quinta-feira, 24 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13035: Blogues da nossa blogosfera (66): Coisas da Vida - A Vida como ela é - A Bochecha de Boi (Jorge Teixeira - Portojo)

1. O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos este seu trabalho publicado no Blogue Coisas da Vida de que é autor e administrador:


COISAS DA VIDA

A VIDA COMO ELA É

A BOCHECHA DE BOI

Sábado passado, num almoço com ex-camaradas no Choupal dos Melros, em Fânzeres, Gondomar, o prato principal foi Bochecha de Boi assada.
Lembrei-me então de um episódio da minha vida de vaguemestre (ou vagomestre), por acaso e obrigado, durante o meu período militar na Guiné, mais concretamente em Catió e que durou cerca de 4 meses. Já lá vão 45 anos.

Para quem não sabe, este ofício determina, no Exército Português, o responsável pela alimentação de uma unidade militar. Em França é o Carteiro, que distribui a correspondência aos militares. Para o caso não interessa nada e prossigamos.

Não interessam agora as razões porque me foi imposto o lugar e serviço. Já estão por aí divulgadas.
Então aqui vai a razão das minhas recordações.

Estamos em Dezembro (68) e num sábado estava a jogar à bola quando apareceu esbaforido a chamar-me um dos rapazes do "Rancho" que tinha de ir já ao Refeitório. Não era a hora do Rancho, portanto não poderia haver nenhum levantamento. Para a refeição da noite era ainda cedo, estava tudo controlado. Perguntei ao moço - não me lembro quem foi - qual o motivo do alarme. - Está ali um preto com uma vaca para vender, disse ele. Pensei para mim, mau maria, não é bom sinal. É roubada, pois nunca tinha visto uma vaca na zona operacional de Catió. E eram famosos os roubos dos Balantas, Sem desprimor para as outras etnias.

Cá vai a informação (para os amigos ex-camaradas que não se lembrem ou não sabem e para os que desconhecem o que foi aquela vida, em Catió), a população era-nos hostil. (Alô pessoal da 1913 e da 2865, confirmam?). Mesmo para conseguirmos comprar uma frango era preciso uma boa relação com alguém.

Adiante.
Lá fui ver a vaca. Eu sei o que é uma vaca, sempre soube, claro, mas aquele bicho mais parecia uma carga de ossos a fingir de vaca. Já agora não sei se era vaca ou boi.
É certo que a memória é difícil de recuperar 45 anos, mas lembro-me que estava todo de pé atrás a olhar para o moço - que já não o era - que se dizia dono da vaca.

- Como a trouxeste, tem corda?
- Está aqui furriel.
- És o dono verdadeiro ou roubaste-a? - Logicamente que não ia dizer que a roubou.
- De onde vens e onde guardavas a vaca? - Não me lembro sequer da resposta. Mas o homem deveria ter os papeis de identificação e permanência (sei lá, mas imagino) em ordem. Mas deve ter vindo pela bolanha e não pela vila.

Para a rapaziada era uma festa ver a vaca no refeitório. Já lhe tinham ido buscar capim e água. A vaca (ou boi) estava serena/o a mastigar e eu ali a pensar o que deveria fazer. Compra furriel, era a voz d'ordem.

- Bom, quanto custa a vaca?
- 2.000 pesos.

Eu a olhar para o bicho e a pensar quantas refeições daria e a como sairia cada uma. E onde vou guardar o bicho se não tenho frigoríficos. Não quero a vaca, pensei, mas o cozinheiro-chefe pensou por mim e disse:
- Ofereça 1.500 pesos e vamos aos frigoríficos das messes e do rancho, compramos gelo fazemos frio e a vaca vai dar 3 refeições.

Acertado o preço com o vaqueiro, fui acordar o primeiro sargento para lhe pedir o dinheiro. O senhor Luz, mais conhecido com o pica-estradas. Só por causa do nariz, porque nunca deve ter posto o pé fora do portão em toda a comissão. O homem deitou-me uns olhos de raiva por ir acordá-lo da sua sesta e pior ainda, por lhe ir pedir dinheiro.
Lá comprei a vaca, foi logo morta para evitar problemas com o possível dono, mandei chamar o médico que por acaso estava em Catió para lhe ver as entranhas, estava tudo bem, menos o fígado que estava cheio de bichinhos mas isso não era grave para a saúde dos militares desde que não fosse confeccionado.

