Pesquisar neste blogue

domingo, 23 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26608: Os 50 Anos do 25 de Abril (37): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte III


De acordo com a legenda, esta imagem é a reprodução de um postal de c. 1906 (Fonte: João Loureiro: "A Sociedade Angolana de há 100 anos", pref. António Barreto.  Lisboa: Maisimagem, 2008. pág. 94).


Painel II . "Missão Civilizadora" e "Progresso" > 3. O trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias.


Exposição > “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. 
O Colonialismo Português em África: 
Mitos e Realidades”

 Lisboa, Belém,
30 out 2024 / 2 nov 2025


1. Continuamos a "visita resumida"  desta exposição, que pode ser vista até 2 de novembro de 2025. (Há visitas guiadas, tem que se reservar.)

Requer "tempo, vagar e... distanciamento crítico"! ... Merece pelo menos duas visitas, para se lidar com tanta informação. 

Para já é uma oportunidade única para se conhecer uma tão vasta e rica  documentação fotográfica, que ilustra os diferentes painéis, e que é proveniente de diversos arquivos, públicos e privados, incluindo o Arquivo Histórico-Militar, o Arquivo Histórico Ultramarino e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sem esquecer a notável coleção de postais antigos do dr. João Loureiro (ou João M. Loureiro:): uma das suas obras, "Postais Antigos da Guiné", já foi aqui, oportunamente objeto de recensão em quatro postes do nosso crítico literário, Mário Beja Santos. "Uma relíquia", este trabalho, de um grande colecionador que percebeu o valor iconográfico de um simples bilhete-postal... 

De resto, desde cedo, no blogue, fizemos um esforço por recolher e salvaguardar os nossos velhos postais ilustrados (temos meia centena de referências).

Por outro lado, estamos a falar de um período da nossa história (e da história africana) mal conhecido de todos nós. antigos combatentes: grosso modo, vai do último quartel do séc. XIX até à descolonização.

Quem é que no nosso tempo de escola (incluindo o liceu), nos anos 50/60,  ouviu falar em "trabalho forçado", "imposto de palhota". "assimilados", "colonialismo",   "código do trabalho indígena", "acto colonial", "luso-tropicalismo", "nacionalismo africano", etc. ?!... 

Eu não ouvi, nem me perguntaram nada disso no exame de admissão ao liceu, em 1958... Era lá coisa para uma criança de 10 anos ter que saber!.. Perguntaram-me, isso sim, os nomes e cognomes de todos os reis de Portugal... (Felizmente, sabia-os, na ponta da língua!)

Nós já somos do tempo, em que as "colónias" passaram a "províncias"... Mas não sabíamos que só em 1962 fora"abolido legalmente o trabalho forçado", era então ministro do ultramar  o professor Adriano Moreira (1922-2022)... Tinha eu 15 anos.  

O  objetivo desta exposição pretende ser  "pedagógico e didático",  resultando da colaboração de 3 dezenas de especialistas mas não deixando de ter o cunho muito pessoal, profissional, metodológico e teórico-ideológico da sua curadora, Isabel Castro Henriques (vd. aqui a entrevista que deu à RTP África). 

A exposição é organizada pelo CEsA Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (do ISEG / UL)  e pelo Museu Nacional de Etnologia, com curadoria da historiadora Isabel Castro Henriques. Integra as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.


2. Recorde-se que, de acordo com a folha de sala, a "narrativa da exposição" centra-se em dois  eixos:

(i) um primeiro eixo baseado  "em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, pondo em evidência as linhas de força do colonialismo português dos séculos XIX e XX, e dando a palavra ao conhecimento histórico"; 

(ii) e um  segundo eixo que "pretende 'fazer falar' as   [139] obras de arte africanas", quase todas do espólio do Museu Nacional de Etnologia (que, acrescente-se,  não é um museu do colonialismo...)  como "evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades, permitindo mostrar a criatividade, a vitalidade, a sabedoria, a racionalidade, a diversidade identitária e as competências africanas e contribuindo para evidenciar e desconstruir a natureza falsificadora dos mitos coloniais portugueses."

Ainda não visitámos a exposição toda que, se não erramos, tem oito painéis (sendo o último dedicado à descolonização e o legado colonial).



