quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11069: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (36): Juramento de Honra

1. Em mensagem do dia 28 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

36 - Juramento de Honra

No Coa, por incrível que pareça, também havia destas coisas – não se brincava em serviço. Faziam-se juramentos… e não eram só de amor eterno; havia outros … afinal!

Três bons rapazes – teriam de ser bons cachopos, pois eu era um deles – frequentavam o 5º ano; depois, certamente de alguns considerandos, mais ou menos alargados, de livre e espontânea vontade e de comum acordo, os três bons malandros decidiram que “nenhum deles cortaria a barba antes do início das férias da Páscoa”. Esta ousada decisão terá sido alinhavada na sequência das férias do Carnaval; o ambiente carnavalesco era forte e convidativo a tais deliberações.

A direção do COA, porém, também não brincava em serviço; a disciplina era levada muito a sério – não era palavra vã. Mas, se os alunos -  mesmo apenas três – decidiram... está decidido! Cumpra-se!
Aqueles três galfarros entenderam também que só conversa não era suficiente! Palavras leva-as o vento! Vai daí... escreveram para que constasse!

O assunto ia mesmo passar ao papel! Pegaram numa vulgaríssima folha de sebenta (comezinho bloco de apontamentos com folhas  pardacentas, não pautadas) e nela escreveram um texto bem (ou mal ) alinhavado pelos três artistas, mais ou menos, como se segue: “Nós, F, F1, F2, abaixo assinados deliberámos e juramos pela honra, uns dos outros, que não cortaremos a barba antes do início das férias da Páscoa”.

Teremos certamente acrescentado: “aconteça o que acontecer”, ou ainda “nem que a burra tussa”! Apusemos local e data e as três assinaturas. Só faltou reconhecer as assinaturas no tabelião, que, à época, já era notário. Utilizando como base um reles papel;… nós éramos pessoas (adolescentes) confiáveis e prescindimos do reconhecimentos… até porque esta atuação implicava o pagamento de determinada verba… e o dinheiro não abundava nos nossos bolsos. A decisão acima citada pode parecer caricata aos olhos dos jovens de hoje porque estão habituados ao regabofe que prolifera nas escolas da atualidade; naqueles tempos, tudo era diferente! Havia DISCIPLINA e como ela era ali geralmente dura. Mas isso são contas de outro rosário!

Passadas (não mais de) duas semanas – creio -  surgiram as primeiras dificuldades que iriam fazer ruir o nosso juramento,  um a um, apesar de a nossa barba não crescer tanto assim que se notasse a olho nu, ao fim duma semana,

O primeiro visado foi, parece-me, o Armando Figueiredo, natural de S. Vicente de Pereira, lá para as bandas de Ovar; a Sr.ª Dª Mª Adília não permitiu que ele entrasse na sala de aula (seria, certamente, Geografia de Portugal) “sem lavar a cara”.

Para não começar a somar faltas, sempre perigosas, o Armando houve por bem cortar a barba. Foi a 1ª baixa! Uns dias mais tarde (não recordo  qual o motivo) o Arlindo desligou-se também, unilateralmente, do citado juramento, barbeando-se.

Eu era então o último (único) resistente. Acontecia que eu tinha, como soe dizer-se, “as costas quentes”
A primeira vez que fui a casa, depois de tal promessa rigorosamente escrita, tive o especial cuidado de perguntar ao meu pai se podia deixar crescer a barba; ele respondeu afirmativamente; entendi, não corretamente, que isso seria suficiente para salvaguardar a minha imunidade. Acontecia que a vontade de meu pai não imperava entre as severas paredes do COA! Ali, graças a Deus, imperava a vontade da Direção... e o resto era conversa!

Todos os sábados, durante o estudo da manhã, o Sr. Correia elaborava cuidadosamente uma lista com os nomes dos alunos internos que pretendiam ir passar o fim-de-semana a casa. Pretender ir não era sinónimo de... ser autorizado a ir. Entre uma coisa e outra havia um longo e árduo caminho a percorrer e,  de vez em quando, surgia uma cilada.

O Sr. Almeida, com a citada lista na mão, entrou no refeitório e a cada um ia dizendo se podia ou não sair do COA, nessa tarde; tinha por base as informações sobre o comportamento e/ou aproveitamento escolar. Chegada a minha vez, ele informou em tom (mais) autoritário:
- “vais a casa, mas cortas a barba durante o fim-de-semana”!
- Se não se importa, Sr. Almeida, eu corto-a no início da próxima semana, quando voltar ao Colégio; – comentei eu – era mais um pedido que outra coisa.
- Está bem! Mas não te esqueças! Proferiu o chefe, encerrando o assunto com a sua reconhecida autoridade.

Foi deste modo que o tal juramento – a nossa nobre decisão – redigida e ratificada numa mísera folha de sebenta, foi ao ar. E tudo o vento levou!

Respeito é bonito! Não havia juramento que resistisse à superior e decisória vontade do Sr. António Almeida, o Homem forte daquela casa!

Saudações colegiais,
Janeiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia

Guiné 63/74 - P11068: O Spínola que eu conheci (29): Depoimento de Jaime Antunes, ex-fur mil, CART 11 / CCAÇ 11 (Paunca, 1970/72)

1. Comentário,  de Jaime Antunes, nosso leitor (e camarada), ao poste P11028:

O nosso General Spínola  fez uma escala em Lisboa e aproveitou para selecionar os comandos para a CART 11, os quais  chegaram em Novembro de 70 a Bissau (os que embarcaram no Ana Mafalda foram os primeiros a chegar; o  Capitão que seguia a bordo conseguiu ficar por Bissau e depois surgiu, e muito bem, o Capitão Almeida). 

Não gostei de Spínola, não só por ter recorrido a Oficiais, Furriéis e Cabos Milicianos que já não estavam em lista de mobilizáveis (2 meses antes eu e o Teixeira tínhamos recusados  150.000$00 para tomar o lugar de um Furriel que era filho de um Coronel). 

E não gostava também porque era prepotente...O  facto de falar primeiro  com os soldados e depois com o Comandante... era uma treta. Por trás... 

Um aditamento, em 1970/72  a CCAÇ 11 / CART 11 esteve por toda a zona Leste. Estivemos ainda em Bafatá,  Bolama, Galomaro, Pirada (antes também éramos viajados). 

 Spínola também era de Cascais (já era meu conhecido). Na recepção à chegada a Bissau disse-me:
- Lamento mas... prometo que quando fizeres 21 meses estás a caminho da Metrópole... 

Foram 21 meses e 5 dias. 

Podia e tinha condições para ser um grande Comandante. Faltou-lhe um pouco de humildade no relacionamento com os seus Homens. Uma nota final, dou-lhe nota positiva e agradeço o Louvor recebido. 

Jaime Antunes
(Ex-Fur Mil Antunes,  CART 11 / CCAÇ 11)



Guiné > Zona leste A> Paunca > Alguns furriéis da CCAÇ 11. O único que era da Guiné, cabo-verdiano,  era o Reis Pires (em primeiro plano, ao centro).  Foto do álbum de Adriano Lopes dos Santos Neto, ex-Fur Mil da CART 3521 (Piche) e CCAÇ 11 (Paunca), 1971/74.

Foto: © Adriano Neto(2011). Todos os direitos reservados.


2. Outros comentários, anteriores, do Jaime Antunes (a quem reitero, mais uma vez, o convite para ingressar na nossa Tabanca Grande, juntando-se assim a outros camaradas da CART 2479, depois CART 11  e depois CCAÇ 11, que já aceitaram um lugar à sombra do nosso mágico e fraterno poilão, como o Renato Monteiro, o Abílio Duarte, o Adriano Neto...):

(i) 14 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9198: Tabanca Grande (311): Adriano Lopes dos Santos Neto, ex-Fur Mil da CART 3521 (Piche) e CCAÇ 11 (Paunca), 1971/74

 (...) Comentário: Olá, uns anitos passados. Li com atenção a passagem por Paunca. O meu Camarada foi um dos que contribuiu para o meu regresso a Lisboa. Fui rendido em Agosto de 72 e o regresso a Lisboa via TAP em 5 de Setembro de 1972. O jovem que me rendeu veio de uma outra Companhia e... foi literalmente "sacado" para ir para a CART 11 (CCAÇ 11 foi alteração que se verificou a meio da minha comissão),  por mim e um comerciante,  de nome João Evangelista,   radicado em Paunca na sua carrinha Toyota. Confesso que não me recordo do seu nome mas foi para me substituir no 4º Pelotão.  (...)


