Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), mandou-nos o segundo episódio de Brunhoso há 50 anos:
Brunhoso há 50 anos
2 - As Autoridades (Continuação)
Tanto o padre como a professora, não sendo autoridades
civis, tinham um poder inegável sobre a formação e o comportamento
espiritual e cívico da população. Por esses motivos eram muito
respeitados e temidos pela população.
A professora, natural da aldeia, pertencia a uma das famílias mais
ricas da terra. Família muito religiosa que ajudava muito o padre, de
quem até me parece que seriam parentes, no arranjo da igreja e nas
cerimonias religiosas. Cultivavam um distanciamento conveniente e
higiénico com a generalidade da população, sobretudo com os mais
humildes.
Por caridade cristã, penso eu, davam algumas esmolas aos
mais pobres e também reprimendas à mistura. Eram honestos e rigorosos
no cumprimento das suas obrigações para com os outros, mesmo quando
mais tarde, com a crise provocada pela emigração dos anos
sessenta, alguns foram forçados a vender muitos bens.
Com a educação familiar que recebeu e com a formação que lhe deu
o antigo regime, a professora tinha que ser autoritária, até um pouco
despótica. Era boa professora no sentido do esforço e do trabalho a
que não se poupava mas usava todos os meios de coação física, desde
palmatoadas, bofetadas, puxões de orelhas e vara.
Os antigos alunos dela, da minha idade, mais velhos e outros mais
novos, depois de tantos anos passados, dividem-se no seu julgamento,
alguns ainda não esqueceram os maus tratos excessivos e o orgulho pelo
cargo que desempenhava e pela família donde provinha, outros
agradecem-lhe o esforço feito, apesar dos castigos severos.
O padre Zé merece um tratamento com nome, pois a sua fama
perdurará mais do que a dos outros, pela sua bondade, pelo
trato cordial que tinha com todos, pelas dádivas desinteressadas que
diariamente fazia, pelas famosas zangas que tinha por vezes com o seu
rebanho que se queria desviar dos caminhos de Deus.
Sendo filho de famílias ricas de uma aldeia próxima, com
bastantes bens também em Brunhoso, manteve o pagamento da côngrua,
segundo afirmava, apenas para que o povo não perdesse esse hábito,
quando ele fosse substituído por morte ou outro motivo.
Todos os ofícios religiosos, batizados, casamentos, funerais
etc. eram grátis.
Os mais desfavorecidos não pagavam a côngrua indo para ele um
ou dos dias à apanha da amêndoa ou da azeitona para a terra dele, que
distaria da nossa aldeia cerca de oito quilómetros.
Todos os anos iam
também os lavradores com carros de vacas e outros trabalhadores,
buscar lenha a essa aldeia para o seu aquecimento e da casa durante o
ano.
Recordo-me que estas tarefas entusiasmavam muito os meus
conterrâneos porque o padre Zé, além de ser muito jovial, também os
tratava bem, com vinho à farta, presunto, queijo e outros petiscos.
Fumava muito e tinha o hábito de oferecer cigarros a uns e a
outros, fumadores ou não fumadores. Os responsos que recebia nas
missas por alma dos mortos distribuía-os pelos rapazes que o fossem a
ajudar na celebração. Eu fui muitas vezes na esperança, nunca
defraudada, de receber um escudo ou dois. Tínhamos que aprender todo
aquele latinório e ajudá-lo com as galhetas e a campainha.
Não havia
escola para isso, íamos aprendendo com a prática, por vezes era uma
confusão terrível mas o padre, com a paciência dele, lá nos ia
ensinando. Do latim que lhe ouvíamos e do que lhe tínhamos de lhe
responder nada compreendíamos mas o importante era chegar ao fim da
missa e que houvesse muitos responsos.
Vivia numa casa grande que à escala da dimensão da freguesia e
descontando exageros de vária ordem, eu comparo com o Vaticano.
Quando passava à porta da casa, parecia-me que havia sempre gente
perto, gente a entrar e a sair, principalmente mulheres.
Tinha uma governanta e uma criada efectivas, duas ou três
vizinhas e uma sobrinha da governanta que muitas vezes iam lá a
ajudar. Calculo o amor e desvelo dessas senhoras, tanto a lavar como a
engomar os fatos do padre Zé, as calças, o casaco, a camisa, a roupa
interior, mas sobretudo a cuidar-lhe dos paramentos, numa atitude
quase devota, a casula, a túnica, a estola, a dalmática, a mitra, a
batina, a alva.
Durante alguns anos viveu lá também um rapaz, filho duma mulher
muito pobre, que ele recolheu, ainda muito novo que tinha hábitos de
muita liberdade e alguma vadiagem. Não se entendiam mal, viveu lá
até à idade adulta, com todo o conforto em alojamento e alimentação, a
ouvir os bons conselhos do padre Zé, que nunca conseguiu alterar-lhe o
gosto pela liberdade. Não sei se era por viver junto do padre mas
lembro-me que lhe deram a alcunha de "Vigário". Em adulto, saiu da
aldeia para outra terra do distrito e tornou-se um homem responsável e
mais calmo.