3. O segundo painel  (*) tem como subtemas os seguintes (pelo menos, os que eu registei na minha máquina fotográfica), e que são profusamente ilustrados com imagens da época (mais de Angola, Moçambique e São Tomé, e muito menos da Guiné, que não era uma "colónia de povoamento"):

(i) a criação do "indígena" e o "grémio da civilização";

(ii) a obra civilizadora da Igreja: evangelização e instrução:

(iii) o trabalho indígena: modalidades, violência e denúncias;

(iv) o imposto indígena: caracterização e significado histórico.

Seguem-se alguns conteúdos (reproduzidos aqui com a devida vénia, e a pensar sobretudo nos nossos leitores fora de Lisboa que dificilmente terão oportunidade de se deslocar ao Museu Nacional de Etnologia, no Restelo, de entrada gratuita para os antigos combatentes)... 

A exposição é muito rica do ponto de vista documental, com se pode aferir pela pequena amostra que apresentamos (seleção de c. de 220 imagens que fiz de metade dos painéis):



























"Sacralização da vida: objetos e rituais" (Uma das diversas vitrines com objetos de arte africana , na sua maioria espólio do Museu Nacional de Etonologia)






















(Imagens obtidas da exposição "in situ",  sem flash, com a devida vénia, e aqui reproduzidas com propósito meramente informativo...)


(Fotos, seleção, edição: LG)

(Continua)

______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores:


15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II

sábado, 22 de março de 2025

Guiné 61/74 – P26607: (Ex)citações (530): Guiné, da escravatura à carne para canhão. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Guiné, da escravatura à carne para canhão 


Camaradas,

Os tempos, que por ora atravessamos, remete-nos para outras eras em que a escravatura eram “dotes” de senhores cuja presunção os remetia para a escravidão de seres humanos, sobretudo de gentes de linhagem negra.

Camaradas, sabeis que essas jactancias pressuponham poder absoluto sobre o mundo que certamente os rodeava, logo, o homem e as mulheres negras eram simplesmente matéria que rendiam dinheiro, por isso cada qual valia bastardos cruzados e os “magnatas” não olhavam a meios para atingir os seus fins.

Mais tarde, em pleno século XX, nós não fomos escravos como aqueles de antigamente, mas sim jovens militares atirados para as frentes de uma guerra colonial que fora demasiado cruel.

Deixo um pequeno texto do meu livro – UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – Edições Colibri, Lisboa

Guiné, da escravatura à carne para canhão

Escravos e combatentes


Imagem retirada da internet

Numa apurada caminhada sobre a problemática dos antigos escravos na Guiné, seres humanos que sofreram as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de genuínos patrões de “carne para virtuais fregueses”, pessoas sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos, servindo-se, simultaneamente, das obsequiosas mulheres para os prazeres sexuais, eis o retrato de uma sociedade onde os poderosos de outrora ditavam lei.

Investiguei o tema escravos numa Guiné que todos conhecemos. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor.

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Existiam, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC se revelou como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.

Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Em Gabu fui, tal como muitos dos milhares de camaradas que por lá passaram, mais um elemento onde o fenómeno da escravatura se enraizou em combatentes que tudo fizeram para salvar a pele. Restava o pacato aguardar pelo fim da comissão militar, mas isentos de eventuais marcas de guerra e sobretudo bem vivo.

Factualidades de um tempo sem tempo!



Mulheres seu papel de escravas  
    
Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

19 de dezembro de 2024 » Guiné 61/74 – P26291: In Memoriam (529): Comandante Almada Contreiras (1941-2024), um antigo camarada que conheceu as terras da Guiné, e um dos militares do 25 de Abr (José Saúde)

 

Guiné 61/74 - P26606: Desaparecido do nosso radar (2): Silvério Dias, o "senhor PIFAS!



A mascote do Programa [de Informação]  das Forças Armadas (PIFAS), da responsabilidade da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica. Autor (até à data) desconhecido.  Imagem cedida  pelo nosso camarada Miguel Pessoa, cor pilav ref (ten pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74). 



1. Publicou há dias o Manuel Resende na página do facebook da Magnífica Tabanca da Linha > 6 de março às 17:34 

Caros Magníficos, já procurei em tudo onde podia estar o nosso Magnífico, e não o encontro. 

Alguém sabe dele? 

Mora(va) em Oeiras, o telefone está desligado, já contactei alguém da Biblioteca de Vila Velha de Ródão, onde ele era colaborador e natural, e ninguém sabe dele. 

Silvério Dias

Tinha um blog "Poeta Todos os Dias", desactivado desde finais de 2023. Disse-me ele, "Manel,  publico todos os dias alguma coisa em verso até morrer".

O seu nome é Silvério Pires Dias.

Se alguém souber algo sobre ele, diga.



2. Comentário do editor LG:

O nosso camarada o Silvério Dias, 1º srgt ref, ex-radialista do PIFAS, grão-tabanqueiro nº 651 (*),  é um cso extraordinário de "resistência e resiliência" contra os "males da idade"...

Mas também deixei, infelizmente, de ter notícias dele (**), depois do último convívio da  malta do Pifas no "Páteo Alfacinha", em Lisba, em 9/9/2023, com a presença do general Ramalho Eanes (***).

Tinha então 89 anos completados em 18 de agosto. Ainda me desafiou para aparecer, o que não me foi possível por estar fora de Lisboa. Um das últimas vezes que o vi, erá sido em Oeiras, em 2017.



Oeiras > Galeria-Livraria Municipal Verney > 4 de março de 2017 > 15h00 - 16h30> A antiga equipa que deu voz e alma ao PIFAS: o primeiro sargento Silvério Dias (nosso grã-tabanqueiro nº 651) e a famosa "senhora tenente", sua esposa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Recorde-se aqui, muito sumariamente,  o  percurso de vida do nosso camarada Silvério Dias: 

(i) nasceu em 19/8/1934,  em Sarnadinha, Vila Velha de Ródão  

(ii) como militar passou pela Índia, Moçambique e Guiné (ex-2º srgt art, CART 1802, Nova Sintra, 1967/69):

(iii) 1º srgt art, locutor do PFA - Programa das Forças Armadas, 'Pifas', Bissau QG/CTIG, 1969/74, onde trabalhou com Ramalho Eanes e Otelo, entre outros; 

(iv) civil, foi delegado de propaganda médica, 1974/76, em Bissau; 

(v) 1º srgt art ref, casado com a "senhora tenente", também do 'Pifas',  vivia em Oeiras até finais de 2023;

(vi) editou, até 26/11/2023,  o  blogue "Poeta Todos Dias"  (criado em 2011 e onde todos os dias, publicava um, dois, três, quatro , cinco ou seis apontamentos poéticos, em geral, quadras populares, sobre temas do quotidiano, e suas memórias de militar);

(vii) teve, até então, cerca de 526,5   mil vizualizações de páginas;

(viii)  apresentou  na Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão em 23 de março de 2017 o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017); 017, o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017) (,

(ix) é membro da Tabanca Grande desde 24/3/2014; tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue.

Se alguém tiver notícias do Silvéro Dias, que partilhe connosco.

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12894: Tabanca Grande (430): Silvério Dias, 1º srgt art ref, o senhor PIFAS, e "poeta todos os dias!...Nove anos de permanência em terras guineenses, incluindo uma comissão na CART 1802 (Nova Sintra, 1967/69)... É agora o grão-tabanqueiro nº 651

(**) Último poste da série > 3 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22168: Desaparecido do nosso radar (1): António Duarte de Paiva, ex-sold cond ambulâncias, HM 241, Bissau, 1968/70

(***) Vd. poste de 9 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)

Guiné 61/74 - P26605: Os nossos seres, saberes e lazeres (674): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197): Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Nem me passava pela cabeça, já numa certa efervescência da quadra de Natal, aterrar em Ponta Delgada para me integrar nas comemorações de uma associação de consumidores que ajudei a impulsionar e tenho acompanhado a florescência, com a ternura de ver tal filhote já na maioridade, e tratado com respeito pelo trabalho desenvolvido; pois assim aconteceu, tinha que vir lesto e pronto a perorar, o que para mim não tem problema, reformado vai para 12 anos continuo a estudar o que se passa na política de consumidores um pouco por toda a parte, o que me facilitou a vida quando a Fundação Francisco Manuel dos Santos me convidou para escrever um livro sobre a sociedade de consumo e os consumidores em Portugal. Foram 48 horas, mas deu para o deslumbramento, tudo acabou em apoteose quando, era a última etapa da minha intervenção, fui à RDP Açores, quem me entrevistou foi o jornalista Sidónio Bettencourt que conheci nos estúdios da antiga Emissora Nacional (na rua de São Marçal, não muito longe do Palácio de S. Bento), era ele estagiário, gravou um programa da minha responsabilidade, trabalho que eu gabei, vim a sugerir que ficasse como funcionário naquela estação emissora, ele quis voltar à sua terra, e passadas estas décadas foi a grande alegria do reencontro.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197):
Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1


