Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história., reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo,
− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.
− Cá vamos estando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.
− Cá vamos andando, gemendo e chorando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.
O Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, reformado, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo que, no passado, há mais de oito éculos, fora fronteira natural e política de Portugal, já não se viam... desde os tempos da Expo 98!....
− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!
− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!
Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez desde 1998, o ano da Expo, o que só podia queria dizer... “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.
− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!
− E manos, acrescenta aí!... (Felizmente, ainda tenho vários, mas biológicos.)
O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha "um medo que se pelava de passar por aquelas bandas", sozinho, à noite, fora do resto das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.
O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que fora outrora o grande celeiro da vila ribatejana.
− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!
− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...
− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.
O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas, as raparigas, as mulheres e os velhotes…
E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há de, logo a seguir, em meados dos anos 50, emigrar com a família para as Américas...
O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mais mal educado, mais traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em terceiro grau.
− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, aos EUA, o Canadá!...
− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!... Não lhe posso desejar mal, para mais meu parente.
− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar, na Quaresma, ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas um simples castigo no purgatório.
− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…
− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um tumor cerebral, fulminante, que em poucos meses o levou…
− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...E que nos habituamos a ver sempre cheio de saúde, energia e alegria de viver...
O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de guarda-marinho....
− A imagem que eu tenho dele era o do moço de forcados, jaqueta bem apertada, calça à boca de sina, como se usava naquete tempo, pegador de touros, marialva, “bon vivant”...
− Bom garfo, melhor copo, garanhão, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…
− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.
− Inteiramente justo o que dizes, Tony.
− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo. Devo ser, nesse como noutros capítulos da nossa gesta heróica, a ovelha ranhosa cá da terra...
− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade, cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola, a política e a igreja) são algumas delas...
− Sim, coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol, os touros e o sexo…, o que no cômputo final representa 99% das nossas conversas de machos…
− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... É um dos desportos favoritos da nossa gente. Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno,..
− ... ou que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta, com tristeza, o António.
− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…
Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali num murete do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos", em que havia "três amigos, três destinos" (título da letra de um velho fado, que o Zé Nuno tocava e cantava com muita piada).
− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra, também sabiam dar afagos e chicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...
E esclarece:
− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um bocado, antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Eu nessa altura era, como sabes, um maosta intratável, arrogante, convencido...(e perdi amigos por isso).
− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi pessoa, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony.
− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições monárquicas, com criação de cavalos e de gado bravo, está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três ou quatro gerações dá-se cabo do património de uma empresa, neste caso agrícola, que chegou a ser uma das maiores e melhores da nossa região.
− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço.
Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.
− Sabes que o Zé tinha casado tarde, ficara solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, contemporâneo e condiscípulo, em Coimbra, do nosso José Relvas, ali da Golegã. (Nunca foram amigos, um era monárquico, o outro republicano.)... E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar na universidade. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar...
E prosseguiu:
− Belmiro, o que a gente sabe é que o raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher, o ganhão e o latifunidário... Também não já não me lembrava que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…
O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária e do colégio, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como antes para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar.
− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram a possibilidade de prosseguir os seus estudos… E de ter direito a férias de praia, no verão.
O Tony estudara até ao antigo 5º ano do liceu no antigo colégio particular da terra; com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia.
O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:
− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...
− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...
− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.
O António Mota, ex-crente, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.
− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…
− O quê ?...
− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...
− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem das ciências duras, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que infelizmente já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...
−... e às alunas, de alto a baixo!
− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , no colégio, nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?
− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…
− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde a minha mulher, que era de lá, foi notária, antes de decidirmo-nos, já com filhos, de voltar às minhas origens... E aqui estou na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria… Sabes, as ilhas, sim, são claustrofóbicas. E eu seria incapaz de viver e trabalhar num navio como o Zé Nuno... (Se tivesse que ir à tropa, oferecia-me para a Força Aérea.)
− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Mesmo soalheira, há de ser a nossa última morada, também…
− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... Lembras-te, vieste cá, em 1998, ao enterro do meu pai... Fiquei muito sensibilizado com o teu gesto solidário...
− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!
− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.
− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.
− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…
− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há de chegar!
− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!
− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…
−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...
− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…
− A alma ?
− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...
− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso…
− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras do largo da Misericórdia. O "Carpe Diem". É de um gajo castiço, poeta popular, o nosso Aleixo, eu chamo-lhe o António Aleixo do Ribatejo. Um bom sítio para se petiscar e beber um copo.
Revisão: 3/2/2024
Último poste da série > 28 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'