidental.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o sr. Taylor
nem os seus principles of scientific management.
Nem a ética protestante nem o alemã Max Weber.
Provinciana e ronceira, a tua terra,
lá diriam o Eça e a minha professora,
que é queirosiana e estrangeirada.
Acelera o Alfa

E bate o meu coração.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros,
IVA incluído à taxa de 5%.
Isto faz bem à minha autoestima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
que engoli, de pé, 

ao balcão do bar manhoso
da estação deprimente de Coimbra B.
── Quanto vai dar ?
── Chega aos 200 ou mais! ──
diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei. 
Nem gosto de apostas mútuas.
Deixei de ser solidário, 
que me desculpe a Santa Casa da Misericórdia.
── Umas cartas para passar o tempo ?
── Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.
Tenho livros para ler. 
──
Abranda o Alfa,
lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória coletiva.
O caminho de Santiago. 
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
── Chega à tabela. 
Dezassete e seis na Estação do Oriente ──
diz-me o pica, orgulhoso.
── Até que enfim que os comboios partem 
e chegam à tabela,
na nossa terra.
Fico sempre com inveja 
quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
── Já não te calha na rifa, ó Ramalho!,
agora são vinte e cinco cães a um osso, 
ó Ortigão!
── Vai desejar tomar alguma coisa ? ──
pergunta no futuro próximo o homem-do-chá-café-laranjada...
── Um Prozac, por favor.
── Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
── Sim ?
── Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último. Estação de Atocha.

── Atocha ?
── Sim, Atocha, Madrid...Não lê os jornais ?
── Não, acabo de chegar doutro planeta.
── En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes 
de largo recorrido y de cercanías...
── Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos. 
Estou de costas viradas para a Europa.
── Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
se dirigen luego a Chamartín
y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación,
llamada Puerta de Atocha
desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
que va a Andalucía.
..
── Muchas gracias! Vejo que é um homem lido e viajado.
── Só faço a península ibérica.
── Ah!, a jangada de pedra...
── Perdão ?!... 

Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela..
.
── E não tem medo do futuro dos comboios ?
── Não... Sabe, com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida. 
De qualquer jeito.
── Deixe, a vida continua... 
As bombas explodem...
As guerras passam.
Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto.
Ou penso em bombas nas casas de banho
das carruagens dos comboios.
Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado. 
Empatia. 
Compaixão.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
E pensar em bombas.
E ter empatia.
E beber compal.
Houve um tempo em que pensava em minas.
Anticarro. 
Antipessoais.
Minas. 
Bailarinas. 
O ballet da morte.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
É português, é nosso.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café.
Para te tirar o sono.
Antes de partires às 3 da manhã,
para a Ponta do Inglês.
── Ponta do Inglês ?!... 

Já sei, saíste cedo da casa de teus pais,
Ainda menino e moço!
── É a voz do sangue,
o meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
As picadas. 
Os trilhos.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas,
uma feixe de linhas,
cheiro a óleo, a mijo e a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais. 
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa. 
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Mercadoria=carne para canhão,
alguém escreveu, a spray,
um grafito na última carruagem.
na primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
── Política, meu estúpido!,
a primavera política do Marcelo Caetano.

── Sim, eras jovem.
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris. 
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor,
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
os grandes de Espanha que estão no Prado...
── Paris, es doido, ou quê ?! 
Com a pide à perna,
mais os carabineiros da guardia civil!



Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo. 
O país que mexe, dizem-te.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
quando estou no hotel.
Duas estrelas, o hotel. 
Novo, a cheirar a tinta.
Bom serviço. 
Comida caseira. 
Faces rosadas.
E duas mamocas que cabem na palma da mão.
Mas faz frio à noite.
── Voyeurismo! ── pensa ela,
a rapariguinha do bar. 
Oito páginas,
Entre notícias locais 
e os pequenos anúncios desclassificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatchinha dengosa"...

