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sábado, 14 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23262: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIII: Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005





EUA, Colorado, Parque Nacional da Mesa Verde



Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005

 por António Graça de Abreu (*)


[ (i) Docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 308 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 5/4/2022 ]



Estou no Colorado, e o gosto que isto me dá. Desde pequenino a olhar para esta América, dos filmes, do Bufalo Bill, do Daniel Boone, dos índios sioux e do Sitting Bull, do Mark Twain e dos Tom Sawyer e Huckleberry Finn, lá nas margens do rio Mississipi. E da Becky, a namoradinha do Tom, de quem eu tanto gostava. Depois, na faculdade, na cadeira de Literatura Norte-Americana, a ler, de empreitada, romance após romance os grandes escritores norte-americanos, Poe, Melville, Steinbeck, Faulkner, Hemingway. Era bom aluno, tinha boas notas.

Agora, 2005, o Colorado, as Montanhas Rochosas, a carícia no ouro do sol poente, pássaros escrevem poemas nas nuvens brancas, flores saúdam os peixes nas águas dos rios, um buda passeia descalço ao luar.

Em Mesa Verde, imensa a terra, os barrancos rasgando a penedia, a brisa dos quatro horizontes. Não há muitos anos aconteceu por aqui um pavoroso incêndio, ainda troncos calcinados espalhados nas encostas do vazio, casas de pedra abrigadas nas reentrâncias da falésia. Depois do dilúvio das línguas de fogo, por todo o lado a floresta renasce. Imperturbáveis, entre os arbustos ou nos ramos das árvores, esquilos dançam.
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Nota do editor:

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23261: Documentos (38): Boletim Informativo n.º 2 do Movimento das Forças Armadas na Guiné, de 17 de Junho de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 12 de Fevereiro de 2022:

O período 1974/75, a que chamo cinzento ou de má memória começou em Junho de 1974 e terminou em 25 de Novembro de 1975. Neste período estivemos perante o espectro de uma guerra civil e ao contrário do que alguns teóricos bem pensantes dizem, só somos um povo de brandos costumes até a mostarda chegar ao nariz, porque a partir daí...

Com o 25 de Abril, assistimos a uma multiplicação do número de revolucionários e cada um deles mais revolucionário que o outro. Em pouco tempo deixaram de existir militares que serviram o antigo Regime ou foram poucos os que o fizeram. Foi um autêntico milagre das rosas, da disciplina à hierarquia que durante anos nos habituámos a seguir, era-nos agora proposto mudar para um sistema de centralismo "democrático" do Leste, a ser aplicado à tropa, rapidamente e em força.

Dizia o Ex-Chanceler alemão Willy Brandt, quando questionado sobre o seu passado revolucionário que: Ser revolucionário até aos 28 anos de idade, é normal, faz parte da natureza humana, mas continuar a sê-lo depois dos 28, qualquer coisa está errada. Esta citação aplica-se que nem uma luva a muitos dos nossos militares na Metrópole e na Guiné.

Existem títulos e artigos no Boletim Informativo n. º 2 do MFA na Guiné que merecem ser lidos com atenção e em particular o da Reunião de trabalho do MFA na Guiné. Este tem duas referências ao Sr. Gen. Spínola, uma referência ao Sr. Gen. Galvão de Melo, a determinante da evolução será a relação capital-trabalho e que a revolução ora iniciada só poderá prosseguir numa base de aliança Povo-MFA e Governo e continua, assim a Comissão Coordenadora assoberbada de trabalho, não tem exercido as funções para que foi criada, fim de citação (depreende-se que fosse trabalho político), a Comissão Coordenadora (de 7 elementos) irá ter, além das funções de membros do Conselho de Estado a de se constituir em repartição de Relações Públicas e Acção Psicológica (espécie de 5.ª REP.) que funcionará ao nível do EMGFA - (cá está, 5.ª REP, já só falta atribuir o nome correcto) - , foi criada a Polícia de Informação Militar (PIM), no seio das FA começa a esboçar-se uma divisão entre esquerda e direita, falta de legislação própria para os saneamentos levanta-se novamente o problema da politização das FA etc, etc, etc.

Das referências e títulos atrás citados, há pelo menos dois que se destacam, a Polícia de Informação Militar (PIM) e a espécie de 5.ª REP. - (a Comissão Coordenadora assoberbada de trabalho), trata-se de uma referência a trabalho político intenso desenvolvido e com uma linha política clara, que poderá conduzir a uma caça às bruxas. Para mim um simples leitor do Jornal República, as cito - (sugestões para o trabalho a realizar pelas Delegações do MFA) -, e outros Títulos desenvolvidos que constavam do Boletim Informativo n.º 2 do MFA na Guiné, era areia demais para a minha camioneta, agora sim, já não restavam dúvidas, daqui para a frente seria sempre cumprir e fazer cumprir as ordens do Comando. Mesmo assim, lá guardei estes papéis como recordação, mas estava longe de imaginar o poder e a influência que a 5.ª Divisão viria a ter na Guiné e na Metrópole. Ainda bem que o fiz, hoje dá para os ler, olhar para trás e ver como era.

Espero que a publicação destes boletins sirva para mostrar como decorreu o período de negociações e transferência de soberania na Guiné e porque aconteceram algumas quebras na cadeia de Comando que afectou a hierarquia e a disciplina em algumas Unidades, com efeitos negativos na imagem das NT.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur. Mil. Inf.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23187: Documentos (37): Boletim Informativo n.º 1 do Movimento das Forças Armadas na Guiné, de 1 de Junho de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P23260: Consultório militar do José Martins (73): Procura-se camaradas do 1.º Cabo Atirador do Pel Caç Nat 58, Joaquim da Silva Magalhães, ferido mortalmente numa emboscada no itinerário Canjambari-Jumbembem, no dia 30 de Agosto de 1969

1. Mensagem de Joel Magalhães, com data de 26 de Abril de 2020, sobrinho do 1.º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, natural de Santo Tirso, caído em combate no itinerário Canjambari-Jumbembem no dia 30 de Agosto de 1969:

Olá, muito boa noite.
Meu nome é Joel Magalhães.
Com as datas do 25 de abril sempre me vem à memória o meu tio Joaquim da Silva Magalhães, natural de Santo Tirso, Primeiro Cabo, morto em combate na guerra do ultramar, mais concretamente na Guiné.
A família apenas teve a informação na altura que ele terá sido morto numa emboscada! E hoje as minhas pesquisas levou-me até si.
Chegou a conviver com ele, ou conhece alguém que tenha convivido ou presenciado o acontecimento que levou a morte dele?
Desde já lhe digo que admiro e louvo o seu excelente trabalho e arquivos que vai partilhando.

Atentamente,
Joel Magalhães


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2. Mensagem do nosso especialista em Assuntos Militares, José Martins, em 27 de Abril:

Boa tarde para os senhores administradores.
Cá recebi a incumbência, que se me afigura difícil.
Os pelotões, salvo raríssimas exceções, não têm História da Unidade, quanto mais Pelotões de Caçadores Nativos.
Parto apenas com os dados do Volume 8, portanto, muito pouco.
Na informação não tem indicação de unidade a que estava adstrita operacionalmente.
Não há mais mortos nesta operação. Nesta data só em Fulacunda, numa unidade de comandos.
Resta, com base nos meus resumos, o COP 3, um BART e respetiva CART e uma CART independente.

Hoje já não dá para ir ao AHM, veremos amanhã.
Abraços.


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3. Nova mensagem do José Martins, esta com data de 29 de Abril:

Boa tarde
Viagem, em vão, até ao Arquivo Histórico.
Junto texto sobre o que consegui, consultando os elementos que tenho disponíveis em casa, os livros da CECA.