(ii) 23 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2377: Em busca de ... (13): Malta da CCAÇ 11, Paunca, 1970/72 (Jaime Antunes)

(...) 1. Mensagem de Jaime Antunes, a quem saudamos e convidamos a integrar a nossa Tabanca Grande:

(...) Nestas coisas da vida há recordações que sempre perduram. Como muitos dos Portugueses, na minha juventude, também estive em África. Por uma escolha do Senhor General Spínola, 25 Milicianos, no dia 20 de Novembro de 1970, embarcaram no navio Ana Mafalda com destino ao CTIG. Todos classificados nos primeiros lugares dos cursos. Esta situação levantou-nos muitas dúvidas que foram esclarecidas à nossa chegada ao QG. Tínhamos sido selecionados para integrar uma Companhia de Africanos... a CCART 11. Posteriormente e porque uma Companhia de Artilharia... não era ... uma Companhia de Infantaria... o Senhor General ... passou-nos a CCAÇ 11 para que já não houvesse reclamações quanto às constantes saídas de Paunca  para ir reforçar outras zonas.

Fui colocado no 4º Pelotão e ... cheguei em Novembro de 1970 e fui rendido em Setembro de 1972. 
Mantenho contacto com alguns dos elementos que estiveram nessa altura na CCAÇ 11 mas faltam outros a que perdemos o rasto. Manifesto a minha disponibilidade para conseguir reunir mais alguns camaradas (...).

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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11058: O Spínola que eu conheci (28): Figura incontornável da nossa História, que respeito mas não idolatro (Hélder Sousa, ex-fur mil trms TSF, 1970/72)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11067: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (4): Curtas férias em Cacine, CCAÇ 3520 (1)

1. Em mensagem do dia 19 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), enviou mais uma peripécia para a sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)

4.1 – Curtas férias em Cacine – CCAÇ 3520

Na sequência dos acontecimentos relatados no post anterior teríamos então de, na manhã seguinte, nos apresentar no Cais do Pidjiquiti a fim de embarcar num pequeno barco de carga, vulgarmente chamado de “barco turra”, que nos levaria para o Sul (???).
Entretanto tivemos de nos aviar em terra. Distribuíram-nos as G3, cartucheiras atestadas e várias embalagens de munições para G3(???).
Sul, G3, munições à “fartazana”! Iríamos para Gadamael?! A “coisa” já não me estava a cheirar nada bem. Comecei a pensar se não teria sido melhor eu ter ido para Padre!


Eu sou Amanuense, porra!

De seguida, foi-nos fornecido equipamento que me deixou completamente no nível mais elevado da estupefacção!
Foram-nos entregues 2 Máquinas de escrever Messa, devidamente embaladas e acondicionadas, rigorosamente a estrear!
É certo que, naquela Terra, raramente bebia água, mas juro que, naquele dia, o único álcool que tinha ingerido tinha sido o do copo que me serviram à hora do almoço e uma cerveja a meio da tarde, até porque estava em serviço de Sargento da Guarda!

Ó saudoso Raul Solnado, tu que és entendido neste tipo de guerras, diz-me, por favor: 
- “O que vai um grupo composto por, 1 Major comando, 1 Alf. Milº OE, 1 Fur. Milº de Transportes, 1 Fur. Milº Amanuense e 1 Cabo Escriturário, armados e acompanhados de 2 máquinas de escrever, fazer para uma zona onde há “festa da brava”?!

Bom, no dia seguinte, lá pelas 7 horas da manhã, apresentamo-nos no Pidjiquiti de armas e bagagens e embarcamos no tal “iate”. Este teria talvez uns 8 x 4m e era composto por um porão coberto a madeira e uma “cabine” (4 estacas e uma cobertura).
A tripulação era composta pelo comandante (um negro de meia-idade, com o seu cachimbo artesanal sempre na boca) e outros 2 negros, mais jovens.

Quando o sol começava a “apertar”, a única sombra possível era no porão que se encontrava cheio de rações de combate e alguns bidões de combustível e onde se podia cozer pão com algum grau de certeza de êxito.
Um bom marinheiro avia-se em terra e nós, tínhamos trazido para a viagem uma grade de cerveja cujas garrafas, presas a pequenas cordas, penduramos na borda do “iate” e deixámo-las “refrescar” um pouco nas águas do Atlântico.
Claro que as ditas, mesmo “pouco quentes” desapareceram num ápice tal era a sede naquela situação.
Emborcadas as “bejecas” mornas deitamo-nos, em tronco nu, sobre a cobertura do porão.

Está-se mesmo a ver o filme! Uma valente soneca ao sol escaldante daquelas paragens!
Conhecem, com certeza, o que acontece à pele da sardinha quando a metemos no forno completamente coberta com sal? Sai direitinha como se de uma camisa se tratasse!
Pois foi exactamente o que aconteceu com a minha pele do tronco, rosto e pés (tinha descalçado as botas e meias).
Depois, veio a ressaca acompanhada daquela secura de boca tão característica do “pós-moca”. E água, cá dela?

Havia a bordo, junto à “cabine” do piloto, um bidão ferrugento onde a tripulação enfiava uma velha mangueira de plástico e, através da outra extremidade, sugava o precioso líquido (da bolanha?), matando a sua sede.
Com o sol cada vez mais a pino e a língua cada vez mais seca, olho e volto a olhar para o vaivém da tripulação em direcção à “fonte”. Hesito várias vezes, mas vem-me à memória relatos de alguns dos nossos militares que, no mato, para matarem a sede, tinham de afastar os insectos da água da bolanha.
O que tinha ali à minha frente era um luxo comparado com o que se passava no mato. E, vai daí, qual bravo guerreiro enfrentando o inimigo de peito aberto, “tungas”, atiro-me à mangueira, limpo disfarçadamente com o lenço a ponta e enfio-a pelas goelas, sugando avidamente aquela “pomada” refrescante!
Que alívio e, passados 40 anos, ainda não morri!

Surgida a noite, aquela “casca de noz” teve de enfrentar um mar de tal maneira revolto que eu, agarrado a uma das estacas da “cabine”, senti que, por vezes, ficava com as costas a centímetros da linha de água. Isto é: a embarcação quando navegava paralelamente às ondas, inclinava-se de tal modo para bombordo que a onda seguinte parecia ir desabar na minha cabeça. Foi assustador para um marinheiro de água doce como eu, que nunca tinha andado no mar alto! Felizmente veio a bonança, mas aqueles momentos pareceram-me intermináveis.

Na minha mente, sempre o mesmo: “Eu sou Amanuense, carago!”

Entretanto, vindas não sei de onde, juntaram-se a nós outras embarcações do género, formando um pequeno comboio ao qual se juntaram também, à entrada do rio Cacine, duas LDM’s (Lanchas de Desembarque Médias) que nos iriam escoltar. Uma à frente e outra à retaguarda do comboio.
Iniciada a subida do rio, os “canhangulos” que equipavam as LDM’s e que se encontravam na vertical e cobertos com um oleado ou outra coisa do género, foram destapados e colocados na horizontal com os “artilheiros” em posição de combate e apontando para cada uma das margens do rio.

Novamente, na minha mente: “Eu sou Amanuense, carago!”

Navegando lentamente e em ziguezague (por causa dos bancos de areia, julgo eu) lá fomos avançando, sempre de “bico calado” e não me cabendo um “Phaseolus vulgaris no orifício rectal”, até que chegamos ao nosso destino, ao fim da tarde do dia seguinte ao do embarque, tendo atracado pelo “caminho” em vários locais, as restantes embarcações que compunham o comboio.

Tínhamos atracado ao cais de Cacine!

No cais amontoavam-se munições de armas pesadas que a minha condição de “guerreiro do ar condicionado” não conseguia identificar, mas que, pelo tamanho, seriam com toda a certeza de obus.