Linguagem de código.
A semiótica da solidão. 
Do sexo triste e solitário.
── Meu bem, ligue para o meu telemóvel,
que a crise bate a todas as portas,
sem distinção de género, 

etnia, 
cor, 
condição 
ou religião.
── A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
── Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
── Não sei se cresceu bem... 
Não sou de cá.
O Politécnico. 
O túnel de Viriato.
Os colóquios. 
Os debates.
As ideias. 
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O génio do Grão Vasco.
O comércio. 
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Kavaquistão.
O que é feito do RI 14 ?
Não sei, a guerra acabou.
Foi bom para cidade,
A tropa, a guerra, o regimento.
── Ruas, estás de granito! ── 
diz o grafito.
(Ruas é o chefe da tribo, presumo.
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco).
── Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
── Só falta a Universidade,
que mais de 10 mil estudantes do politécnico já cá temos.
── Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
os sacanas da Covilhã.
──
(Outro lóbi beirão, o da Covilhã).
Registo o orgulho dos miúdos e miúdas
da Associação de Estudantes
da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
que realizam anualmente as suas jornadas.
O país mexe. 
Viseu mexe.
O país profundo mexe. 
O Kavaquistão.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
vestidos de preto,

como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. 
Passei o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
Revisitei outros infernos.
── O Alfa vai a 140, ó puto.
──
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
leio no tableau de bord.
── Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
── Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras. 
Modernização da linha.
Tenho um pensamento piedoso e nobre
para com os trabalhadores anónimos
que constroem as novas linhas 
dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? 
Africanos ?
Guineenses ? 
Ex-camaradas teus ?
Imigras ? 
Clandestinos ?
── Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
── Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria,
O inferno na terra. 
Mas aí são magrebinos.
── O novo proletariado do Século XXI...
── Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
── Dá o Benfica na esporte tê vê.
── 
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
E os flamingos. 
E as ostras,
Les petites portugaises,
acompanhadas com Champagne.
Em Paris.
Comment ils sont toujours gais, les portugais!
O branqueamento de dinheiro
que vai por essa nova Lisboa 
do Próximo Oriente.
A luxuriante estação do Oriente,
desenhada pelo Calatrava.
A ostentação dos ricos.
Just in time
17:06h. 
Cheguei.
Balanço do cliente:
── Pensei que já fosse o TGV. 
O TGV é que é.
── Não é o TGV, 
mas por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular. 
Turística, claro.
Que é como quem diz, 2ª classe.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal &Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
── Ah!,o  país que via passar os comboios!...
E o puto tinha razão:
── Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP.
E na terra onde nasci, ao pé do mar.
E onde nunca vi sequer passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
onde só há moinhos de vento
com búzios do mar
que falam de mouras encantadas.
Nem os comboios chegam a Viseu.
Um abraço aos Viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem,
de Expresso, por esses ipês acima.

Com regresso de comboio,
se não sabotarem o comboio 
que pára em Coimbra B.
E prometo ao barman 
que não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha,
quando voltar a Coimbra B,
outra vez.
Não esquecerei as bombas de Atocha,
nem as minas e armadilhas 
da Ponta do Inglês.

Coimbra-Lisboa, Alfa Pendular, 25/3/2004. 
Revisto, Alfragide, 21 de abril de 2014

© Luís Graça  (2004). Todos os direitos reservados



Joana Graça (2014) - S/ título. Técnica mista 100 cm X 80 cm

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13014: 10º aniversário do nosso blogue (14): Manhã de Páscoa, ao som da Sonata Moonligth, de Beethoven (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P13014: Parabéns a você (723): António Branquinho, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série > 19 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13007: Parabéns a você (722): Augusto Vilaça, ex-Fur Mil Art da CART 1692 (Guiné, 1967/69) e Victor Barata, ex-Cabo Especialista da FAP/DO 27/BA 12 (Guiné, 1971/73)

domingo, 20 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13013: 10º aniversário do nosso blogue (14): Manhã de Páscoa, ao som da Sonata Moonligth, de Beethoven (J. L. Mendes Gomes)

Nos "sete momentos"
Dia de Páscoa


por J. L. Mendes Gomes

Cerraram-se as cortinas brancas das janelas.
As portas largas de alumínio
Ainda estão fechadas.

Dormem na manta do silêncio,
Sob os telhados,
As gentes cansadas do labor.


J. L. Mendes Gomes
Pelas estradas ainda ermas,
Só a chuva corre
Pelas bermas e valetas.

Pelas encostas cobertas
De giestas amarelas,
Correm fios de correntes,
Lá dos cumes.
Rumo ao rio que corre grosso,
Lá mais ao fundo.

É deles que lhes vem
A força toda
E aquela vontade de correr
Com pressa.
De chegar depressa até ao mar.

Oiço Beethoven. 

Na sua Sonata Moonligth,
Ao piano.
Com toques tão brandos.
Quase tristes.
Me dá vontade de chorar...

Mafra, 20 de Abril de 2014, 11h23m

Joaquim Luís Mendes Gomes


[ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66; jurista, reformado; autor do livro de poesia "Baladas de Berlim", Lisboa, Chiado Editora, 2013, 232 pp., preço de capa;: € 14; encomendar aqui]
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Nota do editor: