‘Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra, fazer de conta que ela nunca aconteceu’
A guerra é igual para todos os que nela participaram. Alguns não a puderam contar e muitos outros, embora ainda vivos, querem permanecer mortos para as memórias desses tempos.
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A escrita desta história
Esta memória foi escrita com recurso a curtos diários, a relatórios de operações1 feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos.
Foi esboçada ainda em 1967, dois meses depois de ter regressado a casa, sem qualquer intenção de voltar a pensar no assunto.
Tentei respeitar o espírito que na época vigorava entre nós, em Brá. Apesar de, a certa altura, ter a ideia de que a guerra na Guiné dificilmente seria resolvida pela via militar, no nosso próprio interesse era importante fazê-la com eficácia, fugindo à balbúrdia, do “todos ao monte” e fé em Deus, tão frequentemente vista em unidades espalhadas pelo território e que muitas vezes tão maus resultados acarretava.
Os Comandos formados no CTIG, entre 1964 e 1966, eram realmente diferentes. Tinham um dístico grande à entrada das camaratas: “Os Comandos não são melhores nem piores, são diferentes”.
Operavam em grupos de 20 a 30 homens, diariamente treinados, com boa capacidade física, muito móveis e serviam-se de armamento ligeiro. Tanto saltavam de viaturas em andamento internando-se rapidamente no mato como eram largados de helis mesmo em cima de acampamentos Inimigos. Apesar de utilizarem a surpresa como arma principal de ataque, rodeando-se de cuidados extremos na progressão para o objectivo, nem sempre tiveram sucesso, tiveram os seus desaires. Cerca de 6% dos seus efectivos morreram em combate e 10% foram feridos com mais ou menos gravidade. Deram tudo o que puderam, sem pedirem nada em troca, até a farda amarela que usavam foi paga do seu bolso e o crachá que traziam no peito tiveram que o ganhar com muito treino e em operações reais. Com as acções que desencadearam, aliviaram muitas vezes a pressão a que o pessoal em quadrícula estava sujeito.
E mostrámos que também era possível desinquietar o IN nos seus santuários.
As outras histórias que entram nesta escrita fazem parte do ambiente que se vivia na altura e ajudam a compreender melhor a guerra traiçoeira, sem tréguas, movida por uma guerrilha que se encontrava no seu meio, especialista, na altura, no bate e foge e em semear minas, contra um exército de jovens de vinte e poucos anos, na sua maioria, com preparação militar muito deficiente e que mesmo assim resistiu denodadamente.
As chamadas tropas regulares, dispersas em quadrícula, viveram a parte mais dura. Com armamento inferior, especialmente a partir de finais dos anos 60 e a viverem em condições precárias, em locais de difícil acesso, sujeitas a ataques diários, com as evacuações condicionadas ao horário solar, num ambiente hostil e com o moral a ser fustigado a toda a hora pela propaganda do PAIGC, tudo tiveram contra elas, inclusive militares das nossas próprias tropas que passavam informações para o Inimigo.
Mesmo assim, fizemos, nós todos, o que nos competia: a vida negra à guerrilha. A vida dos combatentes do PAIGC nunca foi fácil, nem nos santuários de que se afirmavam donos e senhores podiam dormir descansados.
Soldados e cabos, furriéis e alferes, milicianos na esmagadora maioria, sem esquecer os valorosos profissionais que os enquadraram, honraram as páginas mais brilhantes, que tanto gostara de ler, na escola primária, no livro da História de Portugal.
Nas outras páginas, o mesmo Portugal que lhes pediu os melhores anos da vida, bocados deles e a própria vida de muitos deles, findas as hostilidades, tudo fez para que se envergonhassem da guerra em que estiveram envolvidos.
Na história recente rapidamente o País esqueceu os que se bateram na 1.ª Grande Guerra na Flandres e aos que se bateram em África permitiu que lhes colassem etiquetas de selváticos colonialistas. Aos bravos naturais da Guiné que, por um motivo ou outro, optaram por se juntarem às tropas nacionais, a esses, os governantes da altura abandonaram-nos à própria sorte. O PAIGC de então não lhes perdoou, apelidava-os de cães raivosos e abateu-os como tal.
É a história, é certo. Mas é também uma parte dessas páginas que ainda não está suficientemente esclarecida.
Não se pretende aqui fazer história, trata-se apenas de deixar o testemunho do que viveu e viu, um dos participantes na guerra na Guiné.
Lisboa, Janeiro de 2015.