Abraço
Zé Martins


O Pelotão de Caçadores Nativos n.º 58, do Comando Territorial Independente da Guiné, foi criado em Maio de 1967, estando dependente administrativamente do Quartel-General de Bissau e, operacionalmente, da unidade que comandava o sector em que o mesmo se integrava geograficamente.
Foi constituído em Bissau e, em Junho de 1967, foi deslocado para Cacheu, em Agosto desse ano seguiu para Teixeira Pinto onde se manteve até Agosto de 1968, altura em que regressou a Cacheu. Em Abril de 1969 foi para Canjambari e em Novembro desse ano de 1969 foi para Infandre, onde se manteve até Agosto de 1974, quando foi dissolvido.

Este texto surge por nos ter sido solicitado, pelo Joel Magalhães, informação sobre a morte em combate do seu tio e nosso camarada 1.º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, NM 01779368, que estava no Pelotão de Caçadores n.º 58, na altura estava em Canjambari, e foi numa emboscada entre Canjambari e Jumbembem.

Numa pesquisa que efectuei nos meus arquivos, tomei nota de unidades a nível de Batalhão e Companhia que poderiam ter estado na área, e consultei as respectivas Histórias da Unidade, no Arquivo Histórico Militar. Nem sempre se tem sorte, e desta vez foi isso que aconteceu: nada encontrei, que pudesse esclarecer ou dar uma pista.
Desta forma, se algum camarada souber qual o Batalhão e/ou Companhia que tenham estado no sector onde se enquadrava Canjambari, nos informe, a fim de se tentar, como sempre fazemos, esclarecer quem se nos dirige, pedindo informações.

Odivelas, 29 de Abril de 2022
José Marcelino Martins


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4. Comentário do editor CV:

Como refere o José Martins, o Pel Caç Nat 58 esteve destacado em Canjambari entre Abril e Novembro de 1969.
Consultando o 3.º Volume da CECA - Dispositivo das Nossas Forças - Guiné, verifiquei que a CCAÇ 2533 foi deslocada para Canjambari em Junho de 1969, onde se manteve até ao mês de Novembro do mesmo ano, altura em que foi substituída pela CCAÇ 2681.
Salvo melhor opinião, é muito provável que o Pel Caç Nat 58 estivesse adstrito à 2533 e que o seu pessoal se lembre desta emboscada, ocorrida em Agosto, da qual resultou a morte do nosso camarada Joaquim Magalhães.
Talvez o nosso camarada Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da 2533, nos possa dar uma ajuda.

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22487: Consultório militar do José Martins (72): Quem ainda não recebeu o cartão de antigo combatente, por favor contacte o Balcão Único da Defesa... Mais de 200 mil já receberam

Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Uns dias passados na Biblioteca Nacional deram-me oportunidade para reler e confirmar o valor deste trabalho de Eva Kipp, uma holandesa que andou enfronhada em vários projetos de divulgação da cultura tradicional da Guiné. Sente-se à vista desarmada o seu deslumbramento pela cultura bijagó, nomeadamente nas vertentes da antropologia, etnografia e etnologia. Trata-se de uma revisitação, em 2011 publicou-se aqui no blogue uma recensão que saudava o trabalho de Eva Kipp, ele era e é bem merecedor de ser reeditado.

Um abraço do
Mário



Revisitar um belo texto etnográfico e etnológico, com fotografia ímpar:
“Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp


Beja Santos

Em 2011, aqui se fez uma primeira menção ao livro de uma perita holandesa que colaborou com o Governo da Guiné-Bissau em vários projetos de divulgação da cultura da Guiné com publicação da Editorial Inquérito, 1994. Reler pode significar nova iluminação, desapontamento, descoberta de uma apreciação excessiva ou injusta. Confesso-vos que valeu a pena voltar ao livro de Eva Kipp: pela organização, pelo deslumbramento, pelas pistas que abre sobre a arte dos Bijagós, a sua religião, as suas pinturas murais, as suas práticas funerárias, a vivência da mulher guineense no trabalho.[1]

Quanto à arte dos Bijagós, diz a autora que segundo uma lenda Bijagó, a vida começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre e, no início da vida, foi criada a primeira mulher – Orango, que era o mundo. Uma lenda que dá uma interpretação para o influente papel da mulher na sociedade Bijagó. A arte Bijagó está estritamente ligada à religião. A representação dos Irãs encontra especial relevo na escultura em madeira, a qual se alarga à representação de outras cenas da vida quotidiana e mesmo à produção de objetos de uso comum, caso de colheres ou bancos.

Uma religião que assenta nos Irãs e nos seus santuários. Os Irãs Grandes, chamados Irãs do Chão, são os mais poderosos da tabanca. Além de forma humana, eles são multiformes. O Irã Grande da tabanca de Entiorp, em Canhabaque, por exemplo, tem uma forma abstrata. Faz lembrar uma panela com a tampa decorada e envolvida num pano vermelho.

Em princípio, os Irãs Grandes devem estar na chamada “baloba dos defuntos”, que é o santuário das mulheres. Ficam depositados em casa dos régulos por motivos de segurança. Com o Irã Grande da tabanca é possível realizar muitas cerimónias pessoais, como para pedir que alguém tenha saúde ou sucesso no trabalho.

Não se pode falar de arte Bijagó sem relevar as suas pinturas murais. É sobretudo nas ilhas de Canhabaque, Bubaque e Formosa que existem pinturas murais em santuários e em casas. Na atualidade estas pinturas podem ser encontradas sobretudo nas balobas (santuários) e nelas retratam-se cenas do dia-a-dia da sociedade local. Assim, encontramos imagens de Irãs, feiticeiros, defuntos e animais.

O pequeno fanado é um acontecimento iniciático que tem uma profunda envolvente religiosa. Em cada período de seis ou sete anos, realiza-se nas ilhas dos Bijagós o fanado das raparigas. São cerimónias de iniciação em que participam raparigas de idade compreendida entre os 17 e os 25 anos. Essas raparigas são chamadas aos “defuntos”, pois nessa cerimónia vão receber a reencarnação do espírito de uma pessoa já falecida.

Continuando nos aspetos religiosos, Eva Kipp refere os djambacós ou curandeiros. São mediadores procurados por pessoas que precisam de conselho, possuem artes de vidência e poderes de curandeiro. Realizam cerimónias com conchas, orientam sacrifícios de animais; casos há em que os djambacós praticam a cartomancia ou prescrevem tratamentos para pessoas doentes.

Os aspetos da reencarnação são crença inabalável das sociedades animistas da Guiné-Bissau, pois as pessoas continuam, para além da morte, a participar na vida diária dos que permanecem vivos. Eva Kipp estende estas considerações de índole religiosa que abarcam, por exemplo, o funeral de um Homem Grande, o fanado, o Kussundé, que é dança tradicional de algumas etnias animistas, e não esquece o papel dos “mouros”, que são os sacerdotes muçulmanos. No Islamismo, a religião está no centro da organização social, e ela refere a mesquita, a peregrinação a Meca para a obtenção do título de El Hadj e o jejum por altura do Ramadão, tudo está presente na vida diária do crente muçulmano. Aliás, os mais novos são induzidos à aprendizagem dos versículos do Corão em escolas. Nessas escolas corânicas inicia-se a criança. A criança deverá fazer os dois níveis que compõem a escola corânica, ela memoriza, através da repetição cantada, os versículos e aprende a escrever os mesmos em curiosas tábuas. Os mouros mais famosos reúnem em si o filósofo, o conselheiro familiar e político, o curandeiro e a autoridade religiosa.

Na recensão aqui publicada em 2011 concluiu-se dizendo que se tratava de um livro de grande valor fotográfico e que bem merecia ser reeditado. Mantém-se o apelo, é evidente que tem continuado a investigação da sociedade dos Bijagós mas há aspetos essenciais inquestionáveis: na religiosidade, na arte, no papel do djambacó ou curandeiro, nas práticas funerárias, até no fanado.

Durante muito tempo correu a lenda de que a sociedade Bijagó era patriarcal, hoje sabe-se que não é assim, a despeito da mulher Bijagó ter um desempenho relevante e incomparável face às outras etnias. No quadro geral da mulher guineense no trabalho, quando a família é poligâmica, é a mulher mais velha a dona da casa, é ela que atribui, no dia anterior, a distribuição das tarefas pelas outras. Mas na sociedade bijagó é bem claro que a mulher não goza da submissão das mulheres das outras etnias, tem plena liberdade, por exemplo, de manifestar o desejo de divórcio, que exterioriza pondo os tarecos do marido à porta, é deste modo que se torna evidente no local a sua decisão.

Não se pode estudar a sociedade Bijagó sem dar atenção ao belíssimo trabalho de Eva Kipp. E ponto final.


Barco Bijagó: estatueta de Bubaque.
O Irã Grande da tabanca de Angura, em Canhabaque, rodeado de objetos sagrados. À esquerda está o Irã de Mão do régulo.
Em frente do Nan, o régulo da tabanca de Angura com o tridente numa mão e o Irã de Mão na outra.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 7 DE JANEIRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23258: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte II

1. Parte II da publicação do texto de memórias intitulado "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte II

L
ogo na primeira tarde que cheguei à Granja, deparei-me com uma situação que em Portugal muito se comentava, ou seja, que o Português batia com facilidade no Africano. Vi um Técnico de origem Cabo Verdiana, com uma verdasca, fustigando as costas de dois jovens que se encontravam transplantando arroz. Na Guiné por essa época, o arroz era primeiro semeado em viveiros e só depois era transplantado no local definitivo neste caso, na bolanha. Nos tempos atuais não sei como é cultivado.

Ao assistir aquela sena, gritei bem alto pedindo para que parasse, caso contrário eu teria que participar dele. O Técnico em causa, respondeu-me que só daquele modo trabalhavam como devia ser. Eu respondi-lhe que à minha frente não voltaria a acontecer, acrescentando que na metrópole se dizia que eram os brancos que batiam nos negros em África, mas aqui na Guiné, afinal, eram os naturais de Cabo Verde a bater neles. Pediu desculpas acrescentando que não voltaria a acontecer. Passado este episódio, tivemos um companheirismo muito grande até ao último dia que por aquele lugar passei. Acrescento que, por várias vezes fui convidado e aceitei, ir a casa dele que ficava no Bairro de Santa Luzia.  Acrescento também, apenas o Engenheiro-Chefe era banco, por esta altura na Granja.

A minha ida para a Granja, proporcionou-me criar amizades com civis, e principalmente com os meus colegas técnicos com os quais muito sobre a vida na Guiné vim a saber.

Este meu estágio veio a ser interrompido em Junho desse ano (1969), praticamente duas semanas depois de o ter iniciado. Fui por urgente necessidade dos serviços de saúde para o Sul da Guiné, mais concretamente para Buba, durante cerca de quinze dias.

Fui até ao aeroporto apanhar um héli destinado a levar-me para aquele local.
A viagem foi magnífica. O piloto fez questão de subir ou descer de altitude de maneira a eu tomar melhor noção sobre a paisagem florestal e pastagens daqueles locais. Eu tinha-lhe dito que na vida civil era Técnico Agrícola.

Cheguei a Buba e logo me fui apresentar ao Comando local e, de seguida, aos Médicos que na altura lá se encontravam.
A azáfama era grande naquele aquartelamento, tanto no enorme número de militares de várias especialidades (tais como Fuzileiros, Comandos, Páras, Cavalaria e Infantaria). Aqui conheci os Majores que no ano seguinte seriam assassinados na zona militar do meu Batalhão.

Além daqueles oficiais que vieram a ficar muito conhecidos pelo infortúnio que lhes aconteceu, também o Comandante Alpoim Calvão se encontrava neste Quartel, e um Capitão de uma Companhia Independente que eu tinha conhecido nas Caldas da Rainha, concretamente na 5.ª Companhia de Instrução, em Outubro de 1967, pela altura da minha recruta. Eu, nas Caldas da Rainha, estive na 6.ª Companhia comandada pelo Capitão Vasco Lourenço.

Este Capitão acabaria por ser castigado com vinte dias de prisão mais os seus Furriéis Milicianos, estes com quinze dias de prisão cada um. Tudo isto aconteceu logo uns dias a seguir à minha chegada a Buba. Vi chegar o General Spínola a quem se juntou logo o Régulo local. Este falou com o General acerca de umas mulheres que se encontravam retidas no Quartel. Elas tinham sido capturadas pela Companhia daquele Capitão que seria castigado com vinte dias de prisão por ter consentido que os seus Furriéis tivessem abusado sexualmente delas. Os Furriéis Milicianos foram castigados com quinze dias de prisão.

A minha primeira noite em Buba poderia ter sido fatal para mim. Éramos muitos Furriéis naquele abrigo. Todos os espaços livres estavam ocupados com as nossas camas. Eu, habituado a dormir descansado em Bissau, cedo peguei no sono. Por volta das duas e pouco da manhã, fui de repente acordado por um dos Furriéis para saltar da cama e me dirigir ao abrigo interno que na camarata se encontrava, mas, que eu ainda desconhecia. O quartel estava a ser atacado naquele momento.

Ensonado, não reparei que o abrigo era baixo demais para a minha altura e, como resulltado, bati com a minha cabeça no topo do muro da entrada caindo para trás desmaiado. Não mais dormi como necessitava em todos os restantes dias que ali permaneci.

O número de civis que lá se encontravam para a desmatação da estrada Buba/Aldeia Formosa era grande. Quando na segunda noite estive de serviço ao posto médico e, ao encaminhar-me para este, pisei vários homens que dormiam no chão ao ar livre em cima de papelões.

Tive aqui também a minha primeira experiência com alguém à beira da morte. Numa destas noites aconteceu que, tendo entrado no posto médico uma jovem em estado muito adiantado de gravidez e em coma, não sendo possível evacuá-la para o Hospital em Bissau pelo adiantado da hora, tentou-se que ela aguentasse até ao amanhecer. Entrei naquele turno por volta das duas horas da madrugada. Tive como principal missão fazer tudo o que fosse possível para que ela respirasse. Tinha apenas para isso uma ventosa para lhe extrair da boca o aglomerado de expetoração. Eram cerca de pouco mais das três da manhã quando a senti estremecer e verifiquei na quantidade de urina que corria debaixo do seu corpo. Uma lágrima corria-lhe dos olhos ao mesmo tempo que o a criança dava saltos na barriga da sua mãe já moribunda

Todo eu esmoreci. Chorei pela minha incapacidade para a salvar, ou pelo menos à criança que ali vi morrendo aos poucos naquela barriga inerte. Esta imagem ainda agora aviva a minha memória e a minha sensibilidade. Ajudou-me, porém, a ganhar estofo para poder vir a enfrentar outros casos traumáticos que poderia encontrar durante a guerra que se travava.

Nestes dias, e, enquanto lá permaneci, nunca tive um jantar à mesma hora. Evitava-se assim que do outro lado da bolanha nos enviassem uma morteirada para a messe como já tinha acontecido noutra altura. Outro caso peculiar naquele Quartel de Buba, foi o de, para tomarmos banho, só ser possível com a ajuda de um copo ou outro utensilio parecido para se retirar a água de um bidão e tantas vezes cheia de ferrugem, lançando-a pela cabeça e percorrendo o resto do corpo. Deste modo sentíamo-nos frescos e ferrugentos. No entanto, Buba situa-se na margem direita do Rio Grande de Buba com o seu cais muito falado e escrito de local de embarque de escravos. As suas águas eram salobras e, como tal, impróprias para tomarmos banhos.

Enquanto durou a desmatação da estrada, o nosso trabalho no posto médico foi intenso. Todos os dias as tropas e a população sofriam emboscadas. Os feridos eram sempre muitos. O material sanitário principalmente agulhas eram escassas. Foram uns dias para mim de grande experiência que me ajudou durante toda a restante comissão.

Aqui em Buba, vim a conhecer um Furriel Miliciano Enfermeiro natural da Freguesia da Lousa do Concelho de Moncorvo e, portanto, vizinho do meu concelho (Vila Nova de Foz Côa), que me pediu que enquanto eu lá estivesse e se acaso ele não regressasse vivo de alguma das patrulhas que quase diariamente efetuava, quando eu regressasse ao Continente, fosse contar à sua família como era o dia-a-dia dele para tal acontecer. Estranho pedido me era feito! Até aos dias de hoje não mais soube deste meu amigo que me ajudou a enfrentar o dia-a-dia naquele local onde praticamente todos os dias havia ataques ao aquartelamento. Durante pouco mais de duas semanas que aqui permaneci, muito trabalho tivemos (Médicos e Enfermeiros) com principalmente civis que lá se encontravam a trabalhar na desmatação da estrada que ligava este local a Aldeia Formosa. Um dia, verificamos que o material de pensos, seringas e agulhas estavam na penúria. Tive que deixar de cozer alguns golpes por falta de agulhas. A pele das pernas dos nativos era de tal modo dura, que muitas vezes, o bico da agulha se partia. Estes trabalhadores foram durante aqueles dias o alvo preferido da guerrilha. Eram dezenas de feridos diários.

Com o fim dos trabalhos de desmatação, deixou de ser necessária a minha permanência em Buba. Tratei de me escapulir o mais depressa possível daquele ambiente. Para tal, dirigi-me a um dos Oficiais do CAOP (Comando de Agrupamento Operacional que lá naquela altura se encontrava e que no Ano seguinte viriam a ser assassinados numa reunião com o PAIGC que relatarei na altura devida) que me disse para sondar os vários pilotos que lá diariamente se encontravam. Só não vim de boleia num Fiat (avião de combate) porque o piloto não tinha paraquedas para mim pois caso contrário eu tinha arriscado.

Um dos pilotos que sondei, indicou-me que fosse falar com o Coronel Paraquedista Alcino que iria para Bissau naquela manhã. Assim o fiz. Este senhor não hesitou em me dar boleia.
Durante o percurso e ao sobrevoarmos a povoação de Tite, o Coronel pediu ao piloto para baixar um pouco de modo a verificar a razão de fumos que pairavam no ar. Comentou que poderia ser rescaldo de algum ataque da guerrilha.

O Coronel Alcino aproveitou para me pregar uma partida. Pediu ao piloto para nos colocar de cabeça para baixo dando umas quatro voltas. Eu ia deitando as tripas fora. Não vomitei, mas devo ter ficado de tal modo pálido que ele pediu ao piloto para nivelar o voo.

Chegados ao aeroporto de Bissau, agradeci ao Coronel a boleia e ofereci-me para lhe levar ao meu ombro a G3 que ele transportava. Agradeceu e respondeu-me que naquele momento eu nem com as minhas pernas podia quanto mais com a G3! Voltei a encontrá-lo meses mais tarde no Pelundo. Homem extraordinário este!

De regresso a Bissau e ao Quartel Seiscentos, o meu dia-a-dia voltou a ter a rotina de na parte da manhã desenvolvendo serviços na enfermaria e ajudando o médico nas consultas, bem como orientar o material sanitário ao meu cuidado e repor as faltas de medicamentos necessários para os militares. De tarde, uma viatura militar continuou-me a levar à Granja Agrícola.

Durante os meses que aqui passei estagiando, fui aumentando os meus conhecimentos sobre as culturas tropicais. Também granjeei muitas amizades de naturais da Guiné e de descendentes de Cabo Verde. Praticamente, os meus contactos passaram a ser de civis, que ao fim de semana me convidavam para almoçar ou simplesmente lanchar.
Um destes era o chefe da secretaria da Granja na altura. Muitos fins-de-semana passei na sua companhia mais do meu colega de nome Elói. Este meu colega, após a independência da Guiné, veio trabalhar para Lisboa e no Ministério da Agricultura pois manteve a nacionalidade Portuguesa. Sei que voltou a visitar a sua terra Natal só após a saída de Luís Cabral da Guiné. Neste seu regresso, contou-me novidades que eu tive dificuldade em acreditar no que me dizia.
– Queres saber Figuinha que o chefe da secretaria da Granja em quem nós tanto tínhamos confiança com as nossas conversas era informador do PAIGC? - Eu fiquei aparvalhado!

Um outro colega e que me forneceu muitos conhecimentos durante todo o tempo que estive na Guiné foi o É Mê. Quando fui para o Pelundo ele foi para Teixeira Pinto chefiar a Granja local. Até ao fim da comissão mantivemos contactos. Apesar de ser familiar de Amílcar Cabral, sempre que necessitava de ir a Bissau procurava fazê-lo quando eu ia também na escolta. Há poucos anos vim a saber que tem casa na zona do Montijo/Barreiro.

Outros colegas vieram para Portugal logo após a Independência da Guiné. Um deles veio até viver para a margem sul perto da minha casa e aqui morreu. Mas, houve um muito especial e dos mais novos que lá conheci. No dia anterior ao meu embarque para Lisboa, encontrámo-nos num café onde ele me disse que brevemente nos iríamos de novo encontrar em Portugal. Achei naquele momento que não passava de mais uma das suas graçolas. Porém, passado pouco mais de um ano de eu ter chegado a Lisboa, o Borges Galvão estava junto de mim trabalhando no Instituto de Cereais.

Este Borges Galvão tinha um irmão que foi o primeiro representante do PAIGC na antiga Jugoslávia. O pai deles possuía uma farmácia em Bissau. Foi uma grande alegria minha tê-lo reencontrado. Brincalhão como era, havia sempre boa disposição junto dele. Recordo que um dia após ter vindo dum serviço externo na zona da Cidade de Lamego, me fez saber que os burros daquelas paragens não gostavam de ver pretos. Dei uma gargalhada e preguntei-lhe as razões daquele disparate. Então com um ar muito sério contou-me que junto a um ribeiro, perto de uma aldeia onde tinha que ir fazer um inquérito relacionado com a panificação, máquinas existentes, cereais utilizados, inquéritos estes, que decorreram em todo o País, verificou que ao tentar passar um pequeno ribeiro, um burro, que se encontrava a pastar, deu em correr em direção a ele zurrando com ar ameaçador. Então recuou e pensou que o dito burro poderia ter sido ensinado a morder aos pretos pelo dono. Que o dono do burro talvez tivesse tido um filho que por ventura tivesse morrido na Guiné, e, como tal tenha ensinado o burro a morder os pretos que lhe aparecessem pela frente. O Borges contou esta história com um ar tão sério que deu para galhofa durante meses.

Ambos fizemos na altura parte do Instituto dos Cereais e, a pedido do Governo, pretendeu-se ter informações precisas sobre a Indústria de Panificação. Tal como o Borges, eu andei também a fazer este levantamento.

Após a Independência da Guiné, o Borges regressou de novo para lá. A sua jovem mulher foi a primeira Ministra da Educação da Guiné-Bissau Independente.
Como um grande jogador que o Borges Galvão sempre foi, segundo me tinha contado, antes de vir para Lisboa trabalhar, limpou do seu ficheiro que tinha no arquivo da Granja em Bissau, as informações que ele tinha escrito de trabalhadores da Granja Agrícola de Bafatá onde esteve com responsável. O Borges não dava um passo em falso. A vida deste meu colega e amigo passou pela América e Paris pelo menos que eu saiba, conforme os cargos políticos que a mulher ia tendo. Perdi-lhe o rasto desde o ano dois mil, por força do encerramento da EPAC onde eu trabalhava. Deste modo consegui durante vários anos ser informado sobre o que se ia passando naquele País.

Voltando à minha atividade militar, enquanto permaneci em Santa Luzia no Quartel Seiscentos, aconteceu aqui um grande incêndio com muitos rebentamentos de granadas e a destruição de instalações lá existentes. O acontecimento deu-se a seguir ao almoço, encontrava-me no quarto que ocupava com mais dois Furriéis Milicianos e um Segundo Sargento Corneteiro. Os Furriéis eram o Martins (Vaguemestre) e o Wilson Ribeiro meu colega civil de profissão. Os estrondos eram tão fortes que o edifício estremecia a cada rebentamento.
O primeiro a zarpar dali foi o dito Sargento que numa corrida só deve ter parado no centro da Cidade de Bissau. Nós os três tivemos mais calma e zarpamos na mesma para a Cidade.

Por este quartel passavam muitas companhias de militares de regresso ao Continente. Aqui permaneciam durante tempos elementos do quadro permanente encargados das comissões liquidatárias de Batalhões ou de Companhias independentes.

Conheci de perto alguns primeiros-sargentos preocupados com os acertos de contas das respetivas unidades a que pertenciam. Constou-se que foi um destes casos que por descuido ou não, deixou no cesto de papéis um cigarro mal apagado. Parecia que o quartel estava a sofrer um bombardeamento. Saí como outros demais para a cidade não fosse cair uma granada nos aposentos onde me encontrava. O General Spínola apareceu e mandou logo a polícia militar investigar o caso. Outros detalhes não fiquei a saber ou a minha memória pode falhar e não escrever a verdade.

Como o material sanitário do quartel estava sobe a minha responsabilidade e as movimentações eram muitas de outros Furriéis Enfermeiros que por lá passavam, sempre que me ausentava de tarde para a Granja Agrícola ficava tenso. Aconteceu que aquando tive que me preparar para ir juntar-me aos restantes elementos da Companhia que aos poucos foram indo para o Pelundo, tive que fazer ajustes no material e, para tal, contei com a boa ajuda do pessoal do Material Sanitário de Bissau que se encontrava junto ao Hospital Militar.

Durante este período, houve um caso de saúde de um militar duma Companhia que se preparava para regressar ao Continente que me deixou perplexo e ao Médico também. Apresentou-se queixoso dos órgãos genitais e cheio de febre. O Médico solicitou para baixar as calças e tirar as cuecas e, nesse momento, um cheiro fedorento transmitiu do seu corpo. Eu nunca pensei ver de perto um caso daqueles. O Médico que tinha a especialidade de Urologia disse-me que nunca tinha visto algo igual. De um dos lados dos testículos apresentava um buracão de tecidos podres. O Médico perguntou-lhe como era possível deixar-se chegar aquele estado, ainda para mais homem casado. Chamou-lhe de porco para cima. Este caso foi um alerta para mim dos perigos de doenças sexuais em climas quentes e húmidos.

Pelos conhecimentos que adquiri ao longo da comissão, creio ser uma das causas de muitos militares com stress dessa época devido a casos que nunca os conseguiram curar devidamente. Tive casos em que já não tinha antibióticos capazes de os curar. Infelizmente muitos destes casos já foram do Continente para lá.

Durante os meses que permaneci em Bissau e, também em outros momentos que do mato tive que vir a esta cidade, fui encontrando um ou outro conterrâneo. Um deles, quase todos os fins de semana me procurava para lhe arranjar uns xaropes que lhe completassem deficiências da alimentação que tinha na sua unidade. O Carlos (conhecido em Foz Côa mais por a alcunha de Fatinário) muito meu amigo, estava encargado de vigiar uns militares nossos presos que ao fim de semana lhes era permitido arejar e dar um passeio fora da prisão.

Outros encontrei de vez em quando como seja o Adriano (conhecido pelo Pote) o Sequeirinha, o filho da Ratoeira, o Aventino Guerra e um dos Maximinos que era filho de um pastor de ovelhas.

Ainda durante o tempo que passei pela Granja, vim a saber lá que Amílcar Cabral durante a sua permanência na chefia e na sua construção, foi desviando cimento que era destinado à construção de casas para os seus trabalhadores e, principalmente, para as Granjas de Bafatá e Teixeira Pinto. Este cimento foi utilizado na construção de abrigos subterrâneos nas duas matas mais densas da Guiné.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 10 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23253: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte I

Guiné 61/74 - P23257: Convívios (926): 35.º Encontro do pessoal da CART 3494/BCAÇ 3873, dia 11 de Junho de 2022, na Carapinheira, Montemor-O-Velho (Sousa de Castro)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23246: Convívios (925): 50.º Convívio do pessoal da CCAÇ 414 (Cabo Verde, 1963/64 e Guiné, 1964/65), a levar a efeito no próximo dia 29 de Maio em Aveiro (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23256: Ser solidário (245): Convite para a apresentação do livro "Terra de Afetos - Um Tributo à Guiné-Bissau", por Joana Benzinho, dia 21 de Maio de 2022, pelas 15h45, no Mosteiro de Odivelas. A receita da venda deste livro reverte para a ONGD Afectos com Letras


Caras e Caros Amigos,
Dia 21 de maio será lançado o livro "Terra de Afetos - Um tributo à Guiné-Bissau", de Joana Benzinho, cuja receita da venda reverte para a ONGD Afectos com Letras.
O evento decorre no Mosteiro de Odivelas às 15h45, com apresentação da Jornalista Sofia Pinto Coelho, autora do prefácio.
Contamos com a vossa presença.

Cumprimentos solidários.



Associação Afectos com Letras, ONGD
Rua Engº Guilherme Santos, 2
Escoural , 3100-336 Pombal
NIF 509301878
tel - 91 87 86 792
venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23118: Ser solidário (244): Coro Municipal e população da Lourinhã, 27 de março de 2022, 11h00: Orar pela paz na Ucrânia

Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Revelou-se bastante esclarecedora a leitura do livro de Marcello Caetano O Conselho Ultramarino, Esboço da sua História, Agência Geral do Ultramar, 1967. O investigador explica-nos de forma iniludível como Fontes Pereira de Melo criou um órgão de grande autoridade e abrangência, escolheu mesmo vogais efetivos e extraordinários de gabarito, e daí dizer-se que de 1854 a 1868 o Conselho Ultramarino viveu um período distintíssimo, obviamente que suscitando invejas políticas e muitas tensões pelos pareceres emanados e a legislação que sugeria. Como sempre acontece, os seus inimigos assim que chegaram ao poder puseram-no em coma induzido. E é por isso que dá gosto folhear estes volumes cheios de memórias, pareceres, estudos, a generalidade deles direcionados para Angola mas também percorrendo as diferentes parcelas do Império, aqui se encontram surpresas que qualquer investigador da área imperial não pode ficar indiferente, basta ver esta Guiné, seguramente a colónia mais pobrezinha de estudos, pareceres e memórias.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República Colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial. E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este Conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê?

Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial. Como é evidente, este órgão deverá ter provocado imensos engulhos e reticências, em setembro de 1868 foi extinto e criado em sua substituição a Junta Consultiva do Ultramar. Com a I República, surgirá o Conselho Colonial (1911 a 1926).

