domingo, 28 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14087: Os nossos seres, saberes e lazeres (75): O Porto (e)terno (Luis Graça)



Foto nº 1  > Vista da Praça da Sé


Foto nº 2 >  Vista da Praça da Sé


Foto nº 3 > Pelourinho e Sé


Foto nº 4 > Praça da Ribeira > Escultura de São João Baptista, de João Cutileiro


 Foto nº 5 > Praça da Riobeira (foto antiga, de um dos livros de Germano Silva)


Foto nº 6 > Praça da Ribeira


Foto nº 7 > Muro dos Bacalhoeiros > Casa onde nasceu Gomes de Sá


Foto nº 8 > Muro dos Bacalheiros, na Ribeira


Foto nº 9 > Ribeira


Foto nº 10 > Vista da Ribeira


Foto nº 11 > Vista da Ribeira


Foto nº 12 > Vista da igreja de São Francisco


Foto nº 13 > In´´icio da Rua das Flores


Foto nº 14 > Perto da Rua das Flores


Foto nº 15 > Rua das Flores


Foto nº 16 > Rua das Flores



Foto nº 17 > Rua de Santo Ildefonso > Casa dos Pregos (ou Venham Mais Cinco)


Porto > 26 de dezembro de 2014 >  Imagens de um magnífico passeio pela Invicta e o seu património mundial da humanidade...  Começou, depois do almoço no Largo da Sé e acabou às 8 e tal da noite nos Poveiros, em duas tascas famosas a Casa Guedes  (Praça dos Poveiros, 130) e a Casa dos Pregos (Venham Mais Cinco, na Rua de Ildefonso, 219)  onde se vai para comer a "sandes de pernil de porco" e "o prego de lombo de boi com queixo da serra", respetivamente...

Um dos meus/nossos guias do passeio foram os livros do Germano Silva. o grande cronista e historiógrafo do Porto (nascido em Penafiel em 1931), além do meu cunhado Augusto Pinto Soares.

Vou pedir aos nossos camaradas tripeiros, e em especial ao Jorge Teixeira (Portojo) para completar as legenda das fotos... (Uma seleção das mais de 600 que fiz nesta tarde soalheira de 26 de dezembro)...

Não é um provocação, camaradas, é um ato de humildade e de admiração da parte de um "mouro" de Lisboa para quem o Porto é uma cidade com alma e carater e que ele tem vindo a descobrir e amar, como turista acidental, desde 1975...

Texto e fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados




Porto > Arquivo Histórico / Casa do Infante > Rua da Alfândega, 10 > 26 de dezembro de 2014 > Uma das surpresas da tarde foi uma visita (demorada) à casa onde, segundo a tradição, nasceu o Infante Dom Henrique... Aprendi imenso sobre a história do Porto... E aconselho vivamente a visita. A imagem acima faz parte da exposição permanente sobre a zona ribeirinha. É uma foto aérea de 1939... (LG)
_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 25 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13649: Os nossos seres, saberes e lazeres (74): Viagem à China (Fernando Gouveia)

sábado, 27 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14086: O que é que a malta lia, nas horas vagas (29): O que é que eu lia durante a guerra? Para além de livros, lia os jornais O Eco de Pombal e A Região de Leiria e a revista Seara Nova que, mensalmente, me era enviada pela namorada. Mas não só (Manuel Joaquim)

1. Mensagem do dia 24 de Junho de 2013, do nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67):

Meus queridos camaradas e amigos:
"Quem é vivo sempre aparece", não é?
Justifico-me:
Forcei-me a uma espécie de licença sabática na minha colaboração neste blogue. Aconteceu-me o que não previa quando decidi mergulhar na leitura das cartas que suportaram a minha série "Cartas de amor e guerra". Stressei-me!
Esse mergulho começou a incomodar-me psiquicamente. Era a primeira vez que relia essas cartas, mais de 40 anos após terem sido escritas. E o incómodo sentido não era provocado pelas lembranças de guerra mas pela tomada de consciência de que muito pouco se cumpriu do que, naquela altura, eu imaginava poder vir a acontecer na vida futura deste país.
Começava a sentir-me derrotado, a ter pena do jovem que fui nos tempos de Guiné, um jovem esperançoso e lutador por um futuro mais próspero, mais culto e mais feliz para o povo português. Via a minha vida como se a maioria dos meus sacrifícios pessoais tivessem sido em vão. Era como que uma sessão de masoquismo psíquico. De cada vez que me debruçava na leitura das cartas de guerra para delas retirar o que entendesse como interessante para publicação, começava a sofrer. Mas não foi o publicado que me "stressou".
Precisei de me afastar durante uns tempos, cortando mesmo com alguns trabalhitos já iniciados para publicação no blogue. Olhem, o convívio com os camaradas da Guiné ajudou e continua a ajudar a me sentir melhor.
Retomei agora esse trabalho e o que me apareceu mais fácil e rápido de completar foi o subordinado à série sobre "o que a malta lia, nas horas vagas". Aqui vai ele. Outros se seguirão, que a vontade me não falte.
Acho que a série teria muito interesse sociológico se mais pessoas colaborassem dizendo o que liam ou se não liam (alguns de nós eram analfabetos!), mesmo que só lessem o boletim do padre da sua paróquia. Por falar nisto e pelo que vi então, não ficaria surpreendido se os boletins paroquiais tivessem sido os campeões como sujeitos de leitura
Penso que não viria a ser insignificante o que resultasse de um maior conhecimento sobre este tema. Temos de deixar sinais para os investigadores futuros. Lembro o que agora, 100 anos depois, se tem andado a publicar sobre a 1.ª Guerra Mundial.
Em anexos, vão o texto e as suas fotos.

Um abraço amigo para cada um de vós.
Manuel Joaquim


O que é que a malta lia, nas horas vagas

O que é que eu lia durante a guerra? Para além de livros, lia os jornais O Eco de Pombal e A Região de Leiria e a revista Seara Nova que, mensalmente, me era enviada pela namorada. Mas não só.

“Tudo o que vinha à rede era peixe”, fossem revistas e jornais avulsos, fossem boletins da minha paróquia natal ou de qualquer outra totalmente desconhecida, tudo estava sujeito a leitura. Até noveletas delicodoces, a que não chamo livros, feitas para "fazer chorar as pedrinhas da calçada" e/ou "partir corações apaixonados". À época, era frequente vê-las nas mãos de adolescentes (e não só), naquelas idades em que o romantismo e o sonho facilmente enfunam as asas do desejo. "Mastigava" um ou outro desses livrinhos que porventura encontrasse nas mãos de alguns camaradas. Divertia-me com o enredo, mesmo sentindo o ressoar de gargalhadas nos meus ouvidos, vindas de alguém que eu tinha "gozado" anteriormente por vê-lo consumir tal "literatura".