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Nota:
1 - Filmes da guerra da Guiné são raros. No QG, em Bissau, havia um departamento de fotografia e cinema com operadores. Pois em centenas de quilómetros percorridos, a pé ou em viaturas, nunca os vi. As escassas imagens filmadas em combate são, na quase totalidade, as que foram obtidas por jornalistas estrangeiros que acompanharam a guerrilha. E nos que nos acompanharam o destaque vai para o filme de uma emboscada que nos custou mortos e feridos (realização da ORTF, hoje alojado no I.N.A.), ocasionalmente filmado numa operação de propaganda à política da Guiné Melhor durante a governação do então Brigadeiro Spínola. Ficam os depoimentos dos que ainda estão vivos.
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À minha Mulher, às nossas Mulheres
As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.
As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.
As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.
As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.
Às nossas Mulheres, às que estiveram no Terreiro do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.
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Mas então como é a guerra lá?
A guerra lá… não tem muito que contar. É a gente ir numa coluna a pé ou em viaturas e de repente rompe um fogachal do caralho, com os gajos a abrir fogo sobre a malta e depois nós respondemos.
De uma conversa à mesa, ao jantar, entre o pai da noiva e o futuro genro, recém-chegado da Guiné, quando este lhe foi comunicar que queria casar com a filha.
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Em dois anos muito do que aconteceu
A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para a contar
Gabriel Garcia Marques em "Viver para contá-la"
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A minha Guerra
Este é o sítio para falar comigo.
Parece despropositado levantar a questão da minha Guerra, aqui, num local tão público. Qual Guerra? A nossa, a minha, a que vivi nos naqueles anos, de 65 e 66, ainda de barba mal crescida. Uma Guerra ainda imberbe, dirão alguns. Imberbe ou não, foi matando um aqui, outro ali, outro aqui outra vez e outro ali de novo. Para os que morreram foi definitiva. E esfacelando um em Binta, outro em Cufar, um em Guidaje, um outro em Cuntima, outro ainda acolá. Não interessa agora falar em locais, naqueles anos o pessoal do Hospital, todos os dias tinha trabalho novo.
Este é o sítio para eu falar da Guerra dos Combatentes, da que se travou em lalas, bolanhas, picadas e matas. Da que se tratou a tiro, à morteirada, com foguetes e rockets a abrir capim e carne, do silvo das saídas do morteiro e do estrondo, muito longe, muitas outras não tão longe assim. Dos ataques e flagelações a bases da guerrilha e a aquartelamentos das NT. Dos ataques às barracas do PAIGC, a maioria nas madrugadas, que as NT tanto pareciam gostar. Foram instruídas para isso, em Mafra, Tavira, Caldas. Abrir fogo logo ao nascer do sol, que havia ainda muito para fazer e andar. E ao aproximar das noites, como parece ter sido também o gosto da guerrilha, os flagelamentos aos aquartelamentos das NT. Evitavam encontrar-se à mesma hora nos mesmos locais, assim parecia.
É dessa Guerra, talvez a menos importante, que estou a falar. A outra, a que se travava nos ares condicionados de Bissau e de Conacry, essa não merece grande realce nesta escrita, embora pessoalmente nos meus últimos três meses a tenha visto de longe, tão longe que quase nem me dizia respeito. E digo quase, porque no Bento encontrava camaradas vindos, de Catió, de Cutia, de Guileje, de Madina do Boé, de todo o lado. Gente com quem andara não há muitos dias, que fazia parte de mim, que eram da minha família, portanto.
Mas a minha guerra era já outra. Continuava a pôr-me a pé às horas do regimento e largava a papelada também à hora regimental. Banho, música no quarto, as horas do jantar na messe de Santa Luzia a aproximarem-se, e ala que se faz tarde, Bissau à frente, cinema, cerveja, uísque até se fazerem horas para chonar, que no dia seguinte lá me esperavam os movimentos de entradas e saídas de géneros, pagamentos aos pequenos fornecedores, aos fornecedores de alferes, que os maiores eram da responsabilidade de outras graduações, felizmente para mim, que, naquele tempo, talvez devido à demasiada juventude, não era grande apreciador de papel e também de certos envelopes.
Colonialismo e imperialismo eram palavras que nos soavam nos primeiros anos da década de 60. Para a grande maioria dos militares portugueses, palavras que não diziam muito. Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé, Cabo Verde, Timor e Macau eram Portugal. Foi com essas palavras que cresci e com elas me fui fazendo homem.
