Novembro de 1966. A lenta viagem, quase dois dias desde Lisboa, não no Sud-Express mas no barato, ronceiro, suado e menos bem frequentado -- a começar por mim --, comboio dos emigrantes.
Chego a Paris, Austerlitz. A pequena mala de mão, o mapa da cidade, os pezinhos ao caminho, Rive Gauche, Quartier Latin, Rue Montarparnasse, Hotel du Ponant, 6º. Andar, quarto 29.
Fixar-me-ei um dia nesta cidade? Talvez. Distante das guerras de África que grassam em Portugal. Com uma francesa linda a tomar conta de mim, a orientar-me os passos, a levar-me pela mão, a inundar-me de prazeres gauleses e universais.
Duas menos vinte da noite. Deitado na cama fofa do hotel, escrevo sobre os primeiros dias em Paris. Cidade bonita, menos luz e menos contos de fada do que havia imaginado. Uma semana a andar por aqui, por acolá, a passear, quilómetros e quilómetros a pé, meio inebriado pelos vapores da capital francesa, respirando a primeira radical mudança de vida.
Nas décadas vindouras, retalhado pelo mundo, com menos surpresa, regressei mais quatro ou cinco vezes a Paris. Em 1994 com a mulher e os filhos pequeninos, para a Disneylândia e o mundo.
Em Notre Dame, ilha de la Cité, revenciar Deus, o apogeu dos vitrais, a pedra gótica flamejando por absides, abóbadas e coruchéus. Perto, na Sainte-Chapelle, outra vez a maravilha, os tons de azul do esplendor dos vitrais e a relíquia mais sagrada, a coroa de espinhos de Jesus Cristo recamada a ouro.
No museu de Orsay, outra vez o espanto diante de Renoir, Gaugin, Cézanne, Van Gogh, Matisse, Manet. No Museu Guimet, sete mil anos de História e arte chinesa, no museu Cernuschi, mais China clássica e antiga, nas livrarias do Quartier Latin, montanhas de livros raros sobre o mundo chinês.
Os pintores de ocasião em Montmartre, Place de Têtre, depois Pigalle, a vida louca das noites, cansado das caminhadas adormecer num hotelzinho, acenando para o can-can do Moulin Rouge. Champs Élysées, em busca do palacete 202 , residência aborrecida do Jacinto, de A Cidade e as Serras, a fantasia do nosso Eça. Aqui por perto, para os lados do Arco do Triunfo, decapitaram na guilhotina Luis XVI e Maria Antonieta.
Recordo palavras do norte-americano Ernest Hemingway: “Se temos a sorte de viver em Paris quando jovens, não importa onde se possa viver depois. Paris é uma festa.”
Pela festa, tudo vale a pena, a mão acariciando, ao de leve, as águas do Sena.
António Graça de Abreu
(*) Último poste da série > 5 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23143: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXI: Itália, Florença, 2015