A recepção foi óptima com um vai-vem de helicópteros (contei 7 evacuações) que vinham buscar feridos para os levar para Bissau.
Os feridos eram provenientes de Gadamael, a cerca de 10 km de distância, mas vinham por via fluvial, em sintexes e zebros, talvez por haver grande congestionamento de tráfego nas estradas da zona.

Em Cacine encontrava-se albergada uma razoável quantidade de elementos da guarnição açoriana de Gadamael que para ali se tinham deslocado incomodados com o barulho que se fazia sentir no seu aglomerado habitacional.

Usavam apenas uns calções camuflados, habilmente confeccionados por um velho alfaiate negro a partir de restos de fardas velhas. Nos pés usavam daqueles “chanatos” de plástico tão do agrado do pessoal indígena. Tinham saído de noite à pressa e sem tempo de fazer as malas, tendo ali chegado com apenas a roupa que traziam no corpo (cuecas). O Major Leal de Almeida e o Alf. Milº já lá estavam a “banhos”. Ali por perto estava instalado um destacamento de Fuzileiros Especiais. Estavam também por lá acampadas as 2 Companhias de Pára-quedistas – 120 e 121. O grupo do Marcelino também apareceu.

Em resumo: Estava tudo preparado para a “festa” e, “pelos vistos”, só aguardavam a minha chegada.

Porra, eu sou Amanuense, carago!

O pessoal de Cacine - CCAÇ 3520, com 23 meses de permanência naquela praia fluvial, aguardava ansioso pela rendição que tardava e, sabedores que foram da chegada de um Fur. Milº do CSJD, logo trataram de saber ao que íamos. Não lhes soube responder, ou por outra, respondi-lhes que também não sabia, no que não acreditaram e esse facto maior desconfiança lhes causou.
Imagine-se o que terá perpassado pelas cabeças daquelas almas quando nos viram armados com 2 máquinas de escrever! Se a isso lhe juntarmos a minha pretensa “recusa” em lhes revelar o “segredo” da nossa missão, quantas congeminações por ali não andariam?!
O que é verdade é que não sabia mesmo e à sua constante insistência a resposta era sempre igual, o que lhes adensava mais a curiosidade.

Lá nos disponibilizaram uma habitação que iria ser adaptada a QG do Major Leal de Almeida e onde, para essa noite, colocaram um beliche duplo com apenas um colchão, ao qual o meu camarada dos transportes logo se “abarbatou”. Tive que a andar na “pedinchice” pois, apesar de ter saído “todo rotinho do último cruzeiro”, não me via a dormir em cima de uma rede de chapas entrelaçadas típica das camas militares.

Alguém me encontrou um colchão ensanguentado onde, tinha morrido um militar de Gadamael e cujo sangue não me pareceu totalmente seco. Recusei.
Valeram-me, então, os Pára-quedistas que, solícitos e bem apetrechados como sempre, lá me cederam um velho colchão insuflável, mas que parecia ter sido atacado pelas traças. Amanuense como sou, ataquei-o logo com fita-cola e ele lá encheu e, num ápice, adormeci.

Na manhã seguinte acordei com o colchão completamente vazio e com o corpo tão dorido que parecia ter dormido dentro duma britadeira em movimento.

Porra, eu sou Amanuense!

Havia agora que retirar o beliche e preparar o gabinete de operações do Major Leal de Almeida, mas com que equipamento?
Lá desencantei uma mesa carunchosa e um banco corrido daqueles usados nas tabernas e estava criado o gabinete.
O Major não fez qualquer comentário ao mobiliário “new style”, mas pediu-me que completasse o “ramalhete” com alguns acessórios indispensáveis para um bom andamento dos trabalhos, tais como: suporte para esferográficas e arquivo de dossiês. Perante a minha hesitação, tipo: “Eu sei lá onde fica a Staples cá do sítio!”, sugeriu-me que fosse junto ao paiol e procurasse por embalagens vazias de granadas, para as esferográficas e caixotes de madeira, para os arquivos e assim fiz.

Colocado o porta-esferográficas em cima da mesa e pregados os caixotes à parede, o gabinete estava pronto para dali saírem as mais elaboradas directivas que iriam, de certeza, acabar com a “festa” na aldeia vizinha.
Foi então que, enquanto arquivava a papelada, dei com um documento que continha o carimbo de “secreto” e que tinha como título “Operação Trovão” e onde eram descritas as acções a levar a efeito.

Li-o apressadamente com receio da entrada abrupta do Major e o que dali retirei foi, resumidamente, se percebi bem e não me falha a memória, o seguinte:

O pessoal “refugiado” em Cacine teria de ser “recambiado” para Gadamael;
O pessoal de Gadamael teria de aguentar nas valas a rações de combate e até ao último homem;
As forças estacionadas em Cacine (eu incluído?!!!!! Eu sou Amanuense!!!) iriam tentar desbaratar o IN que se encontrava algures a bombardear incessantemente o Quartel de Gadamael.

Entretanto o Kako Baldé, talvez sabedor da minha presença naquelas paragens, resolve fazer-nos uma visita.

Lá aparece de camuflado vestido, com o habitual caco no olho, o indispensável pingalim e o seu séquito de ombros reluzentes e com o héli-canhão lá em cima, sempre às voltas.
Exige a presença do Major Leal de Almeida e ali, no meio da “parada”, dá-lhe um valente “bate-barbas” e retira-se sem sequer me cumprimentar (enfim…!).

O Major entra no gabinete e desabafa:
- “Esta “rabecada” ainda se vai transformar num louvor”.

Não fazia a mínima ideia do que se tinha passado, mas suponho que teria a ver com as prolongadas presenças do Major em Cacine (agradava-lhe, talvez, a minha companhia) quando seria suposto, julgo eu, passar mais tempo na “festa”, tanto que, a partir daí, várias vezes o vi com a sua Kalashnikov rumar, via fluvial, a Gadamael e lá permanecer alguns dias.

(Continua …)

AM

Próximo capítulo – (4.2) Curtas férias em Cacine – CCAÇ 3520 (continuação)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11029: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (3): Sargento da Guarda ao QG do CTIG

Guiné 63/74 - P11066: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (5): Às portas da guerra

1. Em mensagem do dia 27 de Janeiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a quinta "Carta de Amor e Guerra" para juntar à sua série.


CARTAS DE AMOR E GUERRA

5. Às portas da guerra 

Bissau, [24] Agosto-65


(…), patinhando na lama e nas águas dos arrozais, encharcado, suado, com os raios solares faiscando e infiltrando-se no corpo com picadelas ferozes, patrulhando áreas à volta de Bissau, dizia eu, motivos tiveste para que eu ao regressar à calma do meu quarto do quartel não tivesse à mão palavras tuas a obrigarem-me a um colóquio reconfortante, a provocarem-me momentos diferentes que quebrassem a monotonia das horas passadas a contar os mosquitos pespegados na cal branca do tecto.
 (… … …) 
Tu és sem dúvida o meu traço de união com aquela vida que eu requeiro. Fazes parte dela, tens parte importante nela. Agora mais que nunca, não nos podemos separar. 
 (…). A ideia de um possível azar que me possa acontecer (…) poder-me-á conduzir (…), a um certo desprendimento motivado por um obcecante (…) “não seria melhor a separação?” (…) “seremos capazes de nos aguentar assim?”. 
(…) já terás pensado o mesmo. (…) minha querida, só nos resta a esperança. 
(…) para nem sequer se pensar em maus acontecimentos, terá de haver vida (…) que nos leve a esquecer a separação, que nos conduza a um tal estado de confiança que o derrotismo nada poderá contra esta fé radical em nós. 
(… … …) 

Bissau: “Do alto do depósito de água de Santa Luzia avista-se ao fundo o casario de Bissau e do Ilhéu do Rei.”
Foto e legenda de Henrique Cabral. © blog: Rumo a Fulacunda – Guiné 65/67.