Mário Beja Santos

Recebo um telefonema do meu amigo Mário Reis, secretário-geral da ACRA – Associação dos Consumidores da Região dos Açores, invoca a nossa estima recíproca de longa data para vir a S. Miguel às comemorações dos 35 anos desta associação que ajudei a fundar, e que com tanto carinho acompanho. Por razões orçamentais, alega, tem de ser quase já, marca-me datas, sinto-me compelido a não poder recusar, enquanto falamos lembro-me daquela tarde em que estive na conferência inaugural, corria o ano de 1989, para minha surpresa, o então Presidente do Governo Regional, Dr. Mota Amaral, proferiu uma alocução de impressionante abrangência, qualidade e sentido premonitório. Outro motivo que me impelia a não recusar é que finalmente entrara em funcionamento o Centro de Arbitragem de Mediação de Conflitos de Consumo dos Açores, a ACRA via-se agora na obrigação de mudar os azimutes, queria ouvir opiniões. Fiz a mala, onde meti umas dezenas de livros de consumidores e pus-me ao caminho. Entrara-se na quadra de Natal. O Mário vai-me buscar ao aeroporto, despeja-me à porta de um hotel, tenho o anoitecer e o resto do dia por minha conta. É um espaço que me é muito familiar aquele que vou agora percorrer pelos meus próprios pés, rever tudo, estou certo e seguro, é uma lavagem para a alma. E assim vai começar a primeira deambulação, o anoitecer está mesmo próximo.
Quando aqui cheguei, em outubro de 1967, este espaço da avenida já existia, o panorama ao fundo nas colinas verdejantes é quase o mesmo, salvo o crescimento do casario. O molhe do porto era um semicírculo, ainda estou a avistar a sua ponta em direção àquele cruzeiro gigante, dizia-se que este porto era obra dos alemães, 1937, talvez na previsão de que esta região atlântica ficaria sob custódia germânica. Indo por aqui fora, aí quilómetro e meio à frente, é uma zona de recreio, chamemos-lhe as docas, em 1967 esta Avenida Infante D. Henrique parava perto da Igreja de S. Roque, havia uma piscina e nada mais. Aqui me detenho a rememorar o encantamento que este passeio marítimo me ofereceu e continua a oferecer.
Ao som da música alusiva à quadra de Natal, avanço em direção ao largo da Câmara Municipal onde descubro este presépio iluminado, onde não faltam as Portas da Cidade, o ex-libris de Ponta Delgada.
Aqui estão as Portas da Cidade, o mar chegava mais próximo como se pode ver num quadro célebre de Domingos Rebelo alusivo aos emigrantes, ali no fim do lado esquerdo desembarcou a família real na sua visita oficial em 1901.
Chama-se Jardim Sena de Freitas, nasceu em Ponta Delgada este historiador e polemista considerado uma das figuras mais importantes do catolicismo na monarquia constitucional. É um espaço frondoso e florido que tem ao fundo o Palácio da Conceição, já foi convento, residência do governador civil e é hoje a residência do Presidente do Governo Regional dos Açores (mantém o seu escritório no Palácio de Santana), aqui se realizam as reuniões do Governo.
Pus-me defronte do Palácio da Conceição, tinha entrada aberta àquela hora tardia, entrei e disseram-me que podia visitar a exposição alusiva à autonomia açoriana, fazer uma visita guiada ao interior do palácio e visitar ainda na sala do coro baixo uma exposição dedicada a Mota Amaral. A curiosidade foi mais forte, entrei todo pimpão, dei por muito bem passado o tempo que aqui estive e o que pude conhecer. Não conhecia este cartaz dedicado aos expedicionários para aqui enviados durante um bom período da Segunda Guerra Mundial, o quartel onde dei duas recrutas, nos Arrifes, a cerca de 7 km de Ponta Delgada, foi inicialmente previsto para ser hospital de guerra, felizmente nunca chegou a funcionar nessa vertente, transformou-se no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18.
A bandeira que é o símbolo da região
Uma das surpresas da visita guiada foi constatar que nas obras mais recentes ao palácio descobriu-se a existência de dois grandes tanques no que terão sido os jardins do claustro conventual, há mesmo um fontanário e sinais da existência de canais, havia água que vinha das terras e que inclusivamente contribuía para o abastecimento da população local. Está tudo desentulhado, bem iluminado, é um espaço surpreendente
Não vos vou falar da exposição dedicada a Mota Amaral, tocou-me este elemento expositivo, o recorte de uma fotografia que tem na sua base um aglomerado de lava com nove porções, o conjunto arquipelágico, ele foi o primeiro Presidente do Governo Regional (1976-1995), foi deputado da Assembleia Constituinte, deputado da Assembleia Nacional e Presidente da Assembleia da República. Acho esta simbologia do aglomerado de lava sob os olhos do político uma marca de talento artístico.
É uma das portas laterais da igreja matriz, um belo tardo-gótico, fui surpreendido pela iluminação, viera até aqui para ficar a olhar para um primeiro andar onde o meu saudoso amigo, o médico oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tinha consultório, não foram poucas as vezes que ali combinámos o nosso encontro para depois ir jantar e matar saudades da Guiné.
Estou agora no largo de S. Francisco, o mesmo onde há um convento onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, num dos bancos ali Antero de Quental pôs termo à vida. Muitas vezes descia a rua de Lisboa, onde tinha o meu quarto e passava diante deste lugar que era o hospital, o hospital mudou de lugar (antes fora convento), está agora transformado num belo hotel.
Neste banco pôs termo à vida um dos mais influentes poetas românticos portugueses, Antero de Quental, é desse tempo aquela âncora com a palavra esperança, que torna esse tremendo desfecho tão mais chocante.
Aproxima-se o Natal, vê-se à direita outra porta lateral em estilo tardo-gótico da igreja matriz, é impressionante o bulício, as diversões para os mais jovens, a atmosfera musical, caí agora no tropel das compras ou dos passeios dos curiosos, sinto agora uma fraqueza de quem andou a comer sandes e precisa de uma sopa quente. Até já!