Apesar do meu grande gosto pela leitura, nunca esta teve prioridade na ocupação dos meus tempos livres na Guiné. As "primeiras" prioridades, seguidas por vezes a contragosto, foram a actividade escolar e a escrita. Dei aulas de instrução primária a soldados e crianças e também tive muita actividade epistolar pois, para além da regular correspondência postal com os meus entes queridos e amigos mais chegados, tinha um grupo alargado de pessoas com as quais me correspondia pontualmente. As "segundas" prioridades estavam nas petiscadas, nas “copofonias”, nos jogos de cartas, na música, nas passeatas pela tabanca e seus arredores. A leitura viria depois, sempre se arranjava algum tempo para o efeito.

Revista Seara Nova, número de Novembro/1965. 
Revista política mensal, de caráter oposicionista ao regime do Estado Novo. 

Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer. 
O autor, intelectual comunista francês, foi fuzilado pelos nazis. 
 O livro ainda hoje tem grande circulação na área ideológica marxista-leninista. 

Na viagem para a Guiné foram comigo alguns livros. Lembro Os Bichos e Diário VIII de Miguel Torga, Diário de Édipo de Alberto Ferreira, A Cidade das Flores de Augusto Abelaira, Guillaume Apollinaire de George Vendrès, Poèmes de Paul Éluard, Dialogues com Maurice Duverger, La Guerre Revolucionaire de Mao Zedong, Mao Tsé Tung como então se dizia. E, como jovem muito interessado nas doutrinas marxistas, levei comigo o meu primeiro “livro de estudo” desta área, Principes élémentaires de philosophie de Georges Politzer.

Esta última obra é uma espécie de primeiro "catecismo" do marxismo-leninismo onde, numa linguagem acessível, se expõem os seus princípios básicos, filosóficos e doutrinários. E lá andei eu a tentar aplicar-me na aprendizagem do seu conteúdo, às "cabeçadas" com o materialismo dialéctico. Mas a doutrina não me cativou por muito tempo. Naquele ambiente, ela não conseguia dar-me a luz que me pudesse orientar nem a “enxada” para trabalhar a minha terra "ideológica“.

A Cidade das Flores de Augusto Abelaira. 
O seu enredo gira à volta de um grupo de jovens de Florença, em luta pelos seus ideais perante a repressão imposta pelo fascismo de Benito Mussolini. A razão da acção se passar em Itália pode ter sido um subterfúgio para escapar à comissão de censura do regime salazarista pois, da leitura do livro, percebe-se bem a denúncia das estruturas sociais e políticas do Portugal de então. 

Comprei A Cidade das Flores em Lisboa, no final de agosto/64, num intervalo da viagem de comboio para Pombal após terminar o CSM em Mafra. Não era meu hábito escrever nos livros mas aconteceu naquela altura. E, de sopetão, escrevi na 1ª página (ainda me lembro desse momento):

Na satisfação duma etapa cumprida, sacrificada, do final do meu curso de sargentos milicianos de infantaria, volto-me para a cidade das flores, imagem feliz dum meio social. Antes de ler o livro viro-me para o título e só ele já me satisfaz, tal é a frescura e liberdade que ele me faz respirar. 
A horrível vida militar não me embota, com certeza. Quero paz e não guerra. Quero a felicidade do meu povo e não a sua destruição moral e material. Não posso tolerar as doutrinas que me apregoam. Não posso ser militar.

"Não posso ser militar" mas fui-o, muito contrariado com certeza. E cerca de um ano depois estava a desembarcar na Guiné.

Chegado a Bissau, logo na minha primeira visita ao café Bento, observei um pequeno escaparate com umas dezenas de livros e fiquei com vontade de ler alguns deles. A disponibilidade monetária era pouca mas, durante os quase três meses de estada em Bissau, comprei estes (na altura anotei a data da sua compra):
Mar Morto de Jorge Amado; A Barca dos Sete Lemes de Alves Redol; Rum de Blaise Cendrars; A Noite Roxa, As Máscaras Finais, Terra Ocupada, Exílio Perturbado, os quatro de Urbano Tavares Rodrigues; Gorky por ele próprio de Nina Gourfinkel; Greco de Simon Vesiduk; Goya de Eric Porter; Pieter Bruegel de Felix Timmermans.

Foto 3.

"Terra Ocupada" de Urbano Tavares Rodrigues e cinco dos 21 "blocos" de um famosíssimo poema de Paul Éluard, "Liberté". 

No início do livro Terra Ocupada, pag. 7, o autor cita cinco dos 21 "blocos" de "Liberté", um famoso poema de Paul Éluard. Traduzindo à minha maneira:

No patamar da minha porta / nos objectos familiares / sobre as chamas do fogo bento / eu escrevi teu nome

Em toda a carne concedida / na fronte dos meus amigos / em cada mão estendida / eu escrevi teu nome
............

Nos meus refúgios destruídos / nos meus guias desconjuntados / nas paredes do meu tédio / eu escrevi teu nome

Sobre a ausência sem desejos / sobre a nua solidão / sobre os degraus da morte / eu escrevi teu nome.
............

E pelo poder duma palavra / recomeço minha vida / eu nasci para te conhecer / para te chamar Liberdade 

Entretanto, de Lisboa, a minha querida namorada começou a enviar-me um livro de vez em quando. Como neles não há referências a datas, não me lembro de todos mas estes ficaram-me na memória de os ter recebido:

"A Memória das Palavras" de José Gomes Ferreira; "Capitães da Areia" e "D. Flor e Seus Dois Maridos", de Jorge Amado; "O Passo da Serpente" de Batista Bastos; "As Boas Intenções" de Augusto Abelaira; "Malthus e os Dois Marx" de Alfred Sauvy; "Paroles" e "Histoires" de Jacques Prévert.

