Eu estava bastante triste, tinha acabado de chorar, possivelmente usei aquele lenço branco, de pano cru, igual às duas toalhas do mesmo pano que nos foram distribuídas e faziam parte do nosso “espólio”.
Com o desespero devia ter tossido, cuspido no chão, talvez pensando que com esse gesto limpava a garganta e aliviava a dor da despedida de Portugal, da família, dos “primos de Lisboa”, que “banhados em lágrimas”, estavam lá e subiram comigo a bordo do navio “Ana Mafalda”.
Ninguém reparava em mim, quase todos os presentes só tinham “olhos” para os seus familiares, era um jovem e ninguém falava em meu favor, não havia as televisões ou os jornais, procurando notícias sensacionais para abrirem os noticiários, éramos um “monte” de militares que devíamos ir unidos, mas naquele momento éramos um “monte” de pequenos grupos, abraçados, cabeça baixa, porque se a levantássemos podíamos ver algumas pessoas, cá em baixo no cais, com os tais lenços ou farrapos brancos, acenando, despedindo-se, destes militares que iam para África.
Naquela altura penso também que a minha mente devia de ter ficado bloqueada ao ouvir o apito do navio a dar o sinal para os familiares o abandonarem. Eu não sabia nada do que ia ser a minha experiência na então província da Guiné, só sabia que ia para lá. A sensação de aventura, que quase todos nós sentíamos quando íamos para a guerra em África, só isso e mais nada, nos dava alguma força para lutar, pois ninguém ama a guerra, todos nós a odiamos.
Hoje, cinquenta anos depois, sinto algum orgulho da coragem de um jovem que eu era, pois quando servimos a nação e, essa nação tem problemas, nós como cidadãos somos vistos como parte desse mesmo problema, e também sinto alguma fúria e tristeza, se por acaso pratiquei alguma acção menos digna, daquelas, que em cenário de guerra, aparecem com muita frequência.
Companheiros, em cima dizia eu, “subiram comigo a bordo do navio Ana Mafalda”. É uma coisa um pouco estranha, civis a bordo, a despedirem-se dos militares. Pois é verdade, isso aconteceu. O causador desse momento invulgar, que devia fazer parte da história da guerra colonial, foi um companheiro do meu Agrupamento 16, o único que consegui “descobrir”, nas minhas constantes buscas, “o meu alferes Bobone”, que hoje com muita simpatia trato por Alexandre, que na altura não gostava que lhe prestassem a respectiva saudação e, como militar mais graduado era o comandante militar do navio, transformado durante aqueles cinco ou seis dias em “base militar”, era mais um companheiro, viajou connosco. Muito cedo começou a ganhar a simpatia e respeito de todos os militares, pois era simples no trato, comunicativo e frontal. Desembarcámos em Bissau, esteve connosco, primeiro num acampamento junto ao porto de desembarque, agregados a uma companhia de infantaria, portanto militares de acção, tal como quase todos nós, foi picado pelos mosquitos, dormiu em barracas, calcou a lama do acampamento, bebeu aquela água turva e quente e, como quase todos nós sabemos, naquela parte de África, a humidade e o calor nos primeiros dias “matavam”!.
Já aquartelados em Mansoa, onde a princípio, os militares usavam um edifício que diziam que era uma antiga missão de padres de uma congregação francesa, passado uns tempos, já com o aquartelamento em construção, a sua esposa veio juntar-se a ele. Era uma “lufada de ar fresco” que veio para aquela vila, onde não havia nenhuma senhora europeia. Também ouviu os tiros e rebentamentos na altura dos ataques ao aquartelamento, esteve sujeita à ementa do “arroz e peixe da bolanha”, vinham refugiar-se nos abrigos que se iam construindo, etc.
Quando o alferes Bobone foi de férias a Portugal, visitou a família dos militares que estavam sob o seu comando, levou um filme, com imagens a preto e branco, com os familiares a falarem, a rirem-se ou chorarem, a casa onde nasceram, a vila ou aldeia, com a placa de sinalização da localidade de onde eram oriundos. Nas circunstâncias em que vivíamos, valia mais aquelas imagens, do que toda a “fortuna do mundo” e, talvez sem o imaginarem, com estes gestos simples, ajudaram e motivaram mais os militares do que todas as medalhas ou louvores que eram frequentes em cenário de guerra.
Com muita alegria, hoje, passados cinquenta anos, trocamos frequentes mensagens, e um dia destes ao abrir o computador veio esta, a lembrar aquele dia que nos vai acompanhar pelo resto da nossa vida.
Faz hoje (dia 23 de Maio de 2014) 50 anos que, no “Ana Mafalda”, partimos para a Guiné Portuguesa.
E o mais curioso é ter sido eu (um simples Alferes Miliciano de 21 anos), por - imagine-se - ser o mais graduado, ter ficado como responsável militar pelo navio, então “transformado” em base militar.
E o ainda mais curioso, porque julgo ter sido caso único em todos os embarques para o Ultramar, foi a permissão, graças à minha posição de responsável militar e ao meu sogro (Oficial da Marinha), para que todos os membros familiares dos militares que iam partir em missão de soberania, terem podido entrar no navio e despedirem-se, in loco, de cada um de nós.
E esta, hem!!!
E agora digam lá, não é no mínimo saudável, ouvir estas palavras, hoje, passados cinquenta anos!
Maio de 2014.
Tony Borie
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Nota do editor
Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13219: Bom ou mau tempo na bolanha (58): Las Vegas, Las Vegas (2) (Tony Borié)