Brunhoso tinha dois oragos, S. Leão e S. Lourenço, nesse tempo a
aldeia guardava feriados nos seus dias, o padre dizia a missa e não
havia outras cerimonias ou festividades.
O grande dia da festa anual era dedicado a Santa Bárbara, que
não era padroeira nem tinha direito a dia de feriado. Santa padroeira
dos artilheiros e mineiros, os lavradores procuravam também junto dela
defender-se das desgraças provocadas pelas tempestades, raios e
trovões.
Brunhoso - S. Lourenço
Brunhoso - Festa a Santa Bárbara 2007
Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso - Mogadouro
De uns anos para os outros eram nomeados os mordomos que se
iriam encarregar da organização das festividades.
Todos os anos havia grandes zangas entre os mordomos e o padre Zé
pois ele nunca queria admitir que houvesse arraial. Bem, ele arraial só
com música até podia tolerar, não admitia é que ao som da música
andassem rapazes e raparigas, homens e mulheres agarrados a dançar.
Houve sempre este braço de ferro entre o padre e mordomos, mas
embora todos lhe tivessem muito respeito e amizade, o povo, em tempos
de tantas proibições, nunca quis privar os rapazes e raparigas de
poderem expressar algum afecto e calor naquele abraço bailado ao som
da música, que era a maior proximidade consentida entre solteiros.
Entre a sabedoria antiga das mulheres e dos homens e o puritanismo da
Igreja, o Povo de Brunhoso impunha a sua vontade. O padre Zé perdia
esse braço de ferro mas no ano seguinte ia tentar novamente impor a
lei da Igreja, pois ele era casmurro.
Voltava a perder, não se consegue impedir a corrente do rio, não se
podem conter as forças da natureza.
Havia outra grande festa sobre a qual não se pronunciava, era o
Entrudo, essa festa pagã tão antiga, que os homens do seu rebanho
pareciam afastar-se, para passar a adorar outros deuses antigos e
pagãos, mais permissivos como Dionísio e Baco, deuses loucos que não
tinham as boas maneiras, nem a justiça severa, nem a promessa de
salvação do Deus que ele sempre lhes procurava revelar.
Era um dia em que o padre Zé rezava para que eles voltassem de
almas manchadas, mas dispostas ao arrependimento e a lavar-se no
perdão que a Santa Madre Igreja garantia aos pecadores.
Nas mulheres ele confiava, como na sua mãe, que ficara tão
contente quando ele foi padre, o sentimento das suas paroquianas era
o mesmo da sua amada mãe, como não amar mais um homem que está tão
próximo de Deus, que até pode falar com Ele. Elas não duvidavam dele,
elas não queriam os deuses antigos, loucos, devassos, com todos os
defeitos dos seus homens, que não lhes garantiam uma vida melhor no
fim das suas vidas.
O seu Deus tinha que ser o mesmo do padre Zé, o filho duma
mulher, Maria, que ela criou com amor, como elas criaram os seus.
As mulheres gostam de um Deus Filho, pois os filhos delas são
todos deuses que elas adoram.
Já os homens, nesse tempo, não mostravam ter muita fé. Cumpriam
os rituais mínimos por tradição, para não desagradar à comunidade e a
um Deus desconhecido, porque não sabiam o que havia para além da morte
e não lhes agradava que houvesse o silêncio e o nada. Havia ainda
outra razão de carácter politico e social que os obrigava a ter
alguma pratica religiosa, pelo menos ir à missa ao domingo.
É que nesse tempo, todo o que fugia dessa pratica era considerado
comunista, e isso era pior do que ser apelidado de ladrão ou
desordeiro.
A propaganda anticomunista mais acérrima foi feita pela
Igreja no tempo das cruzadas de Fátima como reação às barbaridades que
os comunistas cometeram contra a Igreja quando tomaram o poder na
Rússia. O antigo regime serviu-se dela para meter todos os opositores
no mesmo saco e apelidá-los de comunistas pois a história dos males
que tinham causado à Igreja ainda era recente. Era eu ainda menino e
crente, por obediência familiar e escolar, recordo-me das novenas de
Maio, à Nossa Senhora de Fátima, em que todos rezávamos pela conversão
da Rússia. Quem conduzia estas cruzadas apostólicas era a professora
primária, mais atenta, sensível e sintonizada com o regime e com o
sofrimento da "Igreja do Silêncio", para lá das "cortinas de ferro".
Portugal, um pais tão religioso e católico, que alguns Papas proclamaram de Nação Fidelíssima, com tantas devotas e santas
mulheres, somente tem uma santa, nascida e criada no país que se
chama Beatriz da Silva.
Homens haverá meia dúzia ou pouco mais. Ou é
Deus que não é justo ou os seus representantes no Vaticano.
O padre Zé não foi um deus, foi um santo, podia ser canonizado
se Portugal fosse um país mais rico e próximo do Vaticano.
Mas meus amigos e camaradas. para tudo são precisas ajudas dos
vários poderes, mesmo para ser santo!
Um abraço todos!
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de março de 2015 >
Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista)