quarta-feira, 4 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23227: Historiografia da presença portuguesa em África (315): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Pesquisar na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa é por demais aliciante, até porque de repente se fala no Seminário das Missões do Bombarral, de que nunca se ouvira falar e descobre-se que funcionou mesmo na terra da Pêra Rocha enquanto se faziam trabalhos de restauro no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim. E remexendo noutros papéis descobre-se o Portugal Missionário, publicação comemorativa da Reunião Missionária efetuada em Cernache no verão de 1928 e lá dentro se encontra um delicioso artigo intitulado "Por Terras da Guiné, notas de um antigo missionário, padre João Esteves Ribeiro". Estes Anais do Conselho Ultramarino têm que ser encarados como material subsidiário em qualquer investigação, mas há surpresas como o artigo de Tavares de Macedo sobre os Tangomãos, isto em 1852, seguramente que se estava a descobrir uma particularidade guineense que marcou a sua história, a sua civilização e a sua cultura.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… Há a parte oficial e a parte não oficial, a primeira tem a ver com pedidos de informação, instruções, acusa-se a receção de legislação, exigências orçamentais, abolição de impostos, abertura de portos, vencimentos, abolição da escravatura; a não oficial, tem a ver com a maioria dos casos com artigos, extratos de conferências, enfim, algo que não envolva diretamente nem o Conselho Ultramarino nem a política governamental.

É possível pois encontrar pareceres em que se diz que há dificuldade em se renderem os oficiais e praças de pré destacados para a Guiné, devido à insalubridade do clima, por amor à sua família e Pátria e pela diferença de preço dos géneros; e igualmente se considera que é de grande utilidade providenciar que estes destacamentos fiquem mais tempo na Guiné para evitarem indisciplinas e por razões económicas, e assim o Conselho é de parecer que o Governo expeça ordens ao Governador-Geral para render regularmente, e logo depois da estação das chuvas os destacamentos. Isto em 29 de novembro de 1853. Falando-se da nomeação do Governador de Cacheu, diz o Conselho Ultramarino que ela deve ser feita pelo Governador-Geral de Cabo Verde, deve ter uma gratificação e o seu grau de importância deve ser equiparado à dos comandantes militares das ilhas do arquipélago, entanto o Governador de Cacheu recebe ordens do Governador da Guiné que é subordinado ao Governador-Geral de Cabo Verde. E vem o parecer: Sempre que o Governador da Guiné for governado pelo Governador-Geral deve-se-lhe abonar a gratificação anual de 800 mil reis; é conveniente que o Governo deixe ao Governador-Geral da Província a nomeação do Governador de Cacheu, não devendo a gratificação ser reduzida de 400 mil reis. Isto em 24 de maio de 1855. E há notas curiosas como aquela que Sá de Bandeira assina em 30 de maio de 1857: “Sendo mandado estacionar o patacho de S. Pedro nos portos da Guiné Portuguesa, às ordens do governador da mesma Guiné: Sua Majestade El-Rei há por bem determinar pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar que o Governador-Geral da Província de Cabo Verde o guarneça de gente que pela terra do seu nascimento ou por outras causas esteja habituada ao clima da Guiné, sendo do comando encarregado a pessoa prática daqueles portos, e capaz de o conduzir ao arquipélago de Cabo Verde quando assim seja necessário”.