De referir ainda que, no meu tempo de Bissau, me veio parar às mãos um dos livros que mais me ficou na lembrança, "Trópico de Capricórnio" de Henry Miller. Li-o com muito prazer e entusiasmo. Algumas das suas páginas mais socialmente panfletárias, especialmente as de cariz erótico, chegaram a ser lidas em voz alta, o que proporcionava divertidas gargalhadas no dormitório de Sta. Luzia a que se seguia normalmente alguma discussão sobre o tema lido. Uma expressão francesa marcou um desses momentos, para mim inesquecível. O casual leitor do momento e que lia o livro em silêncio, solta em voz grossa, bem alta e firme: pourri avant d'être mûri !!! ( apodrecido antes de estar maduro).

Ainda me lembro da figura do dono daquela voz potente mas não do seu nome. Tinha chegado há alguns dias, vindo lá do sul e já bem batido no mato. Ninguém terá percebido o porquê e o sentido da frase. Nem um ou outro com conhecimentos de francês lá chegou. Apodrecido antes de estar maduro ?! Mas o "velho" furriel miliciano de Cabedu, com certeza compreendendo isso, falou mais ou menos assim:
- Rapazes, um conselho: vocês estão verdes, vê-se e vocês sabem-no. Basta ouvir-vos a falar sobre umas coisitas de merda e que tanto medo causa a alguns. Cuidado, ninguém se pode permitir estar verde e apodrecer, percebem? E muito cuidado também para não apodrecerem quando estiverem maduros! 

Não imagino quantos o "ouviram". Talvez poucos tivessem percebido a charada, que havia uma personagem-mistério no seu sintético aviso. Eu sei que havia, era a "senhora morte".

O livro foi-me emprestado por um camarada amigo, de serviço no QG, mas não estava à espera do que me aconteceu e que não me permitiu devolver-lho. Tendo saído de barco para Farim, em escolta, regressei a Bissau uns bons dias depois, já noite. Quando cheguei ao quartel recebi uma "bela" notícia, nem mais nem menos do que a saída para Bissorã logo na manhã seguinte. E, para cúmulo, durante esta viagem foi-me roubado um pequeno saco onde ia o livro junto a todos os meus documentos e outras coisas mais pessoais, de caráter afectivo. E também "voaram" as poucas notas que tinha poupado até então. Cheguei a Bissorã teso que nem um carapau!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12927: O que é que a malta lia, nas horas vagas (28): Fotonovelas não temos, mas arranja-se Sigmund Freud (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P14085: Parabéns a você (837): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745 (Guiné, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14079: Parabéns a você (836): Ismael Augusto, ex-Alf Mil Manut do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14084: Memórias de Gabú (José Saúde) (49): Unimog, uma máquina imparável


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua fabulosa série.


As minhas memórias de Gabu

Viaturas “bélicas” que percorriam os trilhos na Guiné

Unimog, uma máquina imparável

Com uma certa renitência, porque nunca fui mecânico nem destro em opinar em causas que me julgo completamente alheio, ousa a teimosia de um antigo combatente conduzir-me a uma temática operacional que me leva a trazer à estampa uma viatura militar que muito bem conhecemos no território da Guiné: o Unimog.

Reza a história que o Unimog terá surgido na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Veículo assumido decididamente como polivalente, o protótipo foi fabricado, inicialmente, pela Boehringer, sendo que os Aliados no pós guerra cederam à Mercedes Benz a sua produção.

O modelo, equipado com motor diesel, arrancou em 1947 e afirmou-se em 1951 como exemplar bélico para as hostes militarizadas. Constata-se que o Unimog foi distribuído, nos seus princípios, somente para as forças alemãs, sendo que as suas vendas galgaram, à posteriori, fronteiras e outros países vieram a adquirir essa preciosidade.

Dada a sua versatilidade e capacidade de circulação em todos os tipos de terreno, Portugal, a contas com a Guerra Colonial – Angola, Moçambique e Guiné –, elegeu o Unimog como uma viatura crucial para circular pelos trilhos apertados das antigas províncias ultramarinas.

Na minha conceção, o Unimog foi, de facto, uma viatura imprescindível para o exército da Pátria de Camões. Era um veículo volúvel, é certo, e debitava uma cilindrada que ultrapassava facilmente os obstáculos, originando, por isso, um catálogo de aventuras consideradas permanentemente imprevisíveis. 

Da minha comissão militar na Guiné, conservo, ainda hoje, imagens que projetam emoções aquando “viajava” a bordo de um dos Unimog distribuídos à minha companhia. Neste contexto, segue-se um pequeno texto retirado da minha obra GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU:

“Recordo uma tarde a caminho de Piche a viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e as G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas. Um “acidente” que, no fundo, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso.”

Lembro, também, uma outra situação em que o Unimog se despistou numa picada e entrou pelo mato fora, resultando, logicamente, um valente susto e mais umas arranhadelas aos camaradas que seguiam na viatura. Regressávamos de mais um patrulhamento às tabancas de Gabu numa missão destinada à chamada psicó. Um outro susto que ficou inventariado com a nossa estadia naquele recanto guineense que deixou, literalmente, “picos” de alguma apreensão. 

Permitam-se, numa outra perspetiva, evocar a inexperiência de jovens condutores num terreno que lhes era francamente agreste. A sua coragem e dedicação à causa que lhes fora outorgada, sempre se assumiu como uma valentia desmedida. Para esses camaradas, combatentes sem nome, vão os meus aplausos e o meu fraterno abraço.

Conheci a realidade de rapazes em que a aprendizagem à condução se terá verificado na hora da sua convocação para as fileiras do exército. Outros, creio, eram mecânicos na vida real e que foram aproveitados para o cumprimento dessa missão.

Dúvidas não existem, falo por mim, quando se reparava, nalguns casos, na sua aparente dificuldade na exímia arte de conduzir. Em princípio era ambígua, sendo que com o evoluir do tempo as suas capacidades desempenhavam com avidez num cenário de guerra que lhes fora inequivocamente madrasto.

Reconhecesse-se que a sua missão não foi fácil, principalmente para jovens condutores destinados a cenários conflituosos e de extremos riscos. Muitos morreram agarrados ao volante do Unimog que conduziam quando uma desditosa mina anticarro deflagrou numa picada que lhes era já familiar.

O Unimog, tido como “burro de carga”, era hábil nas suas diversificadas ações. Maneirinho, e de condução fácil, o banco traseiro levava, regularmente, uma secção de homens armados, quando a viagem era feita para além do arame farpado. Em chão firme, isto é, no interior da tabanca essa metodologia era alterada, dado que a sua utilização se destinava a adquirir eventuais falhas verificadas no aquartelamento. 