De um momento para o outro, muita coisa começou a acontecer. Vimos e ouvimos na TV o Artur Agostinho, o Henrique Mendes e as vozes de outros que a minha memória já não retém, o Pandita Nheru a entrar em Goa, as hordas da UPA a assassinarem quem se mexia no norte de Angola e na Guiné umas abatizes e um ou outro assassinato de gente local. Simples casos que as forças policiais não deixariam de resolver imediatamente. Não chegaram estas medidas, viu-se logo, e rapidamente houve que ir para Angola em força e já.
Um incêndio que, soprado por ventos bem fortes rapidamente se alastrou à Guiné e poucos meses depois a Moçambique. Foi o princípio do fim da vida de muitos e até 1974, calcula-se em cerca de oitocentos mil o número de jovens que interromperam as suas vidas para fazerem uma guerra, afinal, inútil.
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Eram barcos e barcos que largavam
Fez-se dessa matéria a nossa vida
Marujos e soldados que embarcavam
E gente que chorava à despedida
Letra do Fado Vulgar de Vasco Graça Moura
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GUINÉ, IR E VOLTAR - I
A caminho
O capitão, comandante da Polícia do Funchal até há um ano atrás, foi dos primeiros a descer as escadas, morto por pôr o pé naquela terra que tão bem conhecia. Queria aproveitar para rever a cidade, dar umas voltas, encontrar amigos. E nem precisou de andar muito. Logo houve quem o convidasse para o almoço no dia seguinte. Só se fosse muito cedo, para o meio-dia, no máximo, que o navio partia às duas da tarde. Arranja-se para o meio-dia então, capitão Marques! Pode trazer quem quiser, um convidado seu é nosso também.
Alferes, para amanhã temos peixe-espada ao almoço, quer vir?
Porto do Funchal em Janeiro de 1965. © Foto do autor.
Nem meio-dia era, lá estavam no 1.º andar de um restaurante com boas vistas, até o cais se podia ver, e com algum esforço até o navio se via, treze a uma mesa com as travessas em cima, o convívio a aquecer, e sem darem por ela o tempo a passar-se. Uma sirene de um navio ouviu-se. Não é o nosso Alfredo da Silva2 , pois não? Ai não, não é! Mas a partida não estava marcada para as duas? Ainda falta quase uma hora!
Pois era mesmo o navio deles nas manobras de desatracagem. Ora esta, pode lá ser? Um carro depressa! E o peixe-espada, com tão bom ar, em cima das mesas, a olhar para eles. Olhem, fica para vocês, que vos saiba bem.
A descerem por aquelas ruas abaixo, a caminho do porto, uma carrinha da polícia a abrir, quando lá chegaram, já o navio estava ao largo. Uma lancha depressa, arranja-se já! Sinais e mensagens de rádio, do porto para o navio, o aviso para pararem. Qual quê, não podemos, abrandamos só, que se cheguem. Com a lancha encostada, lançaram-lhes uma escada de cordas.
O capitão à frente, que era mais graduado, o alferes atrás uns bons degraus. Uma dificuldade por ali acima, o capitão Marques a protestar, que maçada, já não tenho idade para desportos destes, que porra! Dentro do navio finalmente, então a partida não estava marcada para as duas? Tivemos que antecipar uma hora e avisámos, se calhar os senhores não dormiram a bordo.
O capitão Marques, do caga-e-tosse3 ou lateiro , como então se dizia, senhor de pouco mais de cinquenta anos, e o alferes miliciano repartiam o camarote. Poucas pessoas para tanta carga. Farinha, medicamentos, açúcar, peças de fardamento, arroz, pneus, motores, batata, latas de óleo, frescos, combustíveis. E armas, munições, explosivos e outro material de guerra arrumado em dezenas de caixotes, em compartimentos à parte.
O mar calmo fez-lhes sempre companhia naqueles três dias de navegação até S. Vicente. Preguiçavam nas amuradas, jogavam a sueca e o king no salão, ouviam música de dança, o costume num navio daqueles anos.
O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, duas latas de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme. Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?
O alferes saiu com o Black, um antigo colega de liceu, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.
Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black. Onde se pode almoçar, menina? Ali? O que se come lá?
Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta grelhada e batata frita? Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro. Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?
Quando saíram dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver agora?
No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou-os debruçados na amurada, a olharem para a cidade. O que levo daqui, meu capitão? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa. Bissau, se for assim não é nada mau! Nem penses, pior, muito pior, arriscava outro alferes, o Leite, sorriso na cara.