Para os interessados e antes de chegar ao ponto, devo dizer que a vaca, incluindo a cabeça, (cá está a bochecha) os miúdos aproveitáveis, os pés (chamados de mão de vaca, uma delícia gastronómica pelo menos aqui no Norte) mais a sua carcaça pesava menos de 90 Kg. O que saía o Kg a 17 pesos mais ou menos. Essas contas nunca me saíram da cabeça.
Carne fresca tem de ser repartida. Fiz as contas à totalidade dos militares na base, dava salvo erro 17 kg para os sargentos e 6 para os oficiais. Tudo na proporção. Mas não poderia ser só a carne, tinham de levar ossos também.

Aqui chegados começou a confusão. Iria vender a carne a 19 pesos. Quem quer quer, quem não quiser que deixe que os rapazes agradecem. Chamei os vagomestres da messe dos oficiais e dos sargentos para saber o que queriam. O dos sargentos era o Picota Dias, que deve estar lá para Águeda. Só pensava em dinheiro para o bolso dele, claro. Não quis carne nenhuma aquele preço. Perdia dinheiro. Ainda lhe disse, estás a dar uma messe de m.... aos gajos, só estás mamar, dá-lhes um consolo e eles ficam felizes. Eu quero que eles se fod.... Palavras directas do Dias.

O senhor Alferes da messe dos oficiais - sei quem era, não me lembro do nome e se não estou em erro trabalhava na Oliva ou na Eduardo Ferreirinha. Encontrei-me com ele anos mais tarde por motivos profissionais e creio que também num dos almoços da CCS/BART1913 - queria carne para dar uma refeição de bifes e uma segunda de qualquer coisa.
- Ó Alferes, espere aí, não vou mandar cortar carne para bifes para os senhores oficiais. Vai a eito e é o que der. E você resolva lá na sua cozinha.

Teixeira prá aqui e prá li, pois senhor alferes, se eu quiser comer um bife vou ao Taras Buba que é só sair a porta d'armas, trinco a carne que ele vai buscar não sei aonde, fecho os olhos e finjo que é bife. Pago 20 pesos e está feito.
Creio que o homem se chamava - e se for verdade espero que ainda se chame - Silva, saiu chateado e lá fui eu chamado ao comandante Cardoso. E o bicho vaca ou boi à espera de ser cortado, ali pendurado no refeitório, os abutres já sobrevoavam o quartel.

Disse-me o Comandante:
- Teixeira sabe do nosso problema alimentar, porque não distribui a carne ao Alferes?
- Meu comandante, não neguei a distribuição, o que neguei foram uns quilos de bife. Imagine, meu comandante, se a rapaziada sabe que mandei para a messe de oficiais carne para bifes? O que eles iriam fazer, um novo levantamento de rancho? E os sargentos?
- Pode retirar-se - disse-me o Comandante Cardoso.

Ao final do dia, levei um bife ao Comando. Não sei o que o homem lhe fez, mas a bandeja da apresentação da refeição regressou vazia.
A cabeça da vaca, mais concretamente as suas bochechas, com o resto dos miúdos deu uma refeição de feijoada. Dei mais duas refeições de carne, talvez tenham sido uma com esparguete e outro uma jardineira. Claro que entravam os chouriços juntamente, para encher. Não me lembro, mas não devo ter muitas dúvidas sobre isso.

Os sargentos ficaram furiosos com o Dias. Os oficiais não faço ideia como ficaram. Nem o meu, o Xarez, conversou nadinha comigo. Aliás já era normal.
Passados uns dias, apareceu um indivíduo com o cipaio, a reclamar uma vaca roubada que foi dada à tropa. Não me lembro como ficou a situação.

A bochecha de vaca - ou boi - que me fez recordar esta história.

Na ponta esquerda, eu no tempo em que era vago ou vaguemestre. Junto a mim, o "gajo" que me orientava o serviço. Era o cabo rancheiro. Espero que ainda esteja por cá. Ajudou-me muito pois eu não percebia nada daquilo. Mas só sei que não tinha de me preocupar. E tinha imensas horas livres e o jipe à disposição. Dois bons camaradas me ajudaram nesse tempo. Ambos condutores. Um creio que é o gerente dos Armazéns Peixoto - Gondomar e Valongo -. O outro trabalhou na Pacence. 
A foto foi num dia de futebol, provavelmente um norte-sul em que não alinhei.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11795: Blogues da nossa blogosfera (65): Poema de Saudade sobre a Guiné, no Blogue da Lusofonia (Mário S. Oliveira)

7 comentários:

Anónimo disse...

Caros Camaradas:
Esta é uma boa história que retrata as condições miseráveis da nossa alimentação, supridas algumas vezes pela imaginação de desenrascados como o Portojo.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

Caro Portojo

Acho que isto podia ser intitulado de "as aventuras atribuladas de um "melro" em África".

Desenrascanso?
Imaginação?
Capacidade de improviso?
Caso típico de "empurrar com a barriga", como por aqui se diz de situações destas?

Penso que te safaste bem. E que esta experiência te deu toda a embalagem necessária, nesse ramo, para hoje te transformares num especialista em roteiros gastronómicos.

Afinal, sempre se pode dizer, e confirmar, que são mesmo misteriosos os caminhos e desígnios do Senhor!

Abraço
Hélder S.

manuel maia disse...

Caro Portojo,

Ri-me bastante com a tua história da vaca ou boi escanzelada(o).
Fizeste-me recuar ao tempo em que fui vaguemestre (1 mês) aquando das férias do Caseiro.
Nesse período comprei duas vacas e qualquer uma delas mais barata. uma sei que custou 900 pesos e outra talvez mil,mil e picos...

A cada proposta de preço,o vendedor ( que também deveria ser amigo do alheio...)bebia um copo daquele vinho tipo pólvora e fumava um cigarro que o rebenta minas( adjunto do vaguemestre ) lhe dava e que me pedira para o deixar fazer o negócio( era a vida dele cá fora,comprar e vender gado) . De imediato abatia uns centos ele que pedira 1500 de origem...

Mas ri-me ainda mais quando falste na "consulta" que o médico fez à carne...
Por onde andei,médico cá tem...
abraço.

José Ferreira disse...

Caro Portojo
Quando estive em Catió não tive a oportunidade de beneficiar das tuas capacidades na área da gastronomia. Eras periquito e tive que rumar para Cabedu, dando seguimento à nossa missão de "Ciganos". Gostaria de ter comido da tua vaca anoréctica e dos teus bolinhos de bacalhau com capim, uma vez que lá me fartei de comer "arroz com arroz e arroz com ... umas rodelas de salsicha.
O que nos safa, agora, são os petiscos da Tabanca dos Melros.
Um grande abraço

Luís Graça disse...

Lá vou ter que repetir tudo o que estava aqui a escrever e que foi à vida, depois de cair na patetice de abrir a página do dicionário de português...

Esqueçamos por agora a origem da palavra, que vem do francês, e que tem a ver com o serviço do correio e não com os comes e bebes: “Le vaguemestre (étymologiquement maître des équipages) est le militaire chargé du service postal dans une unité militaire ou un navire de guerre.” (http://fr.wikipedia.org/wiki/Vaguemestre)

O nosso dicionário grafa a palavra como "vagomestre" (e com o mesmo sentido, militar, no exército francês, encarregue da correspondência)...

Eu começava o meu comentário por dizer que o pobre do vagomestre tinha má fama lá na tropa que nos calhou em sorte... E muitas vezes era injustiçado… Dar de comer aquela maltosa toda com a matéria-prima que havia, não era tarefa fácil…

Tu, no tei caso, sendo um rapaz sério, e camarada do teu camarada, mesmo com 4 (quatro!) meses de "vagomestria", não te calhou a sorte grande a ponto de poderes comprar um apartamento na Foz, no regresso da guerra... E com negócios de vacas roubadas e escanzeladas ainda pior...