 (…). Da maneira que isto está, se continuasse sempre em Bissau não correria perigo nenhum. O que acontece é que de vez em quando saio (…) a fazer uns patrulhamentos na região. Ainda não senti o perigo. (…). Como vês, até agora (…) tenho tido sorte. (…) já te disse noutra carta: é muito mais fácil, há de longe muito mais probabilidades de escapar do que de morrer. (…) a ideia de morte (…) não me preocupa. Preocupa-me muito mais a influência que esta minha estadia aqui poderá ter na minha vida futura. Como reagirei, (…) como olharei (…) os factos e os momentos passados nesta malfadada terra, (…) onde somos manipulados por cordelinhos sem tugir nem mugir, quais marionetas (…), para gozo (…) dos espertalhões da primeira fila, (…). 
Tanto de um lado como do outro isto acontece. Mas acredito que o sofrimento é maior do nosso lado. 
Serei eu capaz de me aguentar? Se tiver coragem, ah quanto ela é precisa, deverei conseguir. (…) é de meu interesse saber onde ponho os pés, ver bem com que linhas me coso, viver como observador, o mais possível como observador, continuamente em estado de alerta e de crítica, (…). 
A guerra é uma experiência valiosa, dolorosa experiência. (…). Nada a justifica. Mas às vezes a estupidez humana conduz os acontecimentos a tal estado que ela se torna inevitável. (…). Caídos no meio dela, os homens revolvem-se, põem a claro os seus sentimentos, os seus defeitos e virtudes, (…).
Em que redundará esta minha experiência? Espero, minha querida, resultados positivos.

Bissau, símbolo do poder: Praça do Império, monumento “Ao Esforço da Raça”. 
Vd. (*) Bilhete postal, ed. Foto Serra – Bissau. Coleção de Agostinho Gaspar. Imagem retirada do post 5928, blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Bissau, Agosto-31/65

(…) até ver, tudo me tem corrido da melhor maneira. Com certeza que seria utopia da minha parte considerar que isto me poderá correr sempre assim. (…). O perigo espreita. (…). 
Isto aqui dá muito que pensar e, às vezes, até tem uma certa piada (…) humor negro. (…) certas coisas têm acontecido (…) me abstenho de as criticar aqui (…) por um certo nº de motivos – facilmente (…) depreenderás. (…). [vd. **]


Bissau, Setembro-7/65

 (…). Um mês já se passou. Foi fácil de passar mas (…) a nula vontade de cá estar torna os momentos difíceis. Procuro abstrair-me deste problema e tirar o melhor partido da situação. 
A maior parte dos dias passo-os[a], calmamente, no quartel aqui em Bissau. Lá vem um ou outro dia em que não sei se chego ao fim vivo, partido ou morto. Por ironia, estes são os que passam mais depressa. Vou para as operações suficientemente calmo. Talvez por verificar que morrer é a coisa mais simples, natural e fácil que existe. Vou para o jogo. E vou tentar jogar o melhor possível, esperando também um pouco de sorte. Confio nesta sorte e no meu sentido de jogo. Posso ter um azar? Posso. Mas isto pouco conta. Ninguém vai jogar sabendo antecipadamente que perde o jogo. 
Meu amor, vão ser dois anos difíceis de passar. Mas aguentá-los-emos firmemente. 
(… … …).

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(*) - “Ao esforço da raça “

 Esta expressão diz tudo, até na incongruência do nome dado ao monumento. Naquele tempo já não se usavam oficialmente palavras como “império, colónia” e suas derivadas; tinham sido varridas do vocabulário oficial, por razões óbvias. O regime político vigente usava a expressão “um país multirracial” para definir Portugal e uma outra, mais comum, era “país uno e indivisível que vai do Minho a Timor”.

Sendo assim, nada melhor(!) do que ter um grande monumento “ao esforço da raça” implantado em frente da sede do poder político-militar da Guiné, no centro da principal praça de Bissau, a “Praça do Império”! Quando vi tal coisa fiquei a rir-me para dentro. Patético!

Seria possível que os ideólogos do regime não percebessem que uma coisa daquelas prejudicava a aceitação pelos guineenses da doutrina política que tanto se esforçavam por difundir? Pelos vistos era possível.

Se havia uma “raça esforçada” tinha de existir uma outra, preguiçosa e de pouco valor! E que esforço, tão grande e tão digno de ser elogiado, a “raça esforçada” tinha feito naquelas paragens africanas? O conceito “império colonial” não tinha já sido expurgado da Constituição Portuguesa? É fácil encontrar as respostas.

Sim, a grande maioria dos guineenses não saberia ler tal mensagem. Muito menos compreenderia o seu significado real mas compreendia bem outros sinais deste género, como depressa vim a verificar, sinais fáceis de encontrar em algumas atitudes e relações sociais, as quais em vez de ajudarem o governo a melhorar a situação política, social e militar, não, antes a pioravam.

O mais certo, também, era a palavra “império” pouco ou nada dizer a essa maioria da população. Mas havia uma minoria que tinha capacidade para retirar de tudo isto razões políticas de modo a reforçar e facilitar a sua luta contra a presença portuguesa naquela terra. Coisa que não deveria interessar ao poder político-militar português, penso eu!


(**) - Logo na minha primeira saída do quartel fui procurar um antigo companheiro com quem tinha convivido durante dois anos, o tempo que esteve em Portugal a completar o curso liceal já que na Guiné isso não era possível na altura.

Esperava vir a ter um encontro efusivo. Encontrei-o num café a conversar com três ou quatro amigos locais, brancos. Não quero dizer que fui mal recebido, quero dizer que esperava ser muito mais bem recebido.

Depressa senti a conversa a esgotar-se e o seu desinteresse em se referir à (minha) situação militar. E despedimo-nos com a promessa de ser ele a me contactar no quartel para convivermos um pouco.

Daí a três meses saí de Bissau. Nunca me apareceu e eu também nunca lhe apareci. Tornei a vê-lo aquando do meu regresso, 21 meses depois. Fui despedir-me ao seu estabelecimento. Andava muito atarefado a atender militares que, como eu, embarcariam no “Uíge” dali a poucos dias. Não quero fazer jogo de intenções mas o interesse que ele mostrou pelo que passei naquela terra foi nulo.

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Um dia, pelo meio da manhã, andávamos três furriéis a identificar as “capelinhas” de Bissau e entrámos numa delas. Ao fundo da sala estavam sentados três homens com ar “africanista”, as únicas pessoas ali além de nós. Sentámo-nos perto da saída e começámos a tomar qualquer coisa. Da sua mesa vinham sons indefinidos da conversa que a certa altura subiu de tom e se tornou mais animada, por vezes galhofeira. Ficou a ser possível ouvir alguma coisa do que diziam.

Percebemos que a conversa “metia” militares. Olalá, começámos disfarçadamente a afinar os ouvidos! “Periquitos” que éramos, ficámos curiosos. Que ouvimos?

Ouvimos uma crítica pública a atitudes de alguns militares combatentes. Julgavam eles que nós não ouvíamos? Acho que não se preocupavam com isso. No mínimo, manifestavam indiferença pela nossa presença. Éramos três furriéis fardados, eles sabiam que os podíamos ouvir e não se coibiram de continuar naquela galhofa. Achei aquilo uma provocação.

Um, que parecia o animador, gozava ironicamente com os medos dos combatentes, com as peripécias por que passavam durante as operações, com as suas dificuldades de adaptação, com as surpresas tidas ao depararem com certos hábitos culturais da população (dos “pretos”, ouvia-se), tudo acompanhado por boas risotas. Chegou-se ao cúmulo de se referirem pelo nome a um quadro militar, comparando a triste figura que diziam ele ter feito durante uma emboscada com a de um outro com as mesmas funções numa situação idêntica e que muito elogiavam.

Acho que saímos dali todos enjoados, eu saí.

Que motivos levavam alguma população branca das chamadas províncias ultramarinas a olhar assim para os militares, como seus meros serviçais a quem exigiam o máximo de sacrifícios, não os respeitando e gozando com as limitações de alguns?

Anos mais tarde vim a saber de comportamentos análogos noutros teatros de operações, mais graves do que este de Bissau, nomeadamente em Moçambique, onde se chegou mesmo ao conflito direto entre população branca e militares expedicionários.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11026: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (4): Um mal-entendido (?)

Guiné 63/74 - P11065: Memória dos lugares (210): Também estive na ponte Caium, dois meses, antes de acabar a minha comissão em Camajabá (Abel Santos, ex-sold at, CART 1742, Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69)




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > O Jacinto Cristina com uma bajuda da tabanca de Mulã Dalassi, que ficava a nordeste da ponte.