Esclarecido o que é a parte oficial da não oficial, dá-se agora conta de alguma matéria que possa ser considerada útil para o estudo da Guiné, e que não venha noutras fontes documentais.

Em 22 de dezembro de 1857, João Severiano Duarte Ferreira, Diretor da Alfândega de Bissau, dirige-se ao Sr. Visconde de Sá da Bandeira que o encarregara de apresentar algumas reflexões relativas ao comércio da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência e meios a empregar que obstem à sua completa aniquilação. Diz ele:
“No tempo em que de Bissau e Cacheu se exportavam escravos, pouca ou nenhuma importância se dava naquelas localidades ao comércio lícito, porque dois ou três negociantes que ali residiam só tratavam de obter dos estrangeiros a maior soma possível de mercadorias próprias para a compra de escravos, com o fim de embarcar estes por sua conta para a ilha de Cuba e para os portos do Brasil, ou para os venderem aos navios que iam ali buscá-los. Os lucros resultantes deste tráfico inumano eram enormes, e aumentavam na razão direta das dificuldades no transporte dos negros. Em 1842, cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu, e foi então que os negociantes olharam com mais alguma circunspeção para o comércio lícito que até ali tinham, por assim dizer, desprezado. O Governo da Província ignorava completamente quanto dizia respeito a Bissau, Cacheu e dependências, porque poucos dos governadores ali iam, e os que iam, tão pouco tempo ali se demoravam, que retiravam tão instruídos das coisas da Guiné como tinham ido; e eis por que nem propunham ao Governo da Metrópole as medidas que convinham adotar para o desenvolvimento comercial e agrícola daquela parte dos domínios de África.

Quando o comércio lícito entrou a chamar a Bissau e a Cacheu maior soma de navios estrangeiros, e exportação, que até ali tinha sido clandestina, por ser de escravos, se tornou patente e visível, por ser de produtos do país, o Governo Provincial fixou para ali com mais cuidado a sua atenção. Mandou a Bissau empregados da sua confiança e orientou-se quanto lhe foi possível na importância comercial daqueles pontos; mas no desejo de remediar o mal até ali feito, de conceder por quatro o que vali pelo menos doze, caiu no extremo oposto exigindo mais do que realmente se podia e devia exigir pelos direitos de exportação e consumo.

Fala-se geralmente em comércio português de Bissau e Cacheu, quanto a mim aquele comércio é mais estrangeiro do que nacional, porque os negociantes portugueses residentes naqueles pontos não são outra coisa mais do que caixeiros das casas comerciais e inglesas, americanas, francesas e belgas, que autorizam os seus agentes a deixarem a crédito a diversos os carregamentos que para ali mandam”
.

Nesta detalhada memória para o Visconde de Sá da Bandeira, o Sr. João Severiano Duarte Ferreira tudo faz para ser minucioso: como se processa o comércio de Bissau, Cacheu e dependências; a natureza do crédito dos negociantes estrangeiros, em que os negociantes de Bissau e Cacheu chegam a dar como garantia as casas das embarcações, os escravos, tudo o que possuem; as enormes despesas inerentes ao comércio ao longo da costa correm todas por conta e risco dos negociantes portugueses ali residentes, são um sorvedor dos lucros; e temos a exorbitância dos direitos de exportação e consumo, que coloca os comerciantes portugueses em desvantagem com os comerciantes estrangeiros das colónias vizinhas, etc.

E em jeito de despedida, faz sugestões a Sá da Bandeira:
“No meu entender, a mancarra devia não só ser livre de direito de saída, mas ainda estabelecer-se um prémio honorífico para aquele negociante que maior porção dela exportasse nos portos de Bissau e Cacheu. Uma pauta ou tabela de direitos, tal qual deve ser, não é trabalho de poucos dias, nem talvez de um só indivíduo, deve ser muito estudada e meditada, devem-se consultar documentos oficiais e ouvir as pessoas competentes. Talvez este trabalho, entregue a uma comissão em Bissau, vindo os trabalhos dela relatados pelo governador-geral da Província, e finalmente vista e examinada aqui por pessoas entendidas na matéria e conhecedoras das localidades, desse o resultado que se deseja. Deus guarde a Vossa Excelência por muitos anos”.

Não deixa de ser curioso observar que esta situação comercial de ultra dependência é também observada e documentada por outros autores que por aqui andaram um pouco antes e muito depois. Estamos perto de nos despedir, há só mais dois documentos muito curiosos de que vos daremos conhecimento no texto seguinte, o último sobre estes anais do Conselho Ultramarino.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23227: Historiografia da presença portuguesa em África (315): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23254: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XIV: Conto - O lobo e a lebre vão à pesca (pp. 75/78)





Ilustração (pp. 75 e 77) do mestre Augusto Trigo, pai da pintura guineense e grande ilustrador,
a sua obra é uma referência.



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga


1. Transcrição das pp. 75-78 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato > Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



Conto - O lobo e a lebre vão à pesca 

(pp. 75/78)


Ouvindo dizer que a lebre tinha um barco para pescar e que pescava muito peixe, um dia o lobo (hiena) pediu à lebre para ir à pesca com ele.

A lebre não queria ir com o lobo, pois sabia que ele era mau, mas teve medo de dizer que não, pois o lobo era até capaz de a comer, e assim disse que iriam os dois à pesca no dia seguinte.

O lobo e a lebre desceram o rio de canoa e a dada altura a lebre disse ao lobo:

−  Fica a pescar neste lugar, que tem muito peixe, que eu vou pescar mais à frente.

−  Está bem −  disse o lobo.

O lobo não pescava nada, mas a lebre não parava de gritar de contente:

−  Já apanhei um! Já apanhei dois! Já apanhei três! Quatro! Cinco! −  a lebre não parava de apanhar peixe, e o lobo nada.

O lobo furioso por não apanhar peixe, foi ter com a lebre e gritou-lhe zangado:

 Enganaste-me! No meu lugar não há peixe, mas eu vou ficar com o teu peixe e vou vender-te no mercado.

−  Tu é que não sabes pescar ou não tens sorte −  respondeu a lebre.

O lobo amarrou a lebre, meteu-a dentro da canoa e remou para a outra margem do rio, onde havia um mercado.

A lebre ficou aflita, mas arranjou logo um plano para enganar o lobo, ecomeçou cantar.

O patrão está a cantar,
o criado a remar,
que boa viagem vão dar.

O patrão está a cantar,
o criado a remar,
que boa viagem vão dar.


O lobo ao ouvir esta cantiga, disse logo:

−  Eu não sou teu criado, eu é que sou o patrão.

−  Tu é que estás a remar, eu estou a descansar, se não queres ser o criado, então podemos trocar.

−  Está bem −  disse o lobo.

A lebre trocou com o lobo, mas amarrou-o bem, e continuou a remar para ir ao mercado

O lobo, satisfeito, foi todo o caminho a cantar:

O patrão está a cantar,
o criado a remar,
que boa viagem vão dar.

O patrão está a cantar,
o criado a remar,
que boa viagem vão dar.


Quando estavam a chegar à margem, o leão, o hipopótamo, a girafa e todos os outros animais que estavam no mercado vieram ver o que se passava, e comentaram:

−  A lebre traz uma coisa para vender.

O lobo ao ver que estavam a chegar à margem, disse à lebre:

−  Desamarra-me! Rápido!

− Eu não te vou desamarrar, eu vou vender-te no mercado  
−  respondeu a lebre.

−  O quê? Eu sou mais forte do que tu! Desamarra-me ou eu mato-te - disse o lobo ao mesmo tempo que se mexia, tentando libertar-se das cordas.

A canoa começou a abanar, devido aos movimentos do lobo para se libertar, e a lebre disse-lhe:

Vais virar a canoa, e como estás amarrado vais morrer afogado, e eu vou nadar para terra, é melhor não te mexeres.

O lobo com medo ficou quieto, e a lebre vendeu-o ao leão.

E foi assim, que a lebre se conseguiu livrar do lobo.


2. Vamos ajudar a Ajuda Amiga: com pouco podemos ajudar muito

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terça-feira, 10 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23253: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte I

1. Damos hoje início à publicação de um texto de memórias intitulado A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra, de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau Buba e Pelundo, 1969/71)[1]


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte I

Introdução

O meu objetivo com este texto é tão só, deixar um pequeno resumo, do que foi o meu dia-a-dia naquela época, para os meus filhos e netos. Como tal, e provando que não é ficção, menciono os nomes reais de cada um dos intervenientes neste meu texto.


Aproximava-se o fim do mês de Abril de 1969 quando, numa manhã, recebi um telefonema da Secretaria do Hospital Militar Principal dando-me a notícia que tinha dez dias para me ir despedir da minha família, comprar o fardamento e me apresentar, dia seis de Maio até às vinte e quatro horas no Porto Brandão, de modo a poder embarcar no dia seguinte para a Guiné no navio Niassa.

Tinha passado pouco mais de um mês a ser alvo de uma participação que me levaria também para a Guiné, mas, desta vez como soldado. O meu posto na altura era o de Cabo Miliciano, e a pouco mais de quinze dias de ser promovido a Furriel Miliciano.

Tudo aconteceu ao fim do jantar. Era Domingo e a refeição foi bife com batatas fritas.

O refeitório encontrava-se no edifício do Hospital Militar ao Jardim da Estrela. Aqui eram fornecidas refeições juntando no refeitório Cabos Milicianos, Cabos RD e Soldados.

Naquela noite de Domingo tudo parecia correr bem até ao momento que um dos Cabos Milicianos recém-chegados a este Hospital para realizarem o estágio de Enfermagem, resolveu acender um cigarro. Este esqueceu-se que não era permitido fumar no refeitório, mas, entusiasmado na galhofa com outros cometeu este lapso.

Nesse dia, encontrava-se de Sargento de dia à Formação o Primeiro-sargento de nome Nunes. Ao ver o Cabo Miliciano acender o cigarro, levantou a voz vinda do fundo da sala e da porta de entrada ordenando ao infrator que fosse fumar para fora do refeitório nestes termos:
- Ó nosso Cabo, não sabe que não se pode fumar no refeitório!
 
O Miliciano infrator, como havia dois tipos de Cabos no refeitório, não se apercebeu que era para ele a reprimenda. Eu, não gostando da forma como a ordem tinha sido dada, com ironia cheguei junto do Cabo Miliciano infrator dizendo-lhe em voz alta que o Sargento se estava a dirigir a ele. Como eu citei Sargento e não Primeiro-sargento, atirou-se a mim furioso, dizendo que lhe tinha faltado ao respeito perante todos os presentes e como tal, iria participar de mim. Respondi-lhe que para ser respeitado ele teria que se dar também ao respeito e ter chamado de cabo Miliciano ao infrator e não apenas de Cabo, dado encontrarem-se outro tipo de Cabos no refeitório. Mais, disse-lhe que as Ordens de Serviço ao Hospital ou à Formação para fazermos os mesmos serviços que ele estava desempenhando naquele momento nos referenciava com Cabos Milicianos e não apenas como Cabos. Se para ele, nós não passávamos apenas de Cabos também, me sentia no direito de apenas o tratar por Sargento e não como Primeiro-sargento. Mais eu já de cabeça perdida e olhos nos olhos lhe disse que quando eu saísse do Serviço Militar tinha um curso para trabalhar enquanto ele, acaso acontecesse o mesmo, restava-lhe ir para pastor de gado.

Saí de seguida porta fora numa pilha de nervos. Este homem, vim a saber, tinha fama e proveito de nos provocar.

Nessa noite fui vaguear por Lisboa tentando acalmar e, só de madrugada, me deitei um pouco.

Na manhã do dia seguinte, ao atravessar os portões da entrada principal do Hospital, soube que a minha situação como militar estava complicada porque só faltava a participação ser assinada pelo Director do Hospital.

Voltei de imediato a sair para o exterior do Hospital e dirigi-me de imediato à Escola de Serviço de Saúde, para solicitar ao Capitão que dirigia esta Escola o seu apoio.
Toquei à porta do seu gabinete pedindo para poder entrar já que tinha um assunto muito urgente que me envolvia e, para o qual necessitava do seu apoio.

Ao reparar no estado nervoso que eu apresentava, solicitou que com calma lhe narrasse os motivos que me levavam a pedir a sua ajuda. Contei-lhe então com todos os pormenores que levaram o Primeiro-sargento Nunes a querer participar de mim ao Director do Hospital. Despois de me ter ouvido, levantou o seu telefone ligando para aquele Sargento pedindo-lhe para que ele de imediato se dirigisse ao seu gabinete e fosse portador da participação que tinha em seu poder porque tinha urgência em falar com ele.
Enquanto o Sargento Nunes não chegou, o ajudante deste Capitão também um Primeiro-sargento, dirigiu a palavra ao seu chefe dizendo-lhe que eu era merecedor do castigo já que no entender dele, sabia de mais e, como tal, ao ser castigado, daria um exemplo a todos os outros Cabos Milicianos. Ao ouvir estas palavras, o Capitão levantou a voz dizendo-lhe que eu não tinha de ser castigado para servir de exemplo a ninguém! Tinha as melhores referências a meu respeito e, como tal, me iria defender a todo o custo. Olhou para mim dizendo-me para me acalmar pois tudo se ira resolver e, instruiu-me que, mal chegasse o Primeiro Nunes lhe pedisse desculpas pelos males entendidos por ele já que nunca tinha sido minha intensão faltar-lhe ao respeito o que era verdade.
Assim, mal o Primeiro Nunes entrou no gabinete, o Capitão estendeu-lhe a mão para que nela fosse colocada a referida participação. Surpreendido, recuou um passo dizendo que não o podia fazer. De novo o Capitão levantou a voz dizendo que fizesse o favor de lhe entregar a folha de papel para ser ali em frente de todos nós rasgada. Felizmente para mim assim aconteceu.

Mal me vi na rua e liberto daquele pesadelo, jurei para mim mesmo que doravante, nenhum filho da mãe militar me voltaria a pisar pois tinha acabado de levar um forte murro no estomago ao ter que pedir desculpas a um dos mais patifes Sargentos do Hospital Militar Principal.
Porém, o meu confronto com este militar não ficou encerrado naquele dia. Mais tarde e passado mais de um ano e encontrando-me de férias no Continente vindo pela segunda vês da Guiné, antes de embarcar de novo para aquele território Ultramarino, passei uns dias em Lisboa. Como namorava com uma Fisioterapeuta (mais tarde minha mulher), que naquela altura trabalhava no Hospital Militar Principal, fui visitá-la e, para isso, apanhei transporte num elétrico na Rua da Conceição que se dirigia para o Largo do Jardim da Estrela. Qual o meu espanto ao ver que na plataforma do elétrico se encontrava o dito Primeiro-sargento Nunes, que no passado tinha tentado destruir a minha vida. Não resisti e lancei-lhe as minhas mãos ao seu pescoço apertando-o e chamando-lhe todos os nomes que me vieram à cabeça. Dois outros passageiros me seguraram e, ao mesmo tempo perguntaram-me das minhas razões para te tomado aquela atitude. Contei-lhes e prontificaram-se a atirar com ele da plataforma do elétrico em andamento se fosse o meu desejo. Acalmei e segui a viagem sem mais olhar para ele.

Visitei a minha namorada combinando com ela me encontrar antes de apanhar o avião da TAP para Bissau. Contou-me mais tarde que o dito Primeiro-sargento ao ver-me falar com ela no Hospital, preguntou-lhe se me conhecia ao que ela lhe respondeu ser seu namorado. Remédio santo, sempre que a via a tratava com as melhores simpatias do Mundo.

Voltando ao momento da minha mobilização para a Guiné, logo na manhã do dia seguinte, (7 de Maio de 1969) e após ter tomado o pequeno-almoço, encaminhei-me com outros militares para uma das camionetas que nos levariam com destino ao cais de Alcântara em Lisboa, onde se encontrava o navio que nos iria levar até à Guiné.

No local, uma multidão de pessoas se encontrava para uma despedida cheia de emoções. Despediam-se dos seus filhos, namorados ou simplesmente amigos, dado a incerteza que havia, de um regresso com saúde. Não nos podíamos esquecer que partíamos para um teatro de guerra.

Como as minhas origens familiares eram do interior Norte e de precários recursos, não tive nenhum familiar próximo na despedida, mas somente, uma namorada recente e uma grande amiga quase familiar.

Na altura das despedidas, e quando me preparava para iniciar a subida das escadarias para o navio, vi uma cara bem minha conhecida da minha terra natal que também ia embarcar no mesmo navio. Era o Alferes Jorge Fachada, natural de Foz Côa como eu. Também ia para a Guiné, mas fazendo parte de um outro Batalhão e para locais diferentes do meu.

Apesar de verificar que não iria fazer parte do Batalhão onde eu estava inserido, senti-me mais confortado porque já não me iria sentir tão só durante a viagem.
Ao lado dele e no convés do navio, fomos correspondendo ao adeus dos nossos à medida que o navio se ia desviando do cais. Os gritos de adeus eram muitos. Senti que o meu peito se apertava angustiado. Não consegui deitar uma lágrima. Todo eu era um vazio.

Durante os sete dias da viagem fui conhecendo aqueles que comigo iam estar próximos (Médico, Cabo Enfermeiro e os quatro Maqueiros) mais, alguns Furriéis Milicianos da Companhia CCS do Batalhão 2884. Também eu e o Jorge fomos aproveitando umas iguarias que a minha namorada e familiares dele nos deram antes do embarque.

A viagem decorreu sem sobressaltos. Ao aproximarmo-nos do Golfo da Guiné, um bafo quente e húmido se ia sentindo. Piorou ao entrarmos no estuário do Rio Geba com a Costa à vista e as águas turvas.
Antes do navio encostar ao cais em Bissau, despedi-me do Jorge Fachada para não mais o voltar a ver naquelas paragens. Voltei a vê-lo felizmente já em Lisboa.
Conforme o navio se preparava para atracar, via o cais cheio de pessoas, mas, principalmente, muitos garotos que nos solicitavam para atirarmos moedas para a água a fim de eles mergulhare apanhando-as. Estas imagens deixaram-me triste e meditei se Deus algum dia teria passado por aqueles locais. Foi o primeiro grande sentimento de mágoa ao começar a verificar o atraso daquele território.
Salta Periquito salta, gritavam os miúdos em coro conforme íamos descendo para o cais.

Fui levado dali para um Quartel Seiscentos em Santa Luzia que ficava perto do Quartel-general em Bissau. Aqui ficou instalada a Companhia CCS da qual eu fazia parte. As restantes três Companhias Operacionais foram respetivamente para o Pelundo, Jolmete e Có.

A primeira noite foi dormida em cima de uma manta que tapava as folhas de zinco da cama. Acordei todo marcado pelas folhas de zinco e pelas mordidelas de tantos percevejos. Resolvi fazer logo uma limpeza a estes parasitas. Procurei uma vela fazendo-lhes um belo churrasco.

No dia seguinte fui conhecer o Posto de Saúde acompanhado pelo Médico do Batalhão com quem vim a aprender muito de saúde ao longo da comissão, mais o restante pessoal de saúde da CCS.

O meu primeiro trabalho foi receber e verificar todo o material sanitário que iria ficar sob a minha responsabilidade durante o tempo que permanecesse naquele Quartel. Logo ali começou a minha grande lição no sentido de estar com os olhos bem abertos ao inventário daquele material. Este meu cuidado viria a dar-me muito jeito no futuro. Mesmo estando ao meu lado o Médico, conseguimos ainda ser enganados. Aprendi que a tarimba dos mais velhos e o meio militar em tempo de guerra é diabólico. Estes pequenos erros fui conseguindo resolvê-los durante o tempo que ali permaneci de modo que, no final, entreguei o material ao que me rendeu, deixando tudo bem resolvido.

Este Quartel era um centro de passagem de tropas. Umas que chegavam do mato de passagem para Lisboa, e de Lisboa para determinadas zonas da Guiné. Durante este tempo, a azáfama foi grande.
Ainda sobre o alojamento, logo no dia seguinte foi-me destinado um quarto amplo com a companhia de mais dois Furriéis Milicianos e de um segundo Sargento do Quadro Permanente. Eu ligado à saúde, os dois Furriéis à alimentação e o segundo Sargento era corneteiro.

Logo no primeiro fim-de-semana com folga, fui começar a conhecer a Cidade de Bissau e tentar encontrar alguma morada de ex-colegas de estudo naturais da Guiné. Fiquei logo a saber que um tinha moradia à saída da porta de armas do Quartel onde me encontrava, portanto, no Bairro de Santa Luzia.

Comecei por conhecer a família Baticã (não sei se é assim que se escreve). Fiquei a saber por eles que o Pai era o Régulo de Teixeira Pinto (Régulo significa ser o chefe da etnia local), portanto, a cidade à qual a aldeia para onde eu estava destinado ir pertencia administrativamente aquela cidade. Mais tarde, este conhecimento tornou-se útil.

Encontrava-me ainda na adaptação à nova vida militar, quando, numa manhã da segunda semana após a minha chegada a Bissau, fui chamado ao Comandante da minha Companhia que me informou ter para nessa tarde me apresentar no Quartel-General. Fiquei deveras apreensivo e receoso do destino que me iria ser dado. Todo eu era nervos. Mal cheguei já me vão dar outro destino? - Pensei para os meus botões.

O Quartel-General ficava logo nas traseiras do Seiscentos. Sendo o percurso mais curto. Como a minha apresentação era a um Oficial-General e o documento da convocatória tinha o seu nome, pedi à ordenança, que lá se encontrava, que me indicasse o gabinete do Oficial que me queria falar.

Bati à porta, pedindo licença. O Oficial mandou-me entrar e que me sentasse na cadeira em frente da sua secretária.
Tenho comigo um ofício de que é desejo do Comando-Chefe que o senhor vá fazer um estágio na Granja Agrícola aqui em Bissau e, deste modo, possa vir a utilizar os seus conhecimentos junto da população do Pelundo. Aceita? Não hesitei na minha resposta que lhe dei afirmativa. Então, a partir de amanhã, uma parte do dia será destinada ao seu estágio.

Fui assim portador de um ofício a entregar ao meu Capitão da Companhia que ficou de olhos em bico. Quanto aos meus companheiros de jornada, bem como os Furriéis da CCS, todos fizeram cara de espanto, ficando com alguma inveja que, em alguns, perdurou durante toda a comissão.

O meu Médico da Companhia (Dr. Dinis Calado) ficou com mais trabalho, mas contente pela oportunidade que me era dada. A partir daquele dia, todas as tardes a seguir ao almoço, uma viatura militar levava-me à Granja. No regresso, vinha em viatura civil daquela instituição.

(Continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 9 DE MAIO DE 2022 Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861