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 15 de Março de 1971 > Guiné 61/74 - P26587: Os nossos seres, saberes e lazeres (673): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196): From Southeast to the North of England; and back to London (14) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26604: Humor de caserna (107): "Teixeira Pinto colonizou a Guiné sem arcas frigoríficas", disse o Intendente em Bissau... Ao que o capitão, no mato, retorquiu: "Solicito envio urgente do Teixeira Pinto" (Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, Vagomestre, CCAV 2383, Nova Sintra e Tite, 1969/70)



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 (1969/70) > O magarefe Feio a desmanchar um javali, apanhado numa armadilha...Foto (e legenda): © Aníbal José da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711 (1970/72) > s/d > Largada de frescos e correio, de paraquedas... Foto do álbum de Herlânder Simões, ex-fur mil d"Os Duros de Nova Sintra", de rendição individual, tendo estado no TO da Guiné, em Nova Sintra e depois Guileje, entre maio de 1972 e janeiro e 1974.

Foto (e legenda): © Herlânder Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Carta São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bolama, São João, Nova Sintra, Serra Leoa, Lala, Rio de Lala (afluemte do Rio Grande de Buba)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)





Aníbal José (Soares) da Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre,
CCAV 2483 / BCAV 2867, "Cavaleiros e Nova Sintra", Nova Sintra e Tite, fev 1969/ dez 1970); técnico de seguros reformado; mora em Vila Nova de Gaia; é nosso grão-tabanqueiro nº 898; é autor da série "Vivências em Nova Sintra"; coautor do livro "A Guiné que conhecemos: na sequência do livro Histórias dos 'Boinas Negras' ",  ed. lit. Jorge Martins Barbosa. Porto: Fronteira do Caos, 2022, il, 402 pp.)


1. No último poste da série "Vivências em Nova Sintra" (*), o Aníbal José da Silva publicou um texto sobre a nossa alimentação, que eu comentei nestes termos:

(...) Fabuloso este texto do nosso vagomestre!... Dou-lhe os parabéns... Já o li e reli e vou comentar com mais calma. 