Foto: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Resposta, com data de 25 de janeiro último,  do Abel Santos a um dúvida nossa, posta à malta da Tabanca Grande, sobre a célebre ponte Malã Dalassi (que sabemos agora ser, nem mais nem menos do que a ponte do Rio Caium, entre Piche e Buruntuma: no vídeo do George Freire, há erro na legenda, é ponte Malã Dalassi, e não Mule Balassi); (*):

Meu caro camarada Luís

Gostei muito de ver o trabalho que recebi em relação ao nosso camarada [George] Freire, ai como eram diferentes as companhias daquela época em relação à nossa.

Falas na ponte Mulã Dalassi, falas na ponte do rio Sira Muriel... eu sinceramente não conheço,  o que sei é que na estrada que liga Piche-Buruntuma existe a ponte sobre o rio Caium e não com o nome que o camarada Freire fala na reportagem, Mule Balassi. Há uns pequenos pontões ao longo da estrada mas nada comparavél com  célebre Ponte do rio Caium que o IN tentou destruir através de morteiradas por baixo da mesma.

Digo-te,  meu caro amigo,  que cheguei a estar destacado com a minha secção na dita ponte para manter segurança da mesma, e na qual havia quatro abrigos, dois de cada lado,  e que foram a nossa casa durante dois meses,  findos os quais fui para Camajabá, local onde acabei a comissão de serviço.

Caro camarada,acho que com esta minha informação fiques mais esclarecido sobre a tua dúvida.
Sem outro assunto, recebe saudações deste tertuliano.

Abel Santos.

(ex-Soldado Atirador da CART 1742,
"Os Panteras", Nova Lamego e Buruntuma
1967/69).
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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11035: Memória dos lugares (209): Fajonquito 2011 - Vestígios da tropa portuguesa (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P11064: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (5): Em Catesse, com o Pepito... Pela primeira vez tive medo!...Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós!

Adicionar legenda
1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero (Alcobaça) e Alice Carneiro (Alfragide/Amadora)...

Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez, região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento.

Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito.






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Catesse > Janeiro de 2012 > A Anabela Pires... Catesse fica na margem esquerda do Rio Cumbijã, a sul de Darsalame.

Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2012). Todos os direitos reservados [, Com a devida vénia...]


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] >  Parte V 

4 de Fevereiro de 2012

Voltemos ainda à minha chegada a Iemberém. Como referi,  contávamos almoçar aqui mas houve uma mudança de planos. Depois de despejar a minha bagagem na casa que me foi atribuída, seguimos em direcção a Catesse. Passámos em Farim de Cantanhez, tabanca onde vive a Alicinha [, filha da Cadi, foto à esquerda], que fazia exatamente 2 anos nesse dia. Lá deixei os presentes que a sua madrinha [, a Alice Carneiro, ]  tinha enviado e cantei-lhe os parabéns. É linda a pequena Alice, aliás como muitas das mulheres daqui. E vaidosas. É um gosto vê-las arranjadas.

Partimos de novo e um percurso de 20 Km levou-nos cerca de uma hora de viagem. O caminho é terrível mesmo nesta época seca. A determinada altura ouvimos chimpazés muito perto da estrada mas não os conseguimos ver. Mais adiante uma grande cobra preta a atravessar o caminho. Teve azar o Pepito! Foi-me sempre afirmando nunca ter visto cobras! Foi logo à chegada! As pessoas aqui dizem-me que elas se aproximam sobretudo na época das chuvas. Não é a minha imaginação e nem o meu pavor, elas existem mesmo, como é natural em África. 

Chegámos finalmente a Catesse, uma tabanca bem mais pequena que Iemberém. Quando nos aproximávamos vi um grupo de jovens com camisolas todas iguais e pensei que fosse um grupo desportivo. Bem, Catesse tinha-nos preparado uma recepção que me deixou, literalmente, de boca aberta. A vinda do Pepito a Catesse foi motivo para feriado local. Ninguém foi trabalhar e todo o povo estava reunido para homenagear a AD. É uma tabanca com uma dinâmica muito especial que ninguém me conseguiu explicar porquê. Há associações de jovens, de mulheres, de tudo e mais alguma coisa. E funcionam. Tinham-nos então preparado um almoço que nos foi servido no terreiro com toda a população à volta. O grupo de jovens dançou, depois foram as mulheres mais velhas e às tantas já eu andava no meio delas a dançar também. 

Depois seguiram-se os discursos. Primeiro dos representantes da população, chefe da tabanca (o chefe da tabanca é sempre um descendente do primeiro homem que se instalou naquele lugar), régulo, Imã (representante local da Igreja muçulmana), dirigentes das diversas associações …. A AD tem vários projectos em Catesse: (i) apoiou a extração de flor de sal, (ii) está a ser reconstruído o porto de onde saem barcos para a Guiné Conacri (que fica aqui mesmo ao lado e com quem há intensas relações mesmo de natureza familiar), (iii) está a apoiar a construção de uma espécie de pensão para os viajantes que vão para o país vizinho, a qual vai ser gerida pela associação das mulheres, enfim, (iv) são muitos os projectos apoiados pela associação com toda a envolvência da população. 


Depois foi a vez dos discursos da AD: primeiro o Adulai que é o técnico local, depois o Abubacar Serra que é o responsável deste sector, depois o Pepito, Director Executivo da AD [, foto à esquerda].. A hierarquia aqui também funciona. No final fomos ver a tal pensão que está a ser construída e foi oferecida, a cada um de nós, uma camisa que nos foi de imediato vestida, mesmo por cima da roupa que trazíamos. 

A determinada altura pediram-me que escrevesse o meu nome num papel em letra de imprensa – tinha acabado de nascer uma menina na tabanca à qual ia ser dado o meu nome. Disseram-me que isso daria sorte, não percebi se a mim se à recém-nascida. Espero que às duas! Não sei se isto se concretizou ou não mas espero em breve voltar a Catesse. 

Pela primeira vez senti medo. Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós. Foi um momento alto da minha chegada a estas bandas e que me deixou profundamente impressionada. Gostaria de vir a perceber por que razão há uma dinâmica tão especial em Catesse. 

Hoje estou aqui a escrever há mais de uma hora, são agora 7 e 42, porque, não sei que acontecimento houve esta noite, das 22 horas até às 6 da manhã foi uma cantoria só! Deve ter sido algo de cariz religioso pois a música não era de baile! Ontem à noite consegui adormecer mas hoje acordei às 5 e tal para ir à casa de banho e não consegui readormecer. No Domingo passado houve um casamento e foi também uma noite de música! Já tinha sido prevenida destes frequentes acontecimentos e até trouxe silicone para pôr nos ouvidos mas ainda não me dispus a usá-lo. Enfim, há muitas noites movimentadas e depois são os galos – assim que amanhece cantam, cantam, cantam!
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A Anabela Pires em Catesse: foi notícia da página (oficial) da AD na Net > Anabela Pires contribiu para o Ecoturismo do Cantanhez

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11042: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (4): Macacos, turistas e envelhecimento activo...

Guiné 63/74 - P11063: Parabéns a você (532): Amiga Ana Duarte; Fernando Franco, ex-1.º Cabo do PINT 9288 (Guiné, 1973/74); Hugo Moura Ferreira, ex-Alf Mil da CCAÇ 1621 e CCAÇ 6 (Guiné, 1966/68) e José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11052: Parabéns a você (531): José Belo, ex-Alf Mil da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70) e Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Guiné, 1971/72)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11062: Contraponto (Alberto Branquinho) (48): Cuando sali de Cuba...

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 9 de Novembro de 2012:

Olá, Carlos
Há tanto tempo!
Passou o Natal, passou o Ano Novo e, até, passou o Orçamento... quer dizer, está aí e só dentro de dias é que a gente o vai conhecer melhor (sem prazer em conhecê-lo!).

Lembrei-me de falar nesta que vai junta, sobre acção psicológica sobre o IN...
É sobre uma canção (que não é de protesto).

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (47)

Cuando Sali de Cuba (1965), na voz de Luis Aguile

"CUANDO SALI DE CUBA…"

Falávamos, há alguns dias, num grupo de amigos, da canção “Lily Marleen”, das várias versões que a letra teve (para além do original alemão) em inglês - inglês/inglês e inglês/americano (porque não havia entre eles nem há acordo ortográfico…) - e que era, languidamente, ouvida dos dois lados do campo de batalha.