A talho de foice, recordo que em cada banco onde iam os operacionais, costas com costas, acomodava uma secção de combatentes. Dois homens faziam a proteção da ala direita, outros dois da ala esquerda e um quinto visionava a retaguarda. À frente, ao lado do condutor, ia o graduado preocupado com possíveis “investidas” do IN vindas da linha da frente. Os ângulos de visão eram, assim, totalmente abrangentes.

E a certeza diz-me que foram muitas as ocasiões em que assumi a versão de copiloto num Unimog que jamais se vergou perante as adversidades impostas por um terreno impróprio para uma viagem que se pretendia suave.

Nos arquivos do exército português sobre a guerra colonial, se porventura ainda existirem, há relatos fatais de perdas humanas ocorridas a bordo de Unimog nos conflitos de além-mar. 

Vivências de máquinas imparáveis do tempo de guerra em África!... 


Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14083: Tabanca Grande (454): António Santos Dias, ex-Fur Mil da CTransp 9040/72 (Guiné, 1974)

1. Mensagem do nosso camarada António Santos Dias, ex-Fur Mil da CTransp 9040/72 (Bissau, 1974), com data de 11 de Dezembro de 2014, correspondendo ao nosso desafia de se juntar à tertúlia no Poste 13998(*):

Boa noite, Camarada e amigo Vinhal,
Confirmo a minha adesão à tertúlia da nossa Tabanca Grande e respondo de seguida às questões que me colocaste:

P - Regressaste à Metrópole em Setembro ou em Outubro de 1974?
R - Regressei em Setembro.

P - No tempo em que lá estiveste fizeram muitas colunas para o interior?
R - Muitas, e uma das últimas foi trazer para Bissau a CART 6251 de Mansabá.
Já agora para tua curiosidade, envio-te em anexo o modelo da guia de marcha da coluna.

P - Transportaram para Bissau pessoal e equipamento das quadrículas que entretanto iam sendo abandonadas?
R - Transportávamos principalmente pessoal e parte do equipamento que não ficava para o PAIGC.

P - Qual o ambiente de ambos os lados?
R - Quase sempre em ambiente de "camaradagem", pelo menos nas colunas auto em que eu era o responsável.

Enquanto estava a pensar nas respostas, lembrei-me que pertenceram também à 9040 o Furriel Meireles que já estava de saída e o Furriel Miranda de Sousa, ambos da zona do Porto.
O Miranda de Sousa vivia em Vila Nova de Gaia, foi árbitro de futebol a nível nacional e penso que já faleceu e foi dos dois o que mais tempo ficou na 9040.

Abraço e Boas Festas,
António Dias




2. Recordando o que escreveu o António Dias Santos em 1 de Dezembro quando se nos dirigiu:

Camarada,
Aterrei em Bissalanca na madrugada de 16 de março de 1974, com destino à Comp.Transp 9040.
Andei a levar um baile de 1 alferes que era cabo e de 1 soldado que era furriel, brincadeira que me custou a aceitar, mas depois passou.
Foi o batismo por camaradas que seriam a minha companhia até ao fim da comissão.

Um abraço
António Santos Dias
Mealhada


3. Comentário do editor

Camarada António Santos Dias, sê então bem-vindo à tertúlia já que anuiste à nossa sugestão de te juntares a nós. És o Grã-Tabanqueiro 676.

Os documentos que nos enviaste são já parte da história da guerra da Guiné. Se tiveres mais documentos ou fotos da época, por favor, vai mandando para publicarmos. Poderás também escrever o que recordas das, julgo que muitas, colunas auto por estradas e picadas. Com certeza que tiveste a oportunidade de fazer colunas por toda a Guiné, com maiores ou menores dificuldades consoante o estado das picadas e o clima, nomeadamente no tempo das chuvas.

Respondeste sucintamente às perguntas que te formulei, mas poderás futuramente desenvolver os vários temas: colunas, o que transportavam e o ambiente que se vivia.

Recebe um abraço de boas vindas da tertúlia e dos editores.
Carlos Vinhal
____________

Nota do editor

(*) Vd poste de 9 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13998: O nosso livro de visitas (180): António Santos Dias, ex-Fur Mil da CTransp 9040/72 (Guiné, 1974)

Último poste da série de 13 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14022: Tabanca Grande (453): Luciano José Marcelino Jesus, ex-Furriel Mil. Art., CART 3494 (Xime-Enxalé-Mansambo, 1971/1974)

Guiné 63/74 - P14082: Notas de leitura (660): “Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
A trama desta obra literária centra-se no stresse pós-traumático. É uma escrita muito cortante, muito económica, situa dois camaradas da guerra e dois palcos onde terão havido excessos que irão pesar na mente de um deles, até o destruir.
Nelson Leal desenha o percurso da doença, numa atmosfera que vai da guerra, passa pelo regime democrático e finda numa celebração em dia de Natal, os protagonistas ajustam contas com a ideologia em que acreditaram e que agora abominam. Nessa vozearia, João Manilha revive todo as imagens fantasmáticas que o perseguem, que continuam vivas na sua cabeça.
Pode não ser uma obra exemplar, mas confronta-nos sem tibiezas sobre a dor que ainda persegue muitos dos nossos camaradas.

Um abraço do
Mário

Um romance sobre o stresse pós-traumático: Crepúsculo de sangue, de Nelson Leal

Beja Santos

“Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013, é um romance de um oficial da Armada, muito ligado ao jornalismo que resolveu centrar-se no stresse pós-traumático. O primeiro episódio impressivo passa-se com a coluna que avança para Nambuangongo. Os rebeldes ainda resistem, cada vez mais timidamente. E logo uma descrição truculenta, o cabo Meireles manda cortar a cabeça a um rebelde morto: “O Frinchas, de olhos marejados, retirou, a custo, a catana da mão do negro e, num guinchar de raiva, lançou-a sobre o pescoço do cadáver… A cabeça do negro, indiferente à dor do colono, sorria de troça. E foi com ar de troça que se manteve, espetada num pau, junto à picada. Um troféu que a nossa exibia aos bacongos, que acreditavam que o guerrilheiro morto ressuscitaria, desde que mantivesse a cabeça”. Estamos no Norte de Angola, na Terra dos Dembos, o BCAÇ 96, do tenente-coronel Maçanita, tivera a sua primeira baixa. A operação Viriato está no auge. O nome do alferes Toscano aparece pela primeira vez. Maçanita quer a tudo o custo ser o primeiro a entrar em Nambuangongo. As tropas movimentam-se. O furriel João Manilha a tudo assiste, em silêncio. Como numa recapitulação histórica, assiste-se ao desenvolvimento da operação: “Avançaram baterias de artilharia, armadas de obuses 8,8 e 10,5. Avançou o tenente-coronel Armando Maçanita, de pistola em punho, no seu jipe trepidante, a ignorar os sobressaltos do terreno, de peito alçado. A coluna avança, alguns militares matam indiscriminadamente, incendeia-se Quicangassala… Algumas cabeças decepadas ergueram-se em estacas, a celebrar a vitória”. João Manilha está em estado de choque. E assim entra em Nambuangongo, enquanto o corpo de paraquedistas foi lançado em Quipedro, base de guerrilha, próxima de Nambuangongo.

