Memórias boas da minha guerra
(não publicado)
31 - Férias da guerra - o “Lourosa”, padres, religião, cinema e etc.
O soldado Guilhermino Dias era conhecido por “Lourosa”, o nome da terra onde nascera. Embora de freguesias diferentes, sendo eu de Fiães, concelho de Sta Maria da Feira, esse facto proporcionava-nos um relacionamento de vizinhos. E, como era do meu pelotão, estávamos mais ou menos ao corrente do que se passava lá na terra. Jogava bem à bola; ele era “quarto de defesa” do Lusitânia de Lourosa. “Adoecia” muitas vezes (tal como outros) mas estava sempre bom para jogar futebol.
Também era bastante religioso. Quem o quisesse ouvir cochichar de noite e em plena operação, era procurá-lo no final do pelotão, junto ao enfermeiro e a um alferes, a rezarem o terço. Este alfero, era também conhecido pelas promessas que fazia ao Senhor Santo Cristo em momentos aflitivos, oferecendo vacas aos pobres lá da sua ilha. Felizmente, como faltou a muitas Ops., safou-se de umas quantas manadas que seriam necessárias para cumprir outras possíveis promessas.
Como eu conhecia a história do “roubo” do padre Damião de Lourosa, brincava com o Guilhermino acerca disso. Estou a referir-me ao conflito de poderes que afastou (chegando a envolver centenas de GNR) o padre que esteve sequestrado durante semanas pela população de Lourosa. Esta história viria a servir de inspiração a Bernardo Santareno para a obra “A Traição do Padre Martinho” (1969). O poder, eclesiástico (Bispo do Porto) e civil (Presidente da Câmara da Feira, que era de Fiães), pretendiam colocar lá um padre de Fiães, contra a vontade e alguma rivalidade da população. As posições extremaram-se de tal forma que o povo deixou de ir à igreja.
Quando vim de férias, da Guiné, ele fez questão que eu fosse visitar a família.
- Está bem. Vou aproveitar para ver a Procissão dos Passos no Dia de Ramos, que calha ao dia 7 de Abril - disse eu, para o provocar.
Ao que ele logo respondeu:
– Ó Silva, sabe que sou muito crente a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, mas não me foda com essas merdas. Não queriam mais nada, não? Padre de Fiães, Presidente da Câmara de Fiães, Bispo do Porto e ainda mais o sacana do Salazar!? Puta que os pariu!
Foto do "Lourosa" comigo, no mesmo local de fronte da casa onde o Padre Damião esteve sequestrado. Também é o mesmo local onde a procissão parava para a primeira intervenção do Padre Pregador.
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- Olha quem está ali à porta. – disse a minha mãe. – É o mestre Rufino. Está sempre a perguntar por ti.- Então Zéca, como vai aquela porcaria que tanto tem prejudicado a nossa rapaziada? – perguntou o mestre, enquanto me abraçava emotivamente, evidenciando a sua amizade e alguma curiosidade. – Olha que o Salazar está no fim e logo que “vá co caralho”, isto vai mudar tudo. Vê se te safas mais algum tempo, porque a coisa está para muito breve.
- Não há problema nenhum – respondi alegremente, ao mesmo tempo que observava a minha mãe que nos espreitava, enquanto limpava os olhos.
E continuei:
- Olhe que até estou a gostar daquilo. Não se faz puto; é só patuscadas e não nos falta nada. Além disso, viajar é das coisas mais agradáveis e nós tivemos a sorte de andarmos sempre de um lado para o outro. Nunca passeei tanto na minha vida!
- Agora reparo, trouxe esse carro? – perguntei admirado, enquanto ele confirmava orgulhosamente abanando a cabeça. – Mas, como foi possível?
Ele justificou:
- Desde que me morreu a patroa, coitada, com aquele mal maldito, resolvi dar uma volta à minha vida. Como vias, ela parecia uma força da natureza: cheia de saúde e sempre a trabalhar. De repente, lá se foi. Não houve santo nem remédio que lhe valesse. Como a rapariga está lá para Gaia há já uns anos e o meu filho, que se apaixonou por África, não troca o Congo por Portugal, fiquei sozinho. Não veio quando a mãe morreu, mas esteve cá há pouco tempo e trouxe-me uma prenda. Imagina: comprou lá uma carta de condução para mim! Sou analfabeto mas não sou burro, fui à escola de condução e aprendi rapidamente a conduzir. Como tive sempre uma vida regrada, juntei uns tostõezitos e agora quero viver melhor. Não queres vir dar uma volta?