Falou-se, então, também das emissões radiofónicas, que, já no fim da Segunda Grande Guerra, os americanos faziam para desmoralizar as tropas alemãs, onde incluíam essa canção (acção psicológica sobre o IN…), cantada por outra Marleen – Marlen Dietrich, actriz alemã… ao serviço por Hollywood.

Lembrei-me, então, que, no meu tempo de Guiné, se falava de um capitão que, quando o quartel era atacado, colocava no prato do gira-discos (dentro do abrigo?) uma canção cubana que os amplificadores de som, colocados junto ao arame farpado, difundiam para o exterior:

(…)
“Cuando salí de Cuba 
Dejé mi vida dejé mi amor 
Cuando salí de Cuba 
Dejé enterrado mi corazón.”
(…)

Alguém se recorda e pode confirmar?
Dão-se alvíssaras a quem encontrar onde e quem, porque convinha que fosse verdade para, também, termos a nossa história para a História.

Alberto Branquinho
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10653: Contraponto (Alberto Branquinho) (47): Momento de poesia com Augusto Gil e a "Jovem Lília Abandonada"

Guiné 63/74 - P11061: (In)citações (47): Correspondência de carácter religioso, personalizada, enviada para militar em campanha (Belarmino Sardinha)

1. Mensagem do nosso camarada Belarmino Sardinha (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), com data de 2 de Fevereiro de 2013:

Olá Luís e Carlos,
À volta com papéis antigos, deparo-me com este aerograma recebido na Guiné e interrogo-me se devo ou não enviá-lo para conhecimento de todos. Decido-me por fazê-lo por achar que faz parte da correspondência que se recebia e como tal é história.

Que fique claro que só o faço por ser o que é, pois não gostaria de ver tratados no blogue assuntos de qualquer religião quando não respeitem à Guiné. Lembrei-me que se tem falado da correspondência das madrinhas de guerra e outra correspondência, entendi por isso que talvez se justificasse este assunto.

Não tenho qualquer ligação religiosa a esta ou qualquer outra irmandade, grupo ou seita, considero-me ainda hoje ateu, embora haja quem diga e me considere agnóstico e laico. Foi e continua a ser para mim desconhecido quem deu os meus dados pessoais - o número mecanográfico está correcto -, bem como quantos militares terão recebido aerogramas deste género.

Parece-me ter definido bem a minha posição, muito embora pudesse dar opinião ou fazer alguns comentários por não me rever, ainda hoje, em nenhuma religião, escuso-me a fazê-lo para evitar más interpretações e eventuais conflituosidades.

Junto a transcrição do texto do aerograma por facilitar a leitura se eventualmente acharem que deve ser mostrada.
Deixo assim ao teu/vosso critério a publicação deste documento.

Um abraço,
BS
(02Jan2013)





Cova da Piedade 31/12/73 
Prezado Jovem 
Que neste momento, quando receber este aero, esteja de boa saúde junto dos seus amigos, são os nossos votos. 
Somos como já deve saber, pelo carimbo que está na parte de fora, “O Correio Áureo”.
O Correio Áureo é um departamento das Assembleias de Deus, formado por dezenas de jovens que pretendem que os militares possam receber através do serviço de correspondência, apoio moral, revistas “Novas de Alegria” e “Caminhos”, literatura, Bíblias, Novos Testamentos etc.
A criação deste departamento foi ideia de um furriel miliciano, membro da Assembleia de Deus de Lisboa, quando prestava a sua comissão na província da Guiné.
A missão do “Correio Áureo” é além de tudo, a de edificar espiritualmente os militares incrédulos. Isto é, aqueles que ainda não andam neste maravilhoso caminho.
Talvez o jovem esteja agora a pensar a que caminho eu me estou a referir. 
Este caminho é Jesus. Jesus é o único caminho que nos conduz ao céu. 
Foi Jesus que nasceu à quase 2000 anos lá em Belém, para depois morrer na cruz do calvário por mim, por si e por todos. 
Foi Jesus que com o seu sangue, que ele lá verteu, naquela amarga cruz, conseguiu ganhar para nós a maravilhosa salvação para a nossa alma. 
Talvez o jovem já tenha pensado, que quando, está longe da família, como acontece agora, não tem ninguém que olhe por si. 
Mas esse pensamento está totalmente errado. 
Há alguém que está sempre a seu lado. 
Há alguém que segue todos os seus gestos, todas as suas acções. 
Deus ama-nos , a todos com um amor tão grande, que ninguém pode explicar esse amor. 
Ele deu-nos o seu único filho Jesus para morrer por nós (como eu já disse ali atrás). 
É por isso que Deus nunca nos deixa só, embora você pense que não tem ninguém que o guarde, nem ninguém que olhe por si. 
Mas nunca se esqueça: Deus vê tudo Deus está sempre ao seu lado. 
Deus quer ajudá-lo, Deus está interessado na salvação da sua alma. 
Ficamos à espera da sua resposta. 
Despedimo-nos com votos de felicidades. 
Que Deus o abençoe. 
(Assinatura ilegível)
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10890: (In)citações (46): Em louvor das canoas nhomincas... e a propósito da notícia do trágico naufrágio de 28 /12/2012, ao largo de Bissau (Patrício Ribeiro)

Guiné 63/74 - P11060: Do Ninho D'Águia até África (50): A mulher e o conflito (Tony Borié)

1. Quadragésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (50)





A foto com que o Cifra inicia este texto, veio-lhe parar às mãos, na região do Oio, na então província da Guiné, nos anos de 1964/66.
Não sabe se são mesmo guerrilheiras, ou se é somente uma foto para impressionar, mas ambas mostram uma cara com alguma angústia, também não sabe se foi o Cifra que a tirou, nas suas andanças de fim de mês, na entrega de material classificado de cifra, pela região onde estavam as forças militares que pertenciam ao seu agrupamento, que estava estacionado em Mansoa. O Cifra acredita que foi ele que a tirou, mas não sabe em que situação ou em que lugar, ou se estava mais algum militar com ele nesse momento com máquina fotográfica, sabe que foi na região do Oio, e talvez em Mansoa, Mansabá, Bissorã, Olossato, Cutia, Nhacra, Encheia, ou qualquer outro lugar, na região do Oio ou próximo. As armas que elas seguram são parecidas com as que as milícias usavam, e que acompanhavam os militares, servindo de guias tradutores. Se os antigos combatentes, que nessa altura lá se encontravam e souberem a sua proveniência, por favor contem a história, o Cifra e os demais agradecem, oxalá que ainda estejam vivas, e esta fotografia, é uma homenagem de respeito e apreciação, pelo seu sofrimento e pela sua coragem, não só delas, como todas as mulheres africanas que de uma maneira ou de outra estiveram envolvidas no conflito, e é assim que deve ser vista.


Agora vamos ao texto:

O Cifra, entende que nos relatos em que lembramos as nossas memórias, os homens, antigos combatentes, sempre falam de si, contam isto e aquilo, às vezes até criam um certo protagonismo. E então as mulheres, não estiveram por trás dos homens, não sofreram, não sentiram a ausência, não ficaram viúvas, não ficaram sem noivos, namorados, filhos, irmãos, netos, não choraram a ausência do marido, não ficaram sozinhas, às vezes com filhos bebés? E não foram só as mulheres dos militares europeus, foram também as mulheres africanas, das famílias dos guerrilheiros, isto é uma verdade, que alguns de nós, mas infelizmente poucos, ainda lembramos. Somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que não desejo, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas vou mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde o Cifra fala da mulher, portanto cá vai:

“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cinta para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.

Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”.

E agora, outro relato tirado de outro texto:

“Em Portugal, o Cifra, visitou a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia: 
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”.


Estes relatos exprimem dor, angústia e sofrimento, da mulher, tanto africana com europeia, e o Cifra acredita, que não existe nenhum ser humano, por mais estudos e experiência que tenha, que esteja qualificado para analisar o que ia na mente destes seres humanos, que perderam os seus entes queridos.

