A noite mais longa da recruta… e não só
Carlos Pinheiro
Tínhamos assentado praça no dia 10 de Outubro de 1967 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, em conformidade com a Lei do Serviço Militar Obrigatório.
O país estava em guerra em três teatros de operações, envolvendo todos os meios humanos e materiais possíveis, Angola, Moçambique e Guiné. Mas também tinha tropas destacadas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e em Timor, tudo isto depois do desastre da Índia, pelo que o destino da juventude daquele tempo estava traçado.
Na noite desse dia 10, depois de nos terem sido indicadas as instalações, nomeadamente a caserna com sessenta camas, mais uma do plantão, dois chuveiros, duas sanitas e meia dúzia de lavatórios, e de nos ter sido fornecido o fardamento, depois de termos ido ao refeitório tomar a 3.ª refeição, fomos a esse mesmo refeitório passar uma parte importante do serão para aprendermos o que era a tropa. Foi uma conversa aberta e franca onde ficámos a saber, minimamente, quem é que mandava e quem é que tinha que obedecer. Ficámos a saber também que o porta-voz do Comando do Grupo de Esquadrões era o Tenente Sentieiro que ali fez todas as apresentações.
- Ficámos saber que só podíamos sair do Quartel depois de sabermos bem todos os distintivos dos vários postos da hierarquia militar para evitar que fossemos fazer continência ao porteiro do Hotel Abidis, que tinha uma farda parecida com a de um Marechal.
- Ficámos a saber que aquela coisa, onde estávamos a depositar a cinza e as beatas dos cigarros – naquele tempo podia-se fumar em todo o lado – a servir de cinzeiro, de manhã, ao pequeno-almoço, era, como se fosse, uma chávena de Vista Alegre para o café com leite e ao almoço era, como se fosse, um copo de cristal para o vinho, para a água ou para a água com algum vinho.
- Ficámos a saber que tínhamos que comer pão duro todos os dias porque, apesar da Escola receber todos os dias pão fresco da Manutenção Militar do Entroncamento, havia sempre dois dias de pão de reserva para evitar qualquer imprevisto que prejudicasse o nosso direito ao “casqueiro” diário.
- Ficámos ali a saber que passávamos a ser um número e mais nada. Mas foi útil essa conversa.
Logo no dia 11, pela manhãzinha, pela fresca, formámos na parada e marchámos para a terraplanagem, no quartel Sede, onde começámos a tomar contacto com a vala, com as barreiras, com a ponte interrompida, com o galho, com o pórtico, com o slide, e acima de tudo com a lama constante e em todo o lado da tal terraplanagem.
Durante a recruta tivemos de tudo um pouco. Muitas instruções nocturnas pelo Monte do Zé Morto, pelas Ómnias, deslocações diárias pelos arredores da cidade, sempre a marchar com a cadência militar, fosse a subir a Calçada do Monte, fosse a caminho da Carreira de Tiro, fosse a caminho da Escola, a caminho do Campo da Feira, fosse para onde fosse.
Logo no terceiro dia de tropa, uma quinta-feira dia 13, fomos confrontados com uma situação tão inesperada como impensável. Estávamos, como disse, no terceiro dia de tropa. Tínhamos regressado da terraplanagem e tínhamos dez minutos para tomar banho, fazer a barba, fazer a cama e apresentarmo-nos impecavelmente fardados na Parada, mesmo que enlameados mas com as botas devidamente engraxadas e a luzir e os talabartes também a brilhar. Nesse entretanto, eis que um camarada nosso, que terá conseguido tomar banho, ao fardar-se em cima da cama terá dito, mais ou menos isto:
- Eh malta, ninguém faz as camas, não temos tempo, não somos escravos.
Só que na Caserna estava um Cabo Miliciano, de Sargento de Dia, que trocou algumas palavras, mais ou menos azedas, com o tal instruendo. Mas tudo acabou, melhor ou pior, todos nos apresentámos na formatura dentro dos tais 10 minutos. Então, o Oficial porta-voz, dirigindo-se às forças em parada, ordenou que o tal instruendo saísse da formatura e acompanhasse o Sargento da Guarda. E o nosso camarada lá foi e esteve preso até Domingo, em prisão particular, tendo na segunda-feira saído à Ordem a sua detenção durante 18 dias, o que lhe deu 54 dias de dispensas cortadas e assim impedido de ir a casa durante esse período. Mas esse nosso camarada aproveitou o tempo de semiclausura e preparou-se para ir fazer duas cadeiras que lhe faltavam, dum bacharelato, num Instituto qualquer em Lisboa. E fez as cadeiras e passou para o COM. Mais tarde foi parar à Guiné, como eu fui, como foi o tal Cabo Miliciano e também o porta-voz. Penso que nunca nos encontrámos todos na Guiné mas eu encontrei, separadamente, o nosso camarada, já como Alferes Miliciano e o referido Cabo Miliciano, já como Furriel. Coisas da vida militar daqueles tempos.
Não foi só a última noite da recruta que foi longa, como lá mais para a frente referirei, mas ali tudo era longo. Os dias, as marchas, as noites, as instruções, especialmente na terraplanagem, as noites a engraxar as botas de sair e os talabartes para as revistas, sempre longas e rigorosas, o rigor da disciplina, a espera pelo fim-de-semana quando havia e só esse é que era sempre curto. A Cavalaria não era melhor nem pior do que as outras armas. Era diferente.
Um dia ao subirmos a Calçada do Monte, a descer ia o Major Duarte Silva, Director da Instrução, a conduzir o seu jeep Austin e porque o nosso Comandante de Pelotão não mandou olhar à esquerda, tivemos um fim-de-semana diferente. Ordem unida no sábado das 10 às 12 e das 15 às 17 e no domingo o calendário repetiu-se.
Foi durante a recruta que aconteceu a tragédia das grandes inundações da grande Lisboa, concretamente no dia 25 de Novembro de 1967, onde morreram largas centenas de pessoas e ficaram desalojados alguns milhares. Não tivemos intervenção directa nesta tragédia, mas muitos dos nossos camaradas que viviam na zona de Alverca, Carregado e Vila Franca, foram atingidos pela tragédia e chegaram com atrasos significativos naquele princípio de semana e contaram-nos episódios terríveis.
Nesse fim-de-semana, a Especialidade de Atiradores de Cavalaria, que tinha entrada no 3.º Turno, estava na semana de campo e também sofreu as consequências daquela intempérie.
Também fizemos a nossa semana de campo com tempo horrível. Na primeira noite a água chegou a congelar nos cantis que tínhamos à cintura. Nunca montámos tenda porque o “inimigo” estava por ali. Passámos frio, mas frio a sério, tudo para lá da Chamusca. Sempre a pé, a marchar, a andar e até a correr.
Mas algo de diferente parecia estar guardado para o fim da recruta, e estava mesmo.
Foi na última noite. No outro dia era o Juramento de Bandeira, mas o meu pelotão teve que cumprir nessa noite mais uma instrução nocturna visto que tinha faltado, com a devida autorização, a uma dessas instruções, dias antes quando nos juntámos, com o Comandante do pelotão, o Aspirante Maciel, para festejarmos o aproximar do final da recruta. E as contas tinham que se acertar. Não podia haver um pelotão beneficiado e não fazer aquela instrução que estava no calendário. E nós fizemos. O pior foi o resto.
A instrução correu bem dentro das normas estabelecidas e regressámos ao Destacamento da EPC, o nosso Quartel, já depois da uma da madrugada. Estava tudo em silêncio e nós respeitámos todos que estavam a descansar. Porém, quando chegámos ao nosso “quarto particular” com 60 camas – dois pelotões – e nos preparávamos para descansar, verificámos que as nossas camas estavam todas armadilhadas, à espanhola, trabalho efectuado certamente pelos camaradas do outro pelotão.
O meu pelotão no campo, mais propriamente nas Ómnias
Foto de autor desconhecido – Direitos reservados
Começou então a barafunda. Cabeçalho para ali, cabeçalho para acolá, alguns iam-se abrindo e espalhando a palha pelo chão, mas eis quando um desses cabeçalhos bate num pequeno vaso de flores que havia por cima da cama do Plantão, e o tal vaso partiu-se. Foi uma chatice. O Plantão levantou-se, fardou-se e desceu as escadas e foi participar o sucedido ao Oficial de Dia. Passado pouco tempo, com a confusão a complicar-se, já com colchões a voarem e a palha a espalhar-se cada vez mais pelo chão da caserna, entra o Oficial de Dia que ordenou que os responsáveis se apresentassem imediatamente na Parada. A barafunda acabou, mas ninguém se mexia para se apresentar na Parada. Então, três voluntários encheram-se de coragem e lá foram. Mas o Oficial exigiu que eles fossem buscar os outros responsáveis, porque aquilo que viu não era “trabalho” só de três instruendos. E assim, dos tais sessenta, viemos trinta e seis em cuecas, uns descalços, outros em botas e foi-nos tirado o número para não haver mais confusões. Voltámos à caserna e lá limpámos, impecavelmente, aquilo que parecia um palheiro mal organizado. Quando nos deitámos já seriam mais de quatro da matina e a Alvorada tocou à hora regimental.
O dia começou como habitualmente com a formatura geral, a toque de caixa, para o pequeno-almoço e de seguida subimos à caserna para nos barbearmos e fazermos a higiene pessoal possível, visto que só havia dois chuveiros para sessenta homens e o tempo estava cronometrado como acontecia todos os dias.