E temos agora um bom exemplo de texto não oficial, assinado por J. Tavares de Macedo acerca dos Tangomãos, de que eram os Tangomãos de que se fala na Ordenação do Reino. Reporta-se o autor a uma provisão régia de 15 de julho de 1565, extraída por Duarte Nunes de Leão nas suas Leis extravagantes: “que quando algum herdeiro de algum defunto Tangomão, que falecesse nas partes de Guiné demandar o Hospital de Todos os Santos da Cidade de Lisboa, para que lhe restitua a fazenda, que ficou de tal Tangomão, e que o dito hospital arrecadou, por lhe pertencer e lhe ser aplicada, por Provisões e Regimentos régios, por tal herdeiro dizer que não foi citado nem requerido ou que faltou alguma solenidade, das que conforme a direito se requerem, antes das fazendas dos ditos Tangomãos poderem ser julgadas por perdidas e se poderem entregar ao dito hospital, a quem são aplicadas, os juízes do dito hospital e quaisquer outros a que o conhecimento do caso pertencer, não publiquem a sentença final que no tal caso se houver de dar sem primeiro dar a Sua Alteza dele e do caso especial conta”. E o autor pergunta quem são estes Tangomãos. Para o jurisconsulto Molina é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender. Mas há outros que dizem “que Tangomãos sejam os que cativam homens livres, quais eram os que em Guiné andavam apanhando negros; outros finalmente dizem que Tangomão é o que persuada ao escravo que fuja ao seu senhor. Há também quem entende que “os que dizem que Tangomão é o que foge e deixa a sua Pátria e morre fora dela, ou por suas culpas, ou por seus particulares interesses; se a sentença pronunciada contra os bens do Tangomão há de subir à presença d’El-Rei, para se decidir se eles pertencem ou não ao real fisco, fica manifesto que o dono morreu ausente e fugitivo. Não negaremos, contudo, que havendo passada esta palavra de Guiné a Portugal, particularmente se entende dos que fogem e morrem por toda a Guiné e Cafraria”.

É patente que estes eruditos têm tido ideia pouco clara do que eram os Tangomãos, a que se referem as leis antigas. E cita-se o padre Fernão Guerreiro no que escreveu nas suas Relações Annaes: “Também fazem muito serviço a Deus de o ajudar a descativar muitos padres, que sendo livres os trazem cativos e injustamente da terra firma da Guiné os mercadores portugueses que disso tratam, principalmente quando consta da injustiça do seu cativeiro, metendo-os por força nos navios, ou havendo-os de outros negros que injustamente os salteiam e cativam, ou havendo-os também dos Tangomãos, ou lançados com os negros, e que andam neste trato por terra dentro; os quais são uma sorte de gente que ainda na Nação são portugueses e na religião ou batismo cristãos, de tal maneira porém vivem como se nem uma coisa nem outra foram; porque muitos deles andam nus, riscam o corpo todo com um ferro; desta maneira andam por todo aquele Guiné tratando e comprando escravos por qualquer tipo que os podem haver, ou seja bom, ou seja mau, andando tão esquecidos de Deus e da sua salvação como se forem os próprios negros e gentios da terra”.

E Tavares de Macedo diz que é tão clara esta notícia que são escusados mais comentários. “Só notaremos o facto notabilíssimo de como se afaziam a tão inóspitos climas homens que abandonavam inteiramente os hábitos da terra natal, para passarem a viver como selvagens, passavam vinte e trinta anos sem se confessarem nem se lembrarem mais que dos negócios da vida agitada e bárbara que haviam abraçado”. No final do seu artigo, e para confirmar o padre Fernão Guerreiro cita-se João Carreiro capitão de Cacheu em documento de 15 de janeiro de 1650: “Avisar-me-eis particularmente pelo Conselho Ultramarino das pessoas que andarem feitos Tangomãos, e dos que tiverem incorrido nessa culpa, e de suas qualidades, e que utilidade receberá meu serviço deles se reduzirem e virem povoar a viver na povoação, e se convirá ou haverá algum inconveniente em se lhe perdoar as culpas que tiverem, e com que condições se lhe deve conceder perdão, e do benefício que deles disso receberão com o mais vos parecer informar”. Considera Tavares de Macedo que fica cabalmente esclarecido a condição de Tangomão, caraterística ímpar do português que se lançava no mato e ali permanecia dezenas de anos, em qualquer ponto da chamada Senegâmbia Portuguesa.

(continua)


Guiné Portuguesa, mapa do século XIX, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23207: Historiografia da presença portuguesa em África (314): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

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