Queridos amigos,
Terá sido uma exposição extraordinária, o livro é belíssimo, um apetite para bibliófilos, ainda por cima a preço decente.
Um jovem nascido em 1975, já com larga carreira nacional e internacional, entusiasma-se pelo exótico da cultura colonial dos séculos XIX e XX, vê-se que está atraído pela força deste império no imaginário nacional. Encontrou soluções expeditas, recorrendo a imagens de arquivo e intercalando-as com botânica. Está ali o colonial a obrigar-nos a pensar o pós-colonial, são imagens polémicas, geram aturdimento, lançam, no silêncio de uma exposição, os sinais de um incêndio que ainda não se apagou: como queremos lidar com o Outro, após séculos de dominação, de missão civilizadora?
Um abraço do
Mário
A Guiné numa exposição de Vasco Araújo
Beja Santos
Vasco Araújo, nascido em 1975, em Lisboa, tem participado em diversas exposições individuais e coletivas, em contexto nacional e internacional. O seu trabalho está publicado em vários livros e catálogos e representado em várias coleções públicas e privadas como no Centre Pompidou, Museu da Arte Moderna (França); Museu Coleção Berardo; Fundação Calouste Gulbenkian; Museo Nacional Reina Sofia (Espanha); Fundação de Serralves; Museum of Fine Arts (Houston); Pinacoteca do Estado de São Paulo. O livro Botânica tem a ver com a exposição com igual título, que ele concebeu para o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, e agora dado à estampa pela Sistema Solar, 2014, numa lindíssima edição. O texto é de Emília Tavares, que assim apresenta a exposição: “O artista apresenta em Botânica 12 esculturas, constituídas por mesas sobre as quais são apresentadas fotografias emolduradas. O conteúdo das imagens confronta o natural com o cultural: imagens de espécies botânicas dos jardins tropicais do Porto, Coimbra e Lisboa convivem com fotografias de arquivo produzidas durante o longo período colonial português e internacional. Alegoricamente, as imagens das espécies botânicas enraízam-se através da mesa, num confronto direto com a apresentação mais decorativa e burguesa das chocantes imagens de arquivo que representam a ideologia da colonização. Ao estarem emolduradas, as imagens ensaiam solenidade; e dispõem-se sobre uma mesa, objeto que remete desde logo para muitos referentes, desde os políticos aos de intimidade”. Emília Tavares discreteia sobre o preto e o branco, a colonização e a descolonização, a ideia do exótico, do civilizado e do primitivo que precisa de ser civilizado, recorda as exposições coloniais, rituais de afirmação imperial e destaca a Exposição Colonial do Porto, em 1934, exposição que serviria para reforçar uma ideia histórica de nação colonizadora, tudo foi organizado para ser uma lição viva. Um artista como Eduardo Malta foi atraído por esta gente exótica, desenhou e pintou, um dos painéis alusivos à exposição mostra o régulo Mamadu Sissé, um dos lugares-tenentes de Teixeira Pinto. Uma guineense, Rosinha, foi premiada como a grande beleza da exposição, mereceu desenho e fotografias, era o símbolo da beleza nativa.
Vasco Araújo força-nos a refletir sobre o colonialismo português, se era genuína aquela ideia de tolerância rácica, se havia mesmo brandura na relação com o Outro. O artista pertence a uma geração que pode estudar o colonial e o pós-colonial sem preconceitos e questionar o silêncio destas décadas, silêncio embaraçoso, uma bruma que começa a dissipar-se com a nova historiografia pós-colonial, que procura superar a ignorância do passado confrontado a nossa história colonial num contexto amplo onde cabem a imigração, os bairros problemáticos, o multiculturalismo fruste e até esta lusofonia em que não nos apercebemos inteiramente se é de aproximação sem reservas ou se foi despertada pelos interesses económicos e estratégicos.
Vasco Araújo montou estas esculturas entre a serenidade e o aturdimento, os elementos vegetais, inequivocamente africanos aparecem recheados de pigmeus, o zoológico humano, o imaginário das aventuras desses pioneiros tipo Serpa Pinto, ternurentas Bijagós, criancinhas-mulheres de candura extrema, Gungunhana, rei de Gaza, exibido nas ruas de Ponta Delgada, num cortejo comemorativo da sua captura, uma Manjaca bem tatuada, Rosinha captada numa intensa luminosidade erótica e Mamadu Sissé em posse soberana cercado de indígenas policromos. E uma vez mais a palavra em Emília Tavares: “Botânica é uma série incómoda, desafiante da nossa habitual modorra perante um passado comprometedor. As imagens com que o artista nos confronta, são ainda hoje, polémicas: muitas foram resguardadas do olhar das gerações que se seguiram ao império e à guerra colonial, como forma de desresponsabilizar consciências e introduzir semânticas opacas do luso-tropicalismo e lusofonia”.
Uma edição lindíssima, tendencialmente a ser acerrimamente disputada por bibliófilos de arte.
Rosinha fotografada por Domingos Alvão
Régulo Mamadu Sissé, pintura de Eduardo Malta
Militar português a abraçar guineense
____________Nota do editor
Último poste da série de 9 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15224: Notas de leitura (765): “Les Luso-Africains de Sénégambie”, de Jean Boulègue, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1989 (Mário Beja Santos)