Há dias que uns cheiros diferentes andavam no ar. Era África a entrar-lhes pelo nariz. No convés do “Alfredo da Silva”, já mais composto com alguns passageiros embarcados na Praia, o alferes passava as tardes sentado a dormitar e a ler um livro do Moravia, “La Ciocciara”.
E, numa manhã cedo, o navio lançou o ferro frente a Bissau. Duas horas ao largo, parados, a aguardar as lanchas de transbordo, de olhos arregalados a verem o trabalho da estiva, num linguarejar que não conseguia entender.
Bissau à nossa frente. © Imagem no blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné
E depois, os passageiros começaram a sair, com vagar, a pressa de pisar aquela terra não parecia ser muita, pelos vistos. Pés no chão, a olhar para as palmeiras, o alferes aproveitou a boleia num jeep, que os aguardava, rumo ao QG4.
Avenida acima, pareceu-lhe enorme, a esplanada do Bento5 , longe de pensar que, mais tarde, viria a ser assíduo frequentador, a Sé, os Correios, casas com ar colonial à esquerda e à direita, o BNU, o cinema.
Avenida da Praça do Império até ao cais. © Foto do autor.
Aqui é a Praça do Império, o Palácio do Governador, Brigadeiro Arnaldo Schulz, já ouviram falar? Este edifício novo todo envidraçado é a Associação Comercial e Industrial de Bissau, um capitão, cicerone esforçado e competente, a virar à direita, agora esta avenida a subir leva-nos a Santa Luzia, ao QG, lá em cima, estão a ver?
E pronto, camaradas, agora dirigem-se ali, àquela porta em frente, apresentam-se na repartição de pessoal que indicará os vossos destinos. Boa sorte, ah!
Palácio do Governo, Praça do Império, Bissau. © Foto do autor.
Na 1.ª Rep.6 passaram-lhe para as mãos um papel, a guia de marcha, e um jipe deixou-o na Amura7, onde havia uma dependência do Batalhão de Cavalaria 4908, a que passara a pertencer, por rendição individual, e que já levava 17 ou 18 meses de comissão.
O 490 tinha estado no Sul, na operação Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 71 ou 72 dias seguidos, abarracados no arquipélago do Como, a comer enlatados. Regressara arrasado, cheio de carraças, hepatites e outras enfermidades, com os pelotões reduzidos a metade, e, segundo as más-línguas de alguns frequentadores do Bento, deixara lá o dobro dos guerrilheiros.
Depois, o tenente-coronel levara o Batalhão para o Norte onde, exaustos, escorriam os meses que faltavam para dizer adeus à guerra. Centrado em Farim, dispusera-se em quadrícula com uma companhia em Cuntima, na fronteira com o Senegal, outra em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim enquanto a companhia de comando e serviços e a outra operacional ficaram sediadas em Farim.
Disseram-lhes, ao alferes e ao capitão Marques, que aguardassem na Amura, uns dias, não sabiam quantos, até que houvesse transporte aéreo para Farim.
Fortaleza de Amura, Bissau. © Imagem em Luís Graça e Camaradas da Guiné.
Toda uma pequena vivenda térrea por conta dele, mala pousada a um canto. Dois quartos, um quarto de banho e uma cozinha com frigorífico. O calor invadia tudo, um calor diferente, com cheiro, húmido, a colar a roupa ao corpo. A água do banho, estranha, quente, com cor, a espuma agarrava-se à pele, não queria sair nem por nada.
Depois foi ver a Amura por dentro. Uma fortaleza antiga, numa pequena elevação, com uma praça ampla de casas térreas, pequenas, iguais umas às outras e árvores à volta, a fazerem sombra.
Combinara encontrar-se com os companheiros da viagem, o alferes Leite e o capitão Marques, numa esplanada de um café chamado Bento. Depois de percorrerem as ruas da baixa de Bissau, a marginal e pouco mais, acabaram o dia no Fonseca9 a ostras e cerveja. Nesse dia, o alferes bebera mais cerveja do que em toda a sua vida, no início até estranhara beber tanta, contou até dez garrafas das grandes, que era o tamanho padrão, depois habituou-se, no 2.º dia já não contou. E os primeiros dias foram passados assim, esplanada do Bento, almoço na Amura, sesta com a ventoinha no tecto a andar à roda que o calor era muito, passeio à tarde, ostras e cerveja, jantar outra vez na Amura, e depois na cama, a cabeça a acompanhar a ventoinha, a andar à roda. Amanhã às nove, aqui na Amura, um jeep leva-o ao aeroporto.
Mal dormiu, às 8 estava pronto, pequeno-almoço tomado, mala e saco na mão.