- Parece que adivinhou, porque tenho de ir a Lourosa visitar a família de um colega do meu grupo e ainda não sabia como. Vamos lá então, e aproveitamos para lembrar os velhos tempos. - respondi-lhe.
O mestre Rufino trabalhava de pedreiro e formava equipa com mais 2 ou três ajudantes. Apesar de analfabeto, não receava pronunciar-se sobre qualquer assunto. Como fiquei órfão de pai, ele acarinhou-me ainda mais. Devo a ele algumas ideias que me acompanharam pela vida fora. Pelo menos aprendi a encarar de forma diferente algumas certezas inabaláveis.
O mestre gostava muito de cinema e quando eu era miúdo, chegava a pagar-me o bilhete para o acompanhar. Fazíamos mais de 4 km a pé até Sta Maria de Lamas, para ver os filmes de cobóiadas, capa e espada e bíblicos. Dizia que compreendia tudo mas queria-me ao seu lado para tirar alguma dúvida. O certo é que ele já percebia muitas expressões em inglês. No final, vínhamos ainda pela tasca da “Viúva-alegre”, para comer uma “laroca” de bacalhau. Que belas essas tardes de cinema!
Um dia, em 1955 ou 1956, o mestre Rufino voltou a convidar-me para ir ao cinema mas, como em Lourosa se fazia uma importante procissão ao Calvário, quando lá passámos, disse-me:
- Hoje é Domingo de Ramos. Vamos ficar por aqui para vermos um espectáculo de categoria. Como não sei ler, dou-lhe mais valor e tenho que o aproveitar. Para mim isto é tudo um teatro.
Terminadas as primeiras cerimónias dentro da igreja, a procissão saiu para a direita em direcção ao Calvário. O andor com o Senhor dos Passos seguia logo atrás dos padres e demais intervenientes nas cerimónias. O tempo nublado, bem como a cor predominante roxa dos paramentos religiosos, ajudavam muito a salientar um aspecto geral escuro, pesado e triste, condizente com as celebrações em causa.
No cruzamento da estrada de Lamas, coincidindo com a esquina do cemitério e o início da subida para o calvário, havia uma pequena capela, a habitual moradia do Senhor dos Passos. Logo ali na sua frente foi colocado um pequeno estrado com um púlpito para a primeira grande intervenção do pregador, fora da igreja.
Ali se juntava a multidão que o escutava atentamente. Intervinha também uma freira capuchinha, que imitava a Sta. Verónica com gritos pungentes, jurando o seu amor a Jesus e pedindo em troca o seu sofrimento. A dada altura, coincidindo com a aproximação dos andores da virgem Maria e de Maria Madalena, vindos da viela ao lado do Café Central, o discurso do pregador ia subindo de tom, num evidente e estruturado apelo emocional:
- Reparai naquela mãe que vê o seu único e querido filho, apesar de inocente, chicoteado, rasgado de feridas e todo ensanguentado.
Ali mesmo à nossa frente, e logo atrás do andor de Jesus, lá estava o conhecido Zé Manel Simplório de Paços de Brandão. Com cerca de 2 metros de altura, rodava a cabeça em todas as direcções e já se mostrava preocupado com a tristeza geral crescente.
E o pregador continuava no seu papel, insistindo na sua expressão emocional:
- Reparai nos olhos de Jesus e imaginai o seu coração e a sua dor ao ver sua mãe, junto de Maria Madalena, em pranto, desesperada por não poder tocar-lhe nem sequer limpar-lhe as feridas do corpo.
O Zé Manel Simplório já não aguentava mais e no seu jeito truculento de falar de rajada, reagiu em voz alta:
- Qssa foda!,… Que não seja burro!… Já o ano passado lhe foderam o corpo,… para que é que voltou!? É mesmo morcom!
Foto retirada do livro "Cerco ao Cortiçal", com a devida vénia ao seu autor
"Cerco ao Cortiçal", por Rosa Silva, publicado em Março 2013, relata toda a história do sequestro ao
Padre Damião.
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Lá fomos então, vagarosamente, por ruas becos e vielas até ao lugar de Boco, junto à Encosta Dalém, onde vivia a Dona Preciosa, a mãe do Guilhermino Dias, o “Lourosa”.
Recebeu-nos muito bem e fez questão que tomássemos alguma coisa. Era gente humilde e habituada a trabalhar nas empresas corticeiras, desde os 10 anos.
Com o marido adoentado, os filhos por criar e os baixos salários neste sector, a Dona Preciosa não demorou muito a pedir:
- Ó Senhor Silva veja se me protege o meu Guilhermino, que precisamos muito dele. Ai o meu rico menino que tanta falta nos faz!
- Ó minha Senhora, se dependesse de mim, vinha já embora, aliás, nem ele nem ninguém teria ido para lá. Mas vai ver que tudo vai correr bem - respondi-lhe.
- A Senhora de Fátima o oiça! Esperamos que com a sua graça, lá iremos a pé, todos anos, para dar as 12 voltas à Basílica, de joelhos.
"Lourosa" a ponta de lança
E como não interessava nada falar da Guiné, fomos desviando a conversa e aproveitamos para perguntar se havia procissão, já que estávamos no Domingo de Ramos.
Ela foi peremptória:
- Já lá vão uns 3 ou 4 anos que não.
E sentenciosamente vincou:
- Como nos roubaram o padre Damião, em Lourosa acabou a religião!
Quando regressávamos, o mestre Rufino, ao passar pelo cruzamento da igreja, parou e disse:
- Lembras-te do Zé Manel Simplório?
Respondi:
- Então não havia de me lembrar daquela vez que estávamos ali a assistir quando ele…
- Não digas mais, interrompeu o mestre. - Há poucos dias, no cinema de Lamas ele estava atrás de mim na plateia e quando o bandido estava a dar uma tareia na gaja do artista, a dada altura o Zé Manel Simplório levantou-se e de punho virado para o ecrã, gritou:
- Se lhe tocas outra vez, eu fodo-te!
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12031: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): "Deixem-nos trabalhar"
5 comentários:
Foda-se Zé, ainda hoje ouvi na rádio, que um estudo diz que os gajos que dizem palavrões são honestos e sinceros, eu já sabia que era, ou por outra que éramos, porque tu estás como eu "honesto e sincero", mas ninguém quer saber, fdp do caralho.
Um abraço.
cumprim/jteix
Póis fói, Silva,
Fói depóis disso que bocê boltou para a guerra com a rebisão dos doze meses já feita e... abençoado!
Balha-nos DEUS!!!
Alberto Branquinho
Que gozo me deu esta leitura. Ganhei o dia,tão certo como escrevo este pequeno comentário. Aquele abraço e espero pelo regresso às lides.
Amigo José
Tinha 19 anos, andava a lavrar com uma junta de vacas, um campo perto da aldeia, o meu pai andava perto a semear o trigo, havia uma vaca que no final do suco obedecia mal à ordem de virar e eu furioso gritei alto e bom som uma palavra que o meu pai nunca me tinha ouvido. Caralho disse eu expontaneamente. O meu pai olhou para mim espantado, fiquei à espera da reação dele mas ele nada disse. Em casa dos meus pais sempre se reprimiu o uso de "asneiras". Mas eu considero que o seu uso é por vezes são tão libertador.
Gostei do teu amigo Lourosa e de ti amigo Fiães, foram terras que sempre acompanharam a vida real e imaginária da minha familia paterna.
Naturais do nordesta trnsmontano sempre tivemos uma ligação comercial e afetiva com essas duas terras que se reporta ao meu bisavô Tomás.
Ele como o meu avó, o meu pai, o meu irmão Tomás, soldado em Moçambique, que morreu de doença há 16 anos. Todos lavradores e pequenos produtores de cortiça, para completar as economias negociavam também esse produto que vendiam para a vossa região.
Para lá das relações comerciais houve sempre boas relações de convivência e amizade.
Quando o Tomás, meu irmão, morreu lembro-me que a fábrica do David, fechou e todos, patrões e trabalhadores foram ao funeral dele.
Todos partilhamos a experiência boa e má da Guiné e por esse motivo somos camaradas e amigos.
Em relação a ti José Silva e ao Lourosa eu tenho uma dívida de amizade que se perde no tempo desses antepassados que falei.
Eu sou das vossas terras,tal como vos considero a vós da minha.
Um grande abraço
Francisco Baptista
Caro Amigo José Ferreira!
Faço minhas as palavras do Mário Vasconcelos.
É sempre um grande prazer para mim ler os textos que escreves, como já tive oportunidade de tu dizer pessoalmente.
Mais uma vez os meus PARABÉNS.
Um forte Abraço.
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