Só para terminar, o Cifra fez o arranjo desta foto que é uma simples homenagem À MULHER, que de algum modo, esteve envolvida no conflito, tanto africana como europeia, que colocou frente-a-frente, os militares de Portugal contra os guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.

O Cifra fez um arranjo com uma cara jovem, não expressando muita alegria, porque nós também éramos jovens, quando lá nos encontrávamos, e a nossa família, tanto a que ficou na Europa, como a que vivia em África, sabendo que os seus estavam envolvidos num conflito armado, como era de prever, também não expressavam muita alegria.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11044: Do Ninho D'Águia até África (49): Eram guerreiros (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11059: Facebook...ando (23): Joaquim Rodrigues, ex-1º cabo, CCAÇ 2588 (Mansoa, Jugudul, Bindoro, 1969/71), reformado da Marinha Mercante



"O meu navio [,ex-Funchal]. Não há ninguém que o salve daquele cais podre, a cair aos bocados. Estava a empresa a pagar mais de 4 mil euros ao porto de Lisboa..." (Foto e legenda: Joaquim Rodrigues. Com a devida vénia...)


1. Mensagem colocada, hoje,  na nossa página do Facebook, Tabanca Grande Luís Graça, pelo nosso leitor (e camarada) Joaquim Rodrigues, reformado da Marinha Mercante, nascido em 1947, residente em Corroios, Seixal:

Bom dia,  camarada Luís. Eu sou ex-1º cabo Joaquim Rodrigues, da  Companhia de Caçadores 2588, que esteve em Mansoa, Jugudul, Bindoro, etc. 

Estou impressionado com tanta documentação, permitindo conhecer tantos camaradas que estiveram comigo na Guiné, à  distancia dum clique.

É sempre bom rever o passado e ver fotos por onde passamos .

Gostava que me dissessem se o capitão da companhia, Fernando Amaral.Sarmento, ainda é vivo. Era um bravo capitão.

Eu,  depois quando regressei a Lisboa,  fui trabalhar como empregado de mesa para os .navios,  onde estive até 2012 (#). Tenho uma reforma de miséria- há meses que não consigo comprar os medicamentos todos para o coração a minha mulher que não trabalha e tenho uma filha com 18 anos na escola,  é uma vida complicada.

Tanta gente que morreu para nada. Eu moro em Corroios,  na margem sul.

Um abraço a todos J.R.
Página no Facebook:
 www.facebook/joaquim.rodrigues.50552338


(#) Foi garçon na Classic International Cruises,  de janeiro de 1989 até 2012. [A empresa] Classic Internaternational Cruises  foi fundada em 1985 pelo saudoso armador grego sr. Potamianos,  falecido no ano passad. Um grande amigo e patrão. O primeiro da frota foi o Funchal que estava no mar da Palha [, estuáriod o tejo,] a aprodecer com o fim da marinha mercante. Este navio nasceu em 1961 na Dinamarca: tem 50 anos de história,  milhares de passageiros .felizes e milhares de milhas nos hélices que neste momento não os têm. E o futuro ninguém sabe. Joaquim Rodrigues, waiter no Funchal desde 1967. [J.R.]

2. Comentário de L.G.:

(i) Camarada J.R., sê bem vindo!... É verdade, tens aqui a malta da Guiné do teu/nosso tempo, ao alcance de um clique. Mas não penses que isto nasceu de geração espontânea. É trabalho de muitos anos (nove!) e de uma vasta equipa... Também tu podes fazer parte desta "tripulação": a jóia de entrada são 2 fotos tipo passe + 1 história.... Já somos mais do que o teu batalhão, o BCAÇ 2885.

Infelizmente, sobre a tua CCAÇ 2588, ainda temos poucas referências, contrariamente a CCAÇ 2589, que foi comandado pelo nosso grã-tabanqueiro Jorge Picado, então com 32 anos, eng agrónomo, pai de quatro filhos Devemos ser mais ou menos da mesma altura. Eu vim no T/T Niassa, em 24 de maio de 1969. A minha companhia era a CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12). Desejo-te boa reforma, apesar das contrariedades e vicissitudes da hora presente. Vejo que as saudades do teu tempo de marinha mercante são mais do que muitas. É triste ver um orgulhoso navio  da nossa grande frota da mercante mercante estar a apodrecer e ir um dia destes para a sucata. Espero que Portugal e os portugueses ainda voltem a descobrir o caminho marítimo... para o Futuro!

(ii) CCAÇ 2588: Mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 7/5/1969 e regressou a 25/2/1971. Esteve em Mansoa e Jugudul. Comandantes>:  Cap inf  Fernando Amarl Campos Sarmento, cap inf Luís da Piedade Faria, cap mil art Armando Vieiras dos Santos Caeiro. Pertencia ao BCAÇ 2885 (Mansoa) (Comandante: ten cor inf João Pedro do Carmo Chaves de Carvalho).

Outras unidades orgânicas deste batalhão: CCAÇ 2587 (Mansoa, Jugudul, Mansoa, Porto Gole) (cap mil art Lourenço Gomes de Campos); e CCAÇ 2589 (Mansoa, Cutia) (Comandantes: cap inf  Francisco António Merndonça Martins Vicente; cap mil art Jorge Manuel Simões Picado)
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P11058: O Spínola que eu conheci (28): Figura incontornável da nossa História, que respeito mas não idolatro (Hélder Sousa, ex-fur mil trms TSF, 1970/72)

O SPÍNOLA QUE EU CONHECI

 por Hélder Sousa [, foto à esquerda, no seu quarto em Bissau, quando era fur mil trms TST,  nov 1970 / nov 1972]]

Esta série tem dado a oportunidade para que uma quantidade e diversidade notável de camaradas se tenham pronunciado sobre o tema.

E as intervenções têm sido desde o simples ‘conhecimento’ pelo contacto visual, pelo contacto pessoal directo, até às diversas considerações que a figura de António Spínola suscita. (*)

Eu também tenho um “Spínola que conheci”. Mas não tenho a menor dúvida em afirmar que António Spínola (aquilo que foi antes de Brigadeiro, o Brigadeiro, o General, o Marechal, o ‘caco Baldé’, etc.), é uma figura incontornável da História de Portugal e não pode, nem deve ser ignorado.

Estive perto do Comandante-Chefe do CTIG, António de Spínola, que me lembre, por duas vezes.

(i) Em Piche, fevereiro de 1971

A primeira foi em Piche e disso já dei conta num artigo que enviei para o Blogue a propósito do Carnaval. Nesse artigo relatei que, em consequência da Acção 'Mabecos’ ocorrida em Fevereiro de 1971, por ocasião do Carnaval desse ano, entre 20 e 22 de Fevereiro, o General Spínola ‘aterrou’ em Piche. E foi lá porque o que deveria ter sido o operacional responsável no terreno pela referida operação, Major cav Mendes Paulo (operação essa que correu bastante mal em termos organizacionais e também por atitudes, digamos assim, menos correctas por parte de ‘oficiais superiores’, daqueles que supervisionavam por via aérea a ‘progressão’ no terreno), quando regressou a Piche no final da referida operação, em atitude ostensiva de desagrado por tudo o que tinha acontecido, arrancou os seus galões de Major, deitou-os para o caixote de lixo que estava perto da porta do seu quarto, fechou-se nele e recusou-se a sair de lá a não ser que fosse o próprio Comandante-Chefe a ir ter com ele. Tudo isto foi visto e falado por muita gente.

E foi o que aconteceu, o General Spínola deslocou-se a Piche, não me recordo agora se foi logo no dia seguinte, mas creio que sim, dirigiu-se directamente ao alojamento do Major, conversaram, e depois o Major acabou o seu isolamento. Havia quem dissesse que o General tinha o Major de Cavalaria Mendes Paulo em alta estima e consideração e que se devia a essa estima mútua o facto das “Chaimites” terem ido para a Guiné.

Como se percebe da situação, ‘conhecer o Spínola’, nestas circunstâncias, foi só de longe, mas deu para ver e confirmar tudo aquilo que já aqui se tem dito sobre a sua pose, a sua figura, o seu carisma, a sua capacidade de suscitar a admiração e o reconhecimento por parte dos soldados.