Toscano e Manilha fizeram amizade, estamos nos fins dos anos 60, em Coimbra, Toscano enamora-se de Carminda e João Manilha de Giesta Maria. A guerra para eles continua. Toscano é oficial dos comandos, Manilha também faz parte das forças especiais. Dá sinais de depressão, Giesta afasta-se, Manilha insiste, é demasiado tarde, Giesta deu coração a outro.

E passamos para o massacre de Wiriyamu, dezembro de 1972, 6.ª Companhia de Comandos, operação Marosca, procura-se à viva força capturar o guerrilheiro Raimundo que anda a incomodar a região de Tete. As hélices dos helis troam pela savana, frenéticos, os Comandos tomam posição: “Um sujo véu castanho ia cobrindo os soldados da 6.ª Companhia, que formigavam entre as naves, a despejar armas, cantis, mochilas, rações, lonas. E as ténues silhuetas dos Comandos, de G3 em riste, agachados, em passo de corrida, foram, pouco a pouco, desaparecendo, tragadas na poeira. Wiriyamu esperava-os”.

Entretanto Mário Toscano trabalha para Jorge Jardim, está no seu exército particular, o SEI. Fala-se dos ataques da FRELIMO à via-férrea de Tete e das sortidas na estrada de Zobué, cresce a inquietação à volta da cidade da Beira. Jorge Jardim confia no êxito da Marosca. Começa o ataque a Wiriyamu, os habitantes são metidos nas suas palhotas e queimados, algumas mulheres violadas e depois abatidas. E o autor explica como irá ter lugar a denúncia do massacre de Wiriyamu, os rolos fotográficos e o relato das barbaridades chegou às mãos do padre Hastings, que os recambiou para Londres, serão publicados no jornal The Times, em julho de 1973. Mais uma dor de cabeça na política diplomática de Marcello Caetano.

João Manilha adoece em Tete, a depressão aprofunda-se, Mário Toscano visita-o. Dorme mal, tem pesadelos tenebrosos, as imagens dos massacres regressam em força.

E passamos para um de maio de 1974. Toscano tornou-se revolucionário, vive com Carminda junto a Cacilhas, convidou Manilha para jantar. Manilha descobre que Giesta Maria perdeu o marido na guerra da Guiné. Irá a Coimbra bater-lhe à porta, os seus afetos recuperam-se. Na aldeia os pais de João Manilha empurram-no para Luísa do Monte, após peripécias que envolvem as duas famílias, chega-se ao acordo para o contrato nupcial. Só que João Manilha não selará o contrato, irá casar com Giesta Maria.

Toscano vive a febre revolucionária, é membro do PCP, é convidado a dar informação do que se passa no Regimento dos Comandos, recusa-se, começa a rutura.

Os anos passam, João Manilha está a ler o Diário de Notícias na praia, na companhia da enteada e do filho, lê e relê uma reportagem sobre a guerra de Angola, a guerra civil está ao rubro. O stresse pós-traumático eclode: “Já não é a praia que ele vê, é a selva imensa de África, é a guerra, é o João que tropeça, que cambaleia, que cai e que se levanta, regressam as hélices dos helis, ele sente as metralhadoras a matraquear, tem um desmaio".

Irá ser tratado no Hospital Militar Principal, vai a uma consulta de psiquiatria, e daqui partirá para uma Junta Médica, é considerado incapaz para todo o serviço. “Reformou-se numa quarta-feira de março de 1988. Vestiu-se de luto, porque percebeu que morrera, ainda novo. Perdeu amigos, perdeu companheiros, perdeu escalas, perdeu serviços, perdeu bares, perdeu noitadas, perdeu borgas, perdeu sonhos. Reformou-se com 45 anos e com 27 anos de serviço. Com uma miséria no bolso e com dois filhos ainda por criar”. E rumam para Águeda, Giesta arranjou colocação numa Escola Preparatória, João Manilha procura integrar-se. Caminhamos para a atualidade. Diogo Toscano enamora-se de Joana Palla, em agosto de 2000 teremos casamento de muita e uma cerca circunstância, Diogo quer singrar na vida, é simplesmente filho de um capitão, e Joana é filha de um responsável socialista, com muitas conexões, o autor dá-nos uma imagem de Diogo servil e estúpido, mas capaz de tudo para ter um lugar ao sol. João Manilha está em casa e a empregadita são-tomense ciranda por ali, crepita a chuva, um vento enfurecido não dá tréguas, ressoou um trovão, João atira-se à jovem. Mas ele já deixara de ser velho. Ele voltara a ser o Furriel João Manilha e ela era aquela negra de África. Puxou-lhe as roupas num frenesim, como se fosse um ritual, atirou-a para o sofá, como se fosse um fardo e olhou, com os olhos perdidos, aquele corpo por cumprir, aquele ventre de ébano e aquele púbis encaracolado. É desta que João Manilha tem um AVC.

Na boa tradição da literatura e do cinema, haverá um almoço onde toda esta gente se irá reencontrar. Mário Toscano está no campo ideológico oposto ao que tivera a seguir ao 25 de abril, tem o filho bem instalado, há por ali comentários insultos de vária ordem, há mesmo uma atmosfera de derrisão em que o Manifesto Anti Dantas, de Almada Negreiros transforma-se numa catilinária à geração dos coelhos. Manilha está presente mas ausente, tem reminiscência duma cacofonia de canhangulos e carabinas, em desconcerto, a acordar o matorral. As balas, desencontradas, a silvarem traços de morte à sua volta, ceifando o chão e cravejando o arvoredo. À mesa, todos discutem, entusiasmado. A enteada de João Manilha vê duas gotas a escorrerem nas faces de João Manilha. Este está sozinho na guerra, vai matando, vai incendiando, está em Nambuangongo e salta para Wiriyamu, a menina grita: “Acudam, que o pai está mal! Depressa! Ai, que ele ainda morre!”.