Os nossos filhos e netos, criados felizmente com mais fartura, deviam lê-lo e comentá-lo. Esta era realidade (brutal, em matéria de alimentação) de quem vivia no mato... 

Sei o que era receber, só para mim e o cabo das transmissões, uma lata de 5 kg de fiambre (dinamarquês...) numa Sinchã Qualquer Coisa onde estive destacado com a minha  seção de soldados fulas, muçulmanos, "desarranchados" (e que não comiam carne de porco)... 

Eu mais o cabo empanturrámo-nos de fiambre, num só dia... o resto foi para os cães e os "djubis" da tabanca, que lhe chamaram um figo...Um ou outro soldado lá terá quebrado o tabu alimentar religioso... Já não posso garantir, com total certeza, se algum deles provou o fiambre dinamarquês que me mandou o vagomestre da CCAÇ 12, o Jaime Soares Santos,  no reabastecimento semanal ou quinzenal... (Devo lá ter estado uma semana ou duas em reforço do sistema de autodefesa, logo no princípio da comissão (...).


Também o "(António) Carvalho de Mampatá" (que era fur mil enf,  CART 6250/2, 1972/74) comentou o poste valorizando a abordagem da questão da alimentação das NT no TO da Guiné e dos tratos de polé que tinham de dar-se os pobres dos vagomestres para nos encher o prato (e a barriga):

(...) O retrato que nos faz o Aníbal Silva do exercício da sua comissão enquanto vagomestre , é precioso ou até preciosíssimo. 

É a primeira vez que leio um depoimento com esta qualidade de pormenor. Fez-me bem lê-lo porque, desde logo, me fez imaginar no lugar dele ou de qualquer outro furriel vagomestre, numa aflição permanente, a tentar dar o melhor aos seus camaradas, sem ter onde comprar fosse o que fosse. 

A partir de hoje verei com outros olhos esses camaradas, os quais muitas vezes levavam com a revolta de toda a companhia quando, a maior parte das vezes não podiam fazer melhor. (...)  (*)


2. Um excerto deste poste merece figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...

O Aníbal, para além de ter sido um esforçado,  imaginativo e honestíssimo vagomestre que foi parar, ingenuamente, a Nova Sintra, por troca com outro camarada que ficou em Jabadá, na margem esquerda do rio Geba,  é um bom contador de histórias e tem sentido de humor. 

A gente aprendeu, na Guiné, a rir-se da porca miséria do nosso quotidiano  e das "mordomias" que a tropa nos dava... desde os "hotéis de cinco estrelas" em noites de raios e coriscos, às intragáveis rações de combate e aos vegetais "liofilizados" pelo Natal... 

Com tantas agruras por que passámos,  não valia a pena chorar... Bem, ao menos hoje a gente ri-se...ou sorri.

Com esta partilha de memórias sobre as agruras da vida de um vagomestre (que eram por tabela também as nossas agruras...), o Aníbal vai ajudar a abrir a "porta"  do nosso blogue a outros vagomestres, camaradas que devem ser credores da nossa gratidão por, na generalidade dos casos, terem feito o melhor que podiam e sabiam para nos garantir "o pão nosso de cada dia".. 

Como o António Carvalho diz, eram, pelo contrário, e  muitas vezes, o "bode expiatória" da nossa raiva, no rancho e na messe... Quantas pragas não rogámos aos "filhos da p*ta do nosso primeiro e do nosso furriel vagomestre"!...

É uma história "kafkiana", a do quotidiano dos nossos vagomestres... Dá para rir, com um sorriso amarelo e meia-cara... 

De qualquer modo, e ao fim de 20 anos a blogar,  não chegam a 4 dezenas as referências a esta figura da tropa, que era/é, o vagomestre (do francês, vaguemestre, do alemão, Wagenmeister: originalmente, o oficial, no Antigo regime, responsável pela gestão das colunas logísticas e, portanto, das provisões; depois, o sargento, responsável pelo correio militar, no exército francês; ou o responsável da alimentação de uma subunidade, no exército, português).

Já o Napoleão dizia que “um exército marcha sobre seu estômago” (""une armée marche avec son estomac"). Ou, por outras palavras, não se faz (e muito menos se ganha) a guerra de barriga vazia... (***)


As agruras da vida de um vagomestre

por Aníbal José da Silva


A alimentação para 160 homens, pela qual eu era responsável, era má. Lá diz o ditado que sem ovos não se pode fazer omeletes, nem transformar pedras em pão. Não podia transformar o chouriço enlatado num bom bife. 