Também me coube, por sorte ou azar, um 1 mês de vagomestre (ou melhor, “gerente”) na messe de sargentos de Bambadinca. Creio que um ano depois de ter chegado à "cova do lagarto" (Bambadinca em mandinga)...

Comprar vacas era mais fácil do que comprar porcos, porque os balantas, no setor L1, nos eram inicialmente hostis… e só eles (e alguns caboverdianos) criavam porcos... E os fulas eram grandes criadores de gado vacum... Mas à porta de casa era mais difícil...

Lembro-me de ter ido a Sonaco, entre Bafatá e o Senegal, comprar um vaca... Se calhar fomos vários vagomestres (ou gerentes de messes), para rentabilizar a viagem... Já não me recordo.

Mas sei que paguei 900 pesos por um vaca escanzelada, como eram todas as vacas da Guiné...

Recordo-me que um militar da tropa tinha, então, 24#50 por dia para se alimentar... E era nesse base que a gente tinha que dar o pequeno almoçlo, o almoçºo e o jantar ao pessoal...

Com 20/25 pesos ia-se a Bafatá, ao restaurante "A Transmontana", comer um bife com batatas fritas e ovo a cavalo, supremo luxo da civilização...Julgo com direito a um cervejola... Mas um gajo bebia lá só uma cervejola!... Maldita sede aquela!

Tudo isto para te dizer que a tua história é de antologia, é de cinco estrelas, e que eu adorei, mesmo não gostando lá muito de "bochecha" de boi ou vaca...

E a propósito, não me lembro de ver bois na Guiné! E essa agora!... Claro que os havia, deviam era andar muito bem guardados... (dos pobres balantas, que tinham fama de "ladrões").

Na época ainda não havia essas coisas da inseminação artificial... Os fulas deviam ser muitos ciosos dos seus bois.

Luís

Unknown disse...

Também dei duas messes de sargentos. E por causa da primeira, na CCS do Bart.1913 é que fui ter à vaguemestria do Rancho. Por imposição de serviço. Mas só "aceitei" com duas condições: Ter 3 elementos da CCS escolhidos pelo pessoal para me acompanharem nas compras, com direito a jipe. ( recordo que tudo aconteceu por causa de um levantamento de rancho) A outra foi que chegassem por via aérea todas as semanas víveres de Bissau. Ambas aceites e cumpridas pelo novo Comandante da Companhia, após a célebre "evacuação" do Tim-Tim - o anterior Cmdt - por doença mental.
Tinha na altura creio que 17,5 pesos diários por homem, já não lembro ao certo. Como se constatou, davam perfeitamente para se comer razoável e pagar a avioneta que custava 400 pesos.Mais uns extras para o pessoal dos grupos de combate e outros desenrascanços.
Quando entreguei o depósito de géneros, excediam 60 mil pesos o "balanço". Uma grande parte era de bacalhau, é verdade, coisa que era intragável, mas dava para desenrascar algumas vezes.
Foi uma vida dura. Levantava-me às 10 h (nem sempre, claro)tomava o café no escritório, aviava os "clientes" das milícias - o João Bakar era um chato, pois queria muito arroz e sal - e alguma população; ía espreitar o Rancho, levava a prova aos comandantes e a manhã passava-se assim.
De tarde, depois das 3 horas, regressava ao escritório, preparava a ementa do dia seguinte, recebia as fornecedoras de fruta, escrevinhava as despesas e receitas do dia e apresentava na companhia.
Às 18 horas lá ia apresentar a prova e pestiscava no rancho.
Estava feito o dia. Normalmente esperava pelos grupos de combate, batia um papo com eles enquanto tomavamos um café e comíamos pão acabado de sair do forno.Com manteiga - salvo seja - e que sabia bem àquela hora da madrugada. Outra imposição minha, que teve uma certa oposição da parte dos padeiros, mas nada como lhes passar umas coisitas para o petisco e ficou tudo em bem.
Creio que fazia um sargento de dia de vez em quando.
Desculpem lá qualquer coisita.

Luci Brito disse...

Era guerra e valia tudo,ate uma vaca magra...rsss.
Gostei do relato e confesso ri um bocadinho.
Abracos,e bom fim de semana.