“Crepúsculo de Sangue” pode não ser uma jóia literária mas reconduz-nos ao inferno da doença não tratada, vai ao coração do trauma da guerra e alerta-nos para um sofrimento que ainda devasta muitos antigos combatentes.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14064: Notas de leitura (659): “Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14081: (Ex)citações (257): A misteriosa cruz branca de Samba Silate... (António J. Pereira da Costa / A. M. Sucena Rodrigues / Luís Graça)



Guiné > Zona leste < Setor L1 (Bambadinca)  Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Samba Silate > Pós 25 de abril de 1974 > Ruinas da casa onde nasceu o guerrilheiro referido por A. M. Sucena Rodrigues no poste P14055 (*).  Ao fundo, à direita, devidamente sinalizada a vermelho, pode ver-se a cruz que, segundo o guerrilheiro, foi erigida antes da guerra [, nos anos 50,], por um tal missionário que lá viveu e que ele chamava padre António [Grillo, acrescentei eu, LG].

Foto: © A. M. Sucena Rodrigues  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Comentário de António José Pereira da Costa, cor art ref,  ao poste P14065 (**):


Olá, Camarada

Nunca tinha visto a tal cruz que mostraste numa das tuas fotos. Era fora do arame? A que se destinava?

Manda-me uma cópia, por favor.

Nunca me falaram do padre Grillo.

Recebi, sim, um pedido de uma família italiana - os Riciulli - que pretendia tomar posse das instalações que a companhia ocupava em Samba Silate (abusivamente de acordo com o seu ponto de vista). Ficou tudo para decisão dos "Nossos Maiores" e, conforme as instruções, eu entregaria as instalações (...).


A.M. Sucena Rodrigues, fur mil,
CCAÇ 12  (Bambadinca e Xime,
1972/74)

2. Mensagem de António Manuel Sucena Rodrigues, em resposta ao António J. Pereira da Costa [quem, como se sabe, foi comandante da CART 3494, no Xime, entre agosto e novembro de 1973, pertencendo Samba Silate ao subsetor do Xime]

Data: 23 de dezembro de 2014 às 20:01

Assunto: A Cruz da Samba Silate

Olá Camarada, António José Pereira da Costa


A cruz que se vê na foto era em Samba Silate e não no Xime ou em Bambadinca. A tabanca de Samba Silate e nesta época (Maio de 74) não tinha qualquer cerca de arame farpado, assim como não tinha qualquer sistema de autodefesa.

Como expliquei no texto (*), era considerada como segura relativamente à possibilidade de ser "incomodada" pela guerrilha, dada a sua localização. Por isso era enviada para lá a população que fugia das chamadas zonas libertadas.

Também, conforme referi no texto, foi a primeiro e única vez que fui a Samba Silate e estava ali tão perto [, no Xime], por isso não sei se, no passado, alguma vez esteve cercada de arame farpado.

Já agora, camarada, pela tua questão presumo que lá tenhas estado ou lá perto. Em que época foi e em que companhia ?

Um abraço. Bom Natal e Bom Ano.

A. M. Sucena Rodrigues
Ex-fur mil da CCaç 12, 1972/74
Bambadinca e Xime


3. Entre as histórias contadas pelo padre Grillo, Paolo Grappassoni (que esteve na Guiné-Bissau em finais de 1988 e princípios de 1989, em visita a missões católicas italianas) escolheu algumas publicadas na revista “Venga il tuo Regno”. E eu selecionei e traduzi e adaptei esta, que tem a ver com a cruz de cimento que existia (e existe)  no centro da tabanca de Samba Silate.

[Foto à esquerda, o padre italiano Antonio Grillo (1925-2014), de visita a Bambadinca e aos "seus balantas", em 22/2/2008; cortesia do blogue "Igreja Católica na Guiné-Bissau > 19 de junho de 2014 > Faleceu Pe. António Grillo, com a devida vénia; foto editada por L.G.]

Um mês depois de ter recebido o batismo, morreu  o chefe de Samba Silate, Mateus Jala. Durante a muito tempo Jala tinha quatro mulheres, nunca tendo sido possível, o missionário, pensar no seu batismo. Mas quando ele ficou só com uma, a última, que também tinha um filho pequeno, o padre pensou que tinha chegado o momento. E aceitou.

Antes de morrer, Jala tinha pedido aos seus filhos para não ser enterrado no recinto do seu quintal, como era costume entre os Balantas, mas sim à sombra da cruz branca erguida no centro da tabanca. 

 À hora do funeral, o padre dirigiu-se à morança do Jala em Samba Silate. Acompanhado por dois jovens acólitos, encaminhou-se para o lugar do enterro, seguido dos homens que levariam o féretro.

Mas, de repente, o padre Grillo deu-se conta de que o corpo havia desaparecido. O que tinha acontecido?

Um ancião da aldeia garantiu-lhe que ele estaria de volta em breve, depois de ter sido levado para a bolanha para a 'lavagem'. De fato, logo reapareceram os carregadores, para logo desaparecerem novamente com o cadáver transportado numa maca improvisada. Dirigiram.se a outra morança.

Um dos dois acólitos disse ao padre: "Jala foi despedir-se dos parentes." 

 Ao fim de meia hora, os carregadores reapareceram com outro ânimo, porque, de acordo com suas crenças, tinham sido possuídos pelo espírito do defunto e todos trabalharam em prol da sua virtude. 

"Jala, diziam os homens garndes, não poderia deixar esta terra sem sequer se despedir do seu amigo missionário em sua casa."

Os carregadores tinham ido de facto à residência do padre. Aqui, segundo descreveu um jovem que havia testemunhado a cena, pouco tinha faltado para arrombarem a porta com golpes violentos da moca, em jeito de saudação.