Outra vez para a Praça do Império, pelos vistos passava tudo por ali, depois o jeep guinou para a estrada do aeroporto.
De quem é aquela estátua, ali à esquerda? Honório Barreto? Quem foi? Também não sabe? Uma grande recta, casas indígenas de um lado e doutro, à esquerda a seguir a uma curva o Hospital Militar, o Batalhão de Engenharia, o quartel de Brá umas centenas de metros adiante, charcos de água e palmeiras por todo o lado e o aeroporto à vista. Boa sorte, meu alferes, despediu-se assim o cabo condutor. Um Dornier 2710 da Força Aérea aguardava na pista. Era uma pequena avioneta de um motor, os bancos da frente para o piloto e acompanhante, a traseira reservada a correio, malas, pequenos volumes, o que calhasse e coubesse.
Ao rumarem para norte, viu Bissau a ficar mais distante.
Zona de Farim. © Foto de Carlos Silva.
Seguiu o voo, as manobras do piloto, as primeiras fotografias do ar, as matas lá em baixo, misteriosas, pouco amigáveis.
Aterraram, pouco mais de meia hora depois, num campo em Farim. Uma pequena povoação junto a um rio11, casas de adobe rodeando outras, maiores, de aspecto colonial, e nuvens de pó de viaturas com militares a rodarem para as margens da pista.
Aproximação à pista de Farim. © Foto de Carlos Silva.
É o alferes que vem substituir o Monteiro, para Cuntima, não é? Estava a ver que nunca mais chegava, o Tenente-Coronel de cavalaria, de mão estendida, ar duro.
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Notas:
2 - Navio misto da Sociedade Geral
3 - Serviço Geral do Exército. Faziam a carreira a partir de praças. Imprescindíveis para o bom funcionamento do Exército.
4 - Quartel-General.
5 - Café-cervejaria, ponto de encontro dos militares aquartelados em Bissau ou dos que se encontravam em trânsito. Ficou também conhecida por 5ª Rep. por naquelas mesas se falar de tudo.
6 - Repartição do QG (Serviços de Pessoal).
7 - A Fortaleza foi fundada em 1696 pelo capitão-mor José Pinheiro. A reconstrução iniciou-se em 1753, sob o traço de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, e teve continuação 13 anos mais tarde, sob a direcção do coronel Manuel Germano da Mata. Devido à pedra empregue na construção da fortaleza ser de origem ferruginosa, desgastando-se rapidamente com o tempo, a muralha teve que ser reconstruída novamente em 1946, era então governador o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tinha, no seu interior, um terreiro quadrado com 150 metros sombreado por mangueiras, cujo fruto é muito saboroso.
8 - Sob o comando do Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, o Batalhão integrava a CCS e as C.ªs de Cav 487, 488 e 489. Arrancou de Estremoz, do RC 3, com a divisa "Sempre em Frente". A estadia na Guiné iniciou-se em Julho de 1963 e a comissão foi dada como finda em Agosto de 1965. Da actividade operacional, destaca-se a participação na operação "Tridente", na Ilha do Como, uma das operações militares de maior envergadura efectuadas pelas tropas portuguesas em todos os anos que durou a Guerra de África. Mas a acção do Batalhão não se resumiu a essa operação. Após o desembarque, com base em Bissau, desenvolveu várias acções na zona do Oio. Partiu para as Ilhas do Como, Caiar e Catunco em 14 de Janeiro de 1964 e só de lá saiu quando a acção foi dada por terminada, em 24 de Março de 1964. Passou então à quadrícula, assumindo, em 31 de Maio do mesmo ano, a responsabilidade do sector de Farim, que compreendia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim e, a partir de 29 de Junho, o de Binta. Em 25 de Março de 1965 preparou-se para ocupar Canjambari (que estava dentro do sector à sua responsabilidade e que na altura estava nas mãos da guerrilha). Não foi uma acção fácil. Com a picada que ligava Jumbembem a Canjambari obstruída por enormes abatizes, emboscados e flagelados constantemente, apesar da vasta experiência das tropas, a ocupação só se deu por concluída em 31 de Maio de 1965. Em 15 de Junho o BCav 490 foi substituído no sector pelo Bat. Art. 733, tendo recolhido a Brá, onde ficou alojado até à data de regresso a Lisboa.
9 - Também conhecido pelo Solar dos 10.
10 - Servia para tudo, transporte de pessoal, correio, pequenas cargas, evacuações, reconhecimentos aéreos, posto de comando aéreo.
11 - Cacheu
(Continua)
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