Aula técnica na Parada do Destacamento da EPC com o Comandante do Pelotão, Aspirante Maciel, a supervisionar os resultados
Mas à hora marcada, lá estávamos devidamente fardados e equipados na Parada, com os talabartes e as botas a brilhar, com o grande capacete na cabeça e a companheira Mauser à mão, a aguardar ordens.
E então, o Porta-voz do Comando do Grupo dos dois Esquadrões – trezentos e sessenta homens – lá deu os avisos da praxe, salientando e passo a citar de memória “que este era o dia mais solene da vossa vida militar pelo que estão autorizados a ir almoçar fora com a família, com as noivas, as mulheres ou as namoradas, à excepção daqueles trinta e seis “gabirus” que ficam detidos até novas ordens”.
Era tudo apurado. O do meio calçava 35 e andou em sapatilhas a recruta toda porque não havia botas para ele. Mas foi apurado
Nós, os tais trinta e seis, ficámos detidos – detenção particular – naquele dia e mais dois dias para não esquecermos onde nos tínhamos metido.
Entretanto, o pior estava para vir. Fomos de férias, por volta das vésperas do Natal desse ano de 1967, e regressámos no dia 4 de Janeiro de 1968, para sabermos a especialidade que nos caberia em sorte e a Unidade para onde iríamos. Mas de facto o pior estava para vir. Nesse dia soubemos que a maior parte da malta – 201 em 360 - chumbou no CSM e passou para o Contingente Geral. E eu fui um deles.
Mais tarde, já na Guiné, no ano de 1970, em data que não posso precisar, mas de certeza ainda no 1.º semestre, encontrei no Cais o Capitão Carvalho de Andrade que tinha sido Comandante do Grupo de Esquadrões na minha recruta em Santarém em 1967. Conheci-o à distância, e com a devida vénia prestei-lhe a continência a que ele correspondeu e disse-me que lhe parecia que me conhecia de qualquer lado. Respondi-lhe que também o conhecia, mas sabia de onde era. Então ele perguntou-me de imediato – estava a ver as minhas divisas de Cabo – se eu tinha sido um dos lixados do 4.º Turno de 67 de Santarém. Claro que lhe respondi que sim, que tinha sido um dos 201 que tinham chumbado. Então, com o vagar que havia, pois estávamos à espera dum barco que nunca mais chegava, penso que era o Carvalho Araújo, disse-me que tudo aquilo aconteceu porque terá havido um erro na classificação das pautas de tiro e o Comandante, porque o Tiro dependia da Direcção de Arma de Infantaria, não quis pedir a revisão das provas pelo que os chumbos calharam quase todos a Santarém onde só estavam 360 instruendos, ao passo que no CISM em Tavira e no RI5 nas Caldas da Rainha estariam cerca de 1200, em cada lado, e onde os chumbos não teriam chegado às duas dezenas. Era a tropa a funcionar no seu melhor.
Porque as conversas são como as cerejas, aproveito para recordar que o Capitão Carvalho de Andrade que acima referi, morreu na Guiné em 25 de Julho de 1970, num desastre do helicóptero, que vinha a voar em linha – eram três helis - e que caiu no Rio Mansoa devido a um tornado. Naquele helicóptero vinham quatro Deputados à Assembleia Nacional - Dr. James Pinto Bull, Dr. José Pedro Pinto Leite, Dr. Leonardo Coimbra e José Vicente de Abreu que também morreram nesse acidente assim como a tripulação do Heli.
As buscas duraram vários dias, com trabalho exaustivo de forças da Marinha, e só foram recuperados dois corpos, sendo um do Dr. Leonardo Coimbra e o outro do Capitão de Cavalaria Carvalho de Andrade, cujo corpo esteve em câmara ardente passados uns dias na Sé de Bissau, onde eu tive oportunidade de lhe prestar as minhas últimas homenagens.
Três dias depois da tragédia do Heli, em 28 de Julho de 1970, morre Salazar, e as atenções da Comunicação Social, apesar de nunca terem sido muito activas, porque a censura escondia tudo e mais alguma coisa que se referisse à guerra, aos mortos e aos acidentes, mesmo assim passam para segundo plano o impacto com o desastre da Guiné e creio que foi mais um assunto que caiu no esquecimento.
Para terminar, eu que só queria contar a história da noite mais longa da minha recruta, acabei por me esticar desde o 4.º trimestre de 1967 até ao último de 1970. Aliás, sempre foram mais de 38 meses de tropa, dos quais mais de 25 na Guiné.
As minhas desculpas a quem teve a coragem e a paciência suficientes para ler todo este escrito. Obrigado.
Carlos Pinheiro
16.06.18
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18026: Estórias avulsas (88): Recordações da minha passagem por terras da Guiné, vaca morta junto ao arame farpado (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)