Quando, depois destas cenas, o padre estava pronto para benzer o corpo antes de ser colocado no túmulo, os dois jovens acólitos fugiram. Os seus pais tinham-nos absolutamente proibido de assistir ao enterro, porque era um mau presságio para um jovem. O padre benzeu o cadáver e manifestou a intenção de voltar à tabanca uns dias depois.
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14055: Memória dos lugares (278): Samba Silate, no pós 25 de abril de 1974: As saudades que a guerra não conseguiu apagar mesmo nos guerrilheiros do PAIGC (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambdaionca e Xime, 1972/74)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14080: O meu Natal no mato (42): 1971, em Zemba (Angola); 1972, em Caboxanque; 1973, em Cadique (Rui Pedro Silva, ex- cap mil, CCAV 8352, Cantanhez, 1972/74)

Foto nº 1 > Angola, Zemba – Dezembro 1971 - Jantar dos soldados do batalhão

Foto nº 2 > Angola, Zemba – Dezembro 1971 - almoço com Gen Costa Gomes, aqui de costas

Foto nº 3 > Angola, Zemba – Dezembro 1971 - Visita do Gen. Costa Gomes. Em primeiro plano o oficial de dia que agora vos relata este natal.

Foto nº 4 A

Foto nº 4 B

 Foto nº 4 > Angola, Zemba > Dezembro de 1971 > Almoço com o Gen. Costa Gomes.
Aqui estou de costas e em primeiro plano (foto nº 4 A) com a braçadeira da ordem.

Foto nº 5 > Guiné < região de Tombalia < Cantanhez > Caboxanque – Dezembro 1972 - Gen Spínola no perímetro defensivo nos primeiros dias da operação.

Foto nº 5 A > Spínola, de costas e pingalim

Foto nº 6


Foto nº  6A - Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Caboxanque >  Dezembro de 1972 - A minha primeira visão de Caboxanque. Futura placa dos helicópteros e campo de futebol.


Foto nº 7 > Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Caboxanque > Dezembro de 1972 - A “messe” de oficiais  e também a minha primeira “secretária” . Da esquerda  para a direita Alf Pratas e Sousa, Furriel Urbano,  Alf Nobre Almeida e Alf Santos. Ao fundo as tendas  que nos “abrigaram” durante os primeiros meses.  O Alf Duarte deveria estar numa operação.  No centro da mesa o “remédio” para alguns males de  que íamos padecendo por lá.

Foto nº 8 > Guiné > Regiãod e Tombali > Cantanhez > Caboxanque – Dezembro de 1972 – Distribuição da refeição pelos grupos de combate, secção por secção. O primeiro da fila a organizar a distribuição é o Alf Duarte.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Caboxanque > Perímetro defensivo, em esquema  aproximado, sobre imagem actual, do Google Earth (com a devida venia...)

Fotos (e legendas): © Rui Pedro Silva (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda, Cufar e Caboxanque (na margem direita do Rio Bixanque, afluente do Rio Cumbijã) 

Infografia:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné   (2014).

************

1. Mensagem do Rui Pedro Silva, com data de 22 do corrente:

[Foto à esquerda; Rui Pedro Silva, ex-alf mil, CCAÇ 3347 (Angola, 1971), ex-ten mil, BCAÇ 3840 (Angola, 1971/72), e ex- cap mil, CCAV 8352 (Guiné, Caboxanque, 1972/74)]

Meu Caro Luis Graça:

Junto te envio o relato dos meus três Natais em tempo de guerra. Publicarás se e quando achares conveniente.

Por coincidência em Dezembro de 1972 estávamos a iniciar a operação de reocupação do Cantanhez fazendo agora 42 anos que entrámos em Caboxanque.

Espero que já tenhas recuperado do “percalço” que sofreste e estejas totalmente operacional.

Prometo ser mais assíduo na cooperação com o blog.

Um grande abraço para ti,  para o Carlos Vinhal, o Magalhães Ribeiro e para todos os Homens Grandes da Tabanca.

Boas Festas e Bom Ano de 2015.


2. Três Natais em tempos de guerra

por Rui Pedro Silva

A 21 de Dezembro de 1972 a CCav 8352, que eu comandava, desembarcou em Caboxanque, no âmbito da operação “Grande Empresa”, iniciada a 12 de Dezembro, a qual tinha como objectivo a ocupação do Cantanhez.

O IAO no Cumeré durou 15 dias e logo marchámos para Cufar,  divididos em dois grupos. O primeiro grupo deslocou-se de Noratlas a 19-11-1972 e o segundo de LDG a 21-11-1972 e com ele todo o equipamento para a instalação de uma companhia: do equipamento de cozinha às tendas e colchões pneumáticos, das viaturas ao gerador, das armas e munições às rações de combate, etc.

Para todos nós era seguro que não íamos render uma outra companhia e, ao chegar a Cufar, desde logo ficou claro que não seria aquele o nosso destino. Logo no desembarque recebi instruções para conservar o material carregado nas viaturas e tudo o resto guardado num improvisado “armazém”.

Nesse momento ainda não sabíamos da operação a que estávamos destinados. Nas quatro semanas que estivemos em Cufar realizámos operações de patrulhamento da zona, segurança à pista e ao porto e à construção da estrada Cufar - Catió. Da sede do batalhão, em Catió, vinham insistentes recomendações para nos concentrarmos na segurança da estrada. Havia um claro desentendimento entre os responsáveis em Cufar e a sede do Batalhão. A segurança na estrada mantinha-se 24 horas por dia,  rodando por todos os grupos de combate da companhia de Cufar e da minha e portanto não se percebia a insistência.

A preocupação de Catio resultava do facto de estar em curso uma manobra de diversão procurando atrair o PAIGC para aquela zona,  levando-o a mobilizar os seus efectivos para Cufar e assim garantir uma menor resistência à entrada das nossas tropas no Cantanhez. Esta manobra teve pleno êxito. O PAIGC foi surpreendido com a entrada das nossas tropas em Cadique e Caboxanque,  não oferecendo qualquer resistência nos primeiros dias.

A operação “Grande Empresa” foi muito bem descrita no livro “A Última Missão” do Sr. Coronel Moura Calheiros. Como tive oportunidade de lhe dizer na altura da publicação:

“A sua narrativa permite ao leitor ter uma visão mais abrangente da guerra na Guiné e, ao mesmo tempo, navegar consigo no seu PCA, progredir com os seus bigrupos nas missões mais arriscadas, partilhar a angústia das decisões mais difíceis, confrontar-se com a orientação estratégica do Comando-Chefe, conhecer a actuação da guerrilha, viver a vida de um militar naqueles duros tempos e cumprir a nobre missão de resgate dos militares portugueses falecidos e sepultados na Guiné. Ao ler as paginas deste seu livro revejo e identifico pessoas com quem partilhei uma parte importante da minha vida e situações em que a minha companhia esteve também envolvida e que constituem pedaços da história dos pára-quedistas, das forças armadas portuguesas e do nosso país.”