O Capitão [Raul] Folques, até então 2º Comandante do Batalhão de Comandos, a receber das mãos de Spinola os galões de Major do Almeida Bruno. Uma cerimónia original. Foto do livro Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80, de Manuel Bernardo.  Com a devida vénia aos Coronéis Bernardo e Raul Folques e ao General Almeida Bruno. [Virgínio Briote].




Guiné > Bissau > Santa Luzia > Quartel do Agrupamento de Transmissões > 1972 > Foto do álbum do Sousa de Castro.

Foto: © Sousa de Castro (2005). Todos os direitos reservados

(ii) Na inauguração do Quartel do Agrupamento de Transmissões, em Santa Luzia [, finais de 1971 ou princípios de 1972]


A outra vez em que estive com Spínola foi aquando da inauguração do Quartel do Agrupamento de Transmissões, em Santa Luzia, [Bissau,] não me lembro agora da data.

Mas lembro-me bem das peripécias relacionadas com isso. Eu integrava a ‘guarda de honra’ e fiquei posicionado quase na ponta direita das tropas que estavam mais próximo e em frente ao palanque onde o General ia discursar. Podia assim vê-lo quase de perfil do seu lado esquerdo, a uns escassos 4 metros.

Em certa altura do discurso - parece que o estou a ouvir - Spínola diz, com a encenação habitual, ou seja, de braços abertos, dobrados pelos cotovelos, como quem está a acenar, agradecendo, com a sua voz meio rouca, meio gutural, marcando bem as pausas:

- “porque aqueles …”

- “que dizem …”

- “que o Exército …”

- “é uma máquina acéfala…”

Nisto, um ruído vindo da máquina do operador fotocine indicou que houve um problema. Fita partida? Encravamento? Já não me recordo, mas isso passou-se exactamente à minha frente pois vi claramente os olhos do nosso General faiscarem, quase fulminando o operador que estava perto de mim, em clara reprovação pelo sucedido, e manteve a pausa do discurso enquanto resolveram o problema. Breves instantes é certo, mas naquelas circunstâncias pareciam uma eternidade.

Resolvido o problema, o General retomou o ‘fio da meada’, e agora com o pingalim na mão esquerda recomeçou:

- “porque aqueles …”

- “que dizem …”

- “que o Exército …”

- “é uma máquina acéfala…”

- “em breve irão ver que assim não é!”

Reparem que esta última frase era a que faltava antes, mas ele achou por bem fazer todo o discurso.

Como disse, não tenho bem presente a data do acontecimento, inauguração do Quartel do Agrupamento de Transmissões, o qual deve ter sido no trimestre final de 1971, inícios de 1972, mas quem quiser ler nas entrelinhas pode ver já aqui, principalmente por essa frase final, a promessa/ameaça de maior protagonismo pessoal ‘em breve’…

Estes foram os dois momentos em que estive mais perto do Comandante Chefe, General António de Spínola. Entram portanto, naturalmente, na categoria do “Spínola que conheci”.

Mas há outros aspectos que podem ser chamados à consideração.

Que António de Spínola é uma figura incontornável da nossa História, disso não tenho nenhuma dúvida e até já o referi lá mais acima. Que o seu percurso de vida é controverso, também acho que esta afirmação, em si mesma, não tem contestação. Tem, quanto a mim, entre outras coisas, um grande mérito, trata-se de uma pessoa que procurou ‘ter opinião’, procurou agir no seu tempo, ou melhor, nos seus tempos e, já se sabe, só não erra quem não faz.

Agora, se me perguntarem se sou fã, como agora é moda, do Spínola, ou se sou seu detrator, o que direi?

Tenho que saber de que Spínola se trata.

Do ‘jovem Spínola’ fascinado pelas fardas, pela organização, pelas práticas do Exército Alemão dos anos 30-40? Do Spínola da Guerra Civil de Espanha? Do Spínola em Angola? Do Spínola na Guiné? Daquele que implementou a política de “Uma Guiné Melhor” procurando ganhar a população para o ‘lado’ de Portugal tentando fazer em poucos anos o que não fora feito em séculos? Daquele que implementou a “acção psicológica”, umas vezes exaltada, outras vezes rejeitada? Quantas vezes não se ouviu o “Zé Soldado” dizer “o que faz ‘isto’ é a filha da puta da psícola, agora já nem se pode dar uma chapada num cabrão dum preto”? Do Spínola que escreveu “Portugal e o Futuro” em que foi capaz de apontar caminhos que, na prática, eram contra a prática governamental que afinal tinha seguido toda a vida? O Spínola que se envolveu em conspirações?

A vida de um homem é um balanço complexo, não se pode ‘agarrar’ apenas num determinado tempo e espaço, é todo o conjunto. Tem todo o mérito de não se acomodar, de empreender uma constante evolução, de raciocinar e, pelo menos aparentemente, mudar quando entendeu dever mudar.

É um elemento de referência de uma época. Mas a minha consciência diz-me que o devo respeitar mas não o posso idolatrar.

Um abraço para toda a Tabanca!

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

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Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 23 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

(...) Referência à Acção Mabecos, feita pelo Fernando de Sousa Henriques, ex-Alf Mil Op Esp, no seu livro No Ocaso da Guerra do Ultramar, obra em que retrata a história da sua Unidade, a CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, Canquelifá, 1972/74. Esta acção, em que tomou parte o BCAV 2922, em 22 de Fevereiro de 1971, é descrita como tendo sido de escolta e de segurança a forças de artilharia no trajecto Amedalai - Sagoiá - Rio Sagoiá - Rio Camongrou - Piche 4E545 - Rio Nhamprubana - Piche... As NT formavam 4 Agrupamentos, sendo o primeiro comandado pelo Major Mendes Paulo (...)

(...) As forças das NT foram comandadas pelo Major Mendes Paulo (à data oficial de operações do BCAV 2922, homem muito conceituado no seio da Arma de Cavalaria, da confiança do General Comandante-Chefe, falecido em 6 de Setembro de 2006 e autor dum livro intitulado “Elefante Dundum”), que o IN “composto por brancos e pretos sujeitou as NT a forte emboscada da qual resultou 3 mortos, 1 desaparecido (“apanhado à mão”), 2 feridos graves, 3 feridos ligeiros e a destruição de um Unimog e uma White”, sendo que é indicado terem sido infligidos ao IN 6 mortos e vários feridos. (...)

Vd. também poste de 25 de julho de 2012 >  Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto

(...) Comentário de António J. P. Costa.

(...) Olá, Camaradas!... Conheci o major Mendes Paulo que passou à reserva a seu pedido, depois desta comissão. Creio mesmo que ainda meteu o requerimento durante a comissão. Era um homem sério e íntegro, embora tivesse "o seu feitio". Escreveu um livro e CD que se chama "O Elefante Dundum" em que relata assuntos tão interessantes como a aquisição/experiência das Chaimites, ou o uso de dois carros de combate M5A1 que estavam para ir para a sucata e que ele recuperou e usou em Angola, com certo êxito.
Enfim um livro interessante. Pena que tenha sido edição de autor, mas na BibEx existe e pode ser consultado. Um Ab.
António J. P. Costa


Quinta-feira, Julho 26, 2012 3:20:00 PM

(**) Vd. poste de 13 de setembro de 20006 > Guiné 63/74 - P1067: Morreu o major Mendes Paulo (BCAV 2922, Piche, 1970/72) (José Martins)

(...) Major de Cavalaria JOÃO LUIS LAIA NOGUEIRA MENDES PAULO, que foi Oficial de Informações e Operações no Batalhão de Cavalaria nº 2922, oriundo do Regimento de Cavalaria nº 3 de Estremoz.

Chegou à Guiné em 23 de Julho de 1970 e assumiu o sector L 4 - Piche em 12 de Agosto de 1970. Regressou à Metrópole em 20 de Junho de 1972.

É autor do livro 'Elefante Dundun', que conta as suas aventuras em Macau, Angola e Guiné. O livro é acompanhado de um DVD, que contou com a colaboração de seus filhos. (...)


(***) Último poste da série > 2 de fevereiro de 2013 > Guimé 63/74 - P11043: O Spínola que eu conheci (27): Depoimentos de António Rosinha / António J. Pereira da Costa / José Martins / Augusto Silva Santos / José Manuel Dinis