Todos os géneros alimentares vinham da Manutenção Militar de Bissau. Não havia em Nova Sintra população civil a quem, eventualmente, pudesse comprar o que quer que fosse. As populações mais próximas estavam em Tite a 20 km, mas a estrada estava inoperacional tendo sido abandonada. Havia ainda, também a 20 km, o destacamento de S. João que ficava defronte a Bolama, mas separado pelo largo rio. 

No inicio da comissão ainda cheguei a comprar galináceos e porcos, quando lá fomos buscar o primeiro reabastecimento, mas foi sol de pouca dura, porque o CIM  (Centro de Instrdução Militar) em Bolama comprava tudo. 

Para além disso a estrada Nova Sintra a S. João estava normalmente minada e era por ela que as colunas de reabastecimento eram feitas. Lembro que por duas vezes nesta estrada foram acionadas minas que provocaram a morte a quatro camaradas e vários feridos, pelo que fazer uma coluna para ir às compras estava fora de questão.

Durante um mês, em vinte e sete dias eram fornecidas refeições à base de enlatados: chouriço, sardinha e atum de conserva, dobrada liofilizada, que era intragável, e eventualmente fiambre. 

As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção, em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.

Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade. 

Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas. 

Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.

(...) Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e no  banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta. 

Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício. 

Chegado ao quartel,  e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne. 

Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos,  inviabilizaram-se novas façanhas.

A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido),  foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.

Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas. 

Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha. 

Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”.

 O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.

Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.

Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.

Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre,  estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.

No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.

Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu. 

Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento. 

O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras,  virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.

O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.

O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas,  criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.

Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.

 (...) Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas. 

Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que "Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos", ao que o capitão retorquiu: "Solicito envio urgente de Teixeira Pinto"...

Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase. 

Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render,  a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”. 

Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto. 

Colocada a questão ao capitão e ao 1.º sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.

Fiz a transferência do depósito ao vagomestre “periquito”, que as “comeu de cebolada”,  mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º sargento deles não era burro e,  como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca.

Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão. 

Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias lá chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado. 

Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p*ta  da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate,  as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / título: LG)

_______________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
_____________

Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26602: Blogpoesia (803): No Dia Mundial da Poesia: "A Noite Mundial da Poesia", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


A NOITE MUNDIAL DA POESIA

Voa no céu o som de um violino
chorando um poema perdido
não se sabe onde nem quando
se na claridade dos poetas mortos
se nas sombras da vida errando.
O dilema entre o silêncio e a palavra
nasce da lógica discursiva
que cabe no ridículo do poema
quando o poeta tudo vê e nada sabe.
Há um dilema entre o silêncio e a palavra
quando em teatral mensagem de poema
o poeta sonha e delira
ao enganar a poesia
nos buracos negros da mentira.
Morre a razão
nas palavras perdidas na aridez do verso
e foge a poesia da rima e dos espaços
quando do poema corre o sangue
de um mundo feito em pedaços.
Reside a poesia no silêncio de quem um dia
espera ouvir a sua voz
com ouvidos que a mereçam
mas neste tempo de ruídos e ruínas
só mudos ecos chegam até nós.
A poesia tem olhos de céu infindo
olhos de distância e de mil fontes
na planura de mil campos e horizontes.
Mais rente ao chão
voa a poesia ao redor do sentimento
como borboleta em jardim disperso
poisando na flor apetecida
onde canta a beleza de um verso.
No mundo de hoje
sem alma nem sentimento
amordaçado de mil gritos levados pelo vento
debate-se a verdade e a mentira
entre o rosto e a máscara do poema
sobrando nas entrelinhas da secura
sem dor no coração
os restos mortais
de milhões de crianças caídas no chão.
No mundo de hoje
não pode haver poetas vivos
alheados de hipócritas metáforas
estendidas sobre a mesa da vaidade
ou penduradas nos olhos da cidade.
No mundo de hoje
não pode haver poetas de almas caladas
adormecidas na noite mundial da ilusão
dando apenas ares de acordadas
quando sonham poesia nos avessos da razão.


adão cruz
_____________

Nota do editor

Último post da série de 15 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)