Recomendo vivamente a leitura deste livro a quem ainda não o fez porque nele revemos, cada um de nós, ex-combatentes, uma parte da nossa história. Cerca de seis meses depois e em resultado da operação “Grande Empresa” existiam 7 novos aquartelamentos:

Cadique,
Caboxanque,
Cafal,
Cafine,
Jemberem,
Chugué
e Cobumba.

O COP 4 comandado pelo Sr. Tenente-Coronel pára-quedista Araújo e Sá, comandante do BCP 12, coadjuvado pelo seu segundo comandante e oficial de operações Major Moura Calheiros,  foi a unidade operacional responsável pela operação.

Mas fiz esta longa introdução para abordar o tema do Natal.

Os quatro dias que mediaram desde a nossa entrada em Caboxanque até ao Natal de 1972, foram preenchidos em ciclópicas tarefas de instalação da companhia, segurança no perímetro defensivo e reconhecimento da zona operacional.

O perímetro tinha cerca de 3,5 Km e só foi possível garantir a segurança de Caboxanque instalando os grupos de combate e cada uma das suas secções ao longo da linha de defesa, ficando a CCav 8352 instalada em metade do perímetro virado a norte e a CCaç 4541 na metade virada a sul. Instalados em valas cavadas em contra relógio, sem arame farpado e apenas separados da mata do Cantanhez por um largo espaço que as maquinas da engenharia terraplanaram, com a ração de combate a alimentar a nossa fome, a noite escura a servir de cobertor e a angústia de podermos ser surpreendidos pelo PAIGC nessa nossa tão frágil posição, assim se encontravam os militares sob meu comando, carregando sob os meus ombros a enorme responsabilidade do que lhes pudesse acontecer naquelas difíceis circunstancias.

No dia de Natal a companhia estava dispersa pelo perímetro de Caboxanque, um grupo de combate tinha saído com um bigrupo paraquedista, em patrulhamento, e em Cufar ainda permaneciam alguns militares da companhia, guardando todo o material que lá tinha ficado. Sem meios frio a funcionar e portanto sem géneros frescos,  as refeições limitaram-se às rações de combate e a uma sopa improvisada com o pouco que diariamente se trazia de Cufar.

Estes foram dias muito difíceis para todos. Numa fotografia que aqui junto podem verificar como eram feitas as distribuições das refeições ao longo do perímetro. Quando o unimog que fazia este serviço chegava junto da última secção já a refeição que transportava estava fria.

Um ano antes, no Natal de 1971, estava em Angola, nos Dembos, na sede do Batalhão Caçadores 3840 sediado em Zemba e na escala de serviço coube-me ser o oficial de dia. Nesse dia o General Costa Gomes decidiu fazer, uma visita ao batalhão. Cumpridas as formalidades da praxe e depois de uma revista ao aquartelamento o General reuniu-se com o comando do batalhão, após o que confraternizou com os oficiais do batalhão num almoço.

Na pista onde o recebi o General Costa Gomes surpreendeu-me indagando se eu não era um dos militares em estágio para o CCC [, Curso Complementar para Capitães]. Dois meses antes alguns dos estagiários que foram enviados para Angola, entre os quais eu me encontrava, foram chamados ao quartel-general onde o General Costa Gomes nos recebeu. Depois de uma breve intervenção sobre a situação em Angola e de nos desejar que o estágio corresse bem,  quis saber de onde éramos e que expectativas tínhamos para o estágio. Quando chegou a minha vez,  disse-lhe que era angolano, nascido no Lobito e que esperava ser colocado nessa cidade. Depois de uma sonora gargalhada, afirmou que no Lobito não havia guerra.

Naquele ambiente que me pareceu de uma certa descontracção, tive o atrevimento de dizer que mais valia prevenir do que remediar, nomeadamente na defesa das zonas onde a guerra ainda não tinha chegado. Com um sorriso bonacheirão deu por findo o diálogo e despediu-se.

Na pista relembrei-lhe então a apresentação que ocorreu dois meses antes. Com um aceno de cabeça, indicando recordar-se do episódio, sorriu e avançou para a visita ao aquartelamento. À tarde terminou a visita mas não as minhas dores de cabeça. Nessa noite, o álcool, nas suas variantes ingeríveis e com os mais variados paladares, bebido com imoderação, fez o seu serviço e eu lá andei, madrugada dentro, numa roda-viva, a apagar fogos que ânimos mais exaltados iam ateando. O problema no dia seguinte foi evitar um relatório muito detalhado do sucedido para evitar um castigo mais pesado para alguns. Foi o meu primeiro Natal na guerra colonial. As três fotografias que envio testemunham esse dia.

O Natal de 1973 foi passado em Cadique para onde a CCav 8352 tinha sido enviada, por um mês, no âmbito da operação “Estrela Telúrica” que envolveu entre outras forças o Batalhão de Comandos. Instalados em condições muito precárias, sempre com grupos de combate em acção, principalmente junto à estrada Jemberem – Cadique, este foi o terceiro e o nosso pior Natal em guerra.

Dois dias antes do Natal um grupo de combate da minha companhia e outro da companhia de Cadique foram emboscados quando vinham render outros 2 grupos de combate da CCav 8352 que eu naquele dia comandava. Em resultado da emboscada houve mortos e feridos entre os militares da companhia de Cadique. A moral do pessoal de Cadique estava a um nível muito baixo e assistimos a alguns actos de desespero, como a recusa a sair para operações ou tentativas de accionar uma granada defensiva junto do comando.

Mas porque este poste já vai longo voltarei a escrever sobre Cadique bem como sobre a operação “Grande Empresa”,  mais tarde.

Sendo o Natal geralmente assumido como uma festa de família,  as circunstâncias em que o celebrámos na guerra retiraram-lhe muito do seu sentido de paz , apesar de sentirmos como nossa família todos os militares com quem estávamos.

Foram assim estes meus três Natais em tempo de guerra.

Boas Festas a todos os tabanqueiros e bom ano de 2015.

Um abraço
Rui Pedro Silva

PS. Com mais tempo identificarei os militares das fotografias.
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13712: O meu Natal no mato (41): Natal de 1972 – CART 3494 (Jorge Araújo)

Guiné 63/74 - P14079: Parabéns a você (836): Ismael Augusto, ex-Alf Mil Manut do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Dezembro de 2014> Guiné 63/74 - P14074: Parabéns a você (835): Fernando de Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/71) e João Rebola, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2444 (Guiné, 1968/70)