segunda-feira, 20 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17159: Notas de leitura (939): "Irmãos de Armas", por António Brito, Clube de Autor, 2016 (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2017:

Queridos amigos,
António Brito é um dos nomes consagrados da literatura da guerra colonial, devemos-lhe uma obra-prima titulada Olhos de Caçador, seguramente associado à sua experiência de paraquedista, foi combatente em Moçambique e participou em algumas das mais importantes operações em território moçambicano.
Para quem duvida que esta literatura já disse o que tinha a dizer, "Irmãos de Armas" irá surpreender os mais exigentes e os mais céticos, é um notabilíssimo romance, os Rolling Stones vão ser conhecidos desde as suas infâncias duríssimas, vamos acompanhá-los em operações arriscadíssimas e assistir ao seu triunfo, e depois o definhamento no regresso.
Como se escreve na capa do livro, a guerra transformou-os em matilha de caçadores, ninguém os treinou para viver em paz.
Que grande romance!

Um abraço do
Mário


"Irmãos de armas", por António Brito: 
Um notabilíssimo romance sobre a guerra colonial, do antes ao depois

Beja Santos

“Irmãos de Armas”, por António Brito, Clube de Autor, 2016, é um romance assombroso, daqueles que vai constar no conjunto das obras incontornáveis da literatura da guerra colonial. Devemos a António Brito uma obra-prima, um dos seis mais de sempre, "Olhos de Caçador", um herói paraquedista em Moçambique. Em Irmãos de Armas voltamos a Moçambique, vamos acompanhar a ascensão e a queda dos seis Rolling Stones, as pedras rolantes com quem se podia contar para as operações mais temíveis. Iremos à infância dura de todos estes futuros paraquedistas, no final seremos convocados para ajuizar a sua hecatombe e a homenagem que lhes prestam as mulheres amadas, mas nem sempre consideradas.

O narrador é Alex Baldaia, o alferes que comandou esta unidade combatente que percorreu os territórios mais arriscados de Moçambique, para destroçar operações da FRELIMO, arruinar-lhes equipamento de vária ordem ou laquear-lhes as redes de abastecimento. Alex vai remexer na cinza fria ao escrever o seu caderno de memórias em que um punhado de heróis condecorados, ao regressar, se tornou numa lista de pobres diabos dispersos na multidão, alucinados, traumatizados, desencontrados, delituosos.

Tudo vai começar no Dondo, Moçambique, em Setembro de 1970. A unidade dos Rolling Stones vai viver experiências emocionantes. Logo no Planalto dos Macondes, é aí que vão conhecer Filipe Maltês, Milhafre de seu nome de guerra, um piloto de helicóptero que será o companheiro de todas as sagas. Vão resgatar um desertor da FRELIMO, traz no alforge segredos comprometedores para a guerrilha. Logo o leitor irá mergulhar no horror da guerra, e arrepiar-se com as consequências na morte de um gato. Os nomes dos Rolling Stones só terão importância para lhes conhecermos as vicissitudes da vida civil, no antes e depois. No horror da guerra eles dão pelo nome de Jonas, Marradas, Cochise, Lince, Príncipe, movem-se com metralhadoras, bazucas e granadas diversas. A narrativa é compulsiva, uma autêntica montanha russa entre jovens que fogem da miséria, que emigram para os locais mais inacreditáveis mas também os mais acreditáveis, desde a América dos Peles Vermelhas até ao Barreiro. Transformaram-se em máquinas de guerra, toda esta narrativa buliçosa, explosiva, todo este linguajar de caserna socorre-se de prosopopeia, parágrafos rápidos, secos e disparados para meter o leitor no âmago das andanças, verdadeiras correrias na caça ao homem. Vamos conhecendo-lhes o passado, entremeado por cartas ou diários de mulheres influentes que quebram na trama narrativa o choque dos combates, das perseguições, das matanças. Os Rolling Stones devem ser tidos em alto conceito pelos comandos das forças armadas, dão-lhes as missões mais arriscadas, pelo caminho destroem tudo e põem as colunas guerrilheiras viradas do avesso.

Príncipe é um alferes paraquedista culto, medularmente líder, de instinto felino, um verdadeiro irmão mais velho desta pequena fraternidade. Movem-se como enguias, estes Rolling Stones, desembaraçados e expeditos, percebemos melhor a naturalidade do seu heroísmo quanto mais lemos sobre o que passaram na infância, como se endureceu o coiro e se fez um saber de experiência feito. É essa uma das notabilidades da narrativa de António Brito, não há tempo a adormecer ou esfriar a leitura, ou estamos nas profundezas de um Portugal paupérrimo ou saltamos de helicóptero para entrar na mata na caça ao homem ou resgatar algum dos nossos, que até pode ser piloto de helicóptero ou de T6. Liquida-se um grupo na Tanzânia e destrói-se todo o armamento, a escrita é envolvente e ribombante:
“Um vómito de terra e árvores jorrou do solo e elevou-se no ar. O chão fendeu-se em rasgões bárbaros, os túneis romperam-se como tripas podres cheias de peidos, vomitando gases, golfadas de trotil e ferro. Toneladas de morte destinada aos portugueses fundiram-se num pulsar da retina. Um eco de catástrofes espalhou-se pelas encostas, atordoando o vale. Reverberou mesmo depois de o solo em ruínas ter morrido desfigurado.
Da arriba nada restou. A aba encostada às cabanas ruiu como um bano falido. Naquele sítio a geografia mudara de lugar. Os mapas terão de ser refeitos.
Espalhados pela encosta, em cima das árvores, distinguimos restos de empenagens de rockets, aletas de granadas de morteiro, ferragens de metralhadora, motores de propulsão dos Strela.
Saímos dali com o coração num alvoroço.
Tínhamos aniquilado a morte”.

Este grupo de mosqueteiros audazes aproveita as pausas para frequentar bordéis, beber cervejolas, comer do bom e do melhor. Assiste ao desenvolvimento da guerra, a FRELIMO já não está só no Norte, avança para o Sul e Oeste de Moçambique, mais uma razão para os Rolling Stones destruírem corredores de abastecimento e pôr os guerrilheiros em fuga. Há quem já esteja a fazer segundas comissões, caso do sargento Sorraia, um homem da lezíria que não se ajeitou à vida de casado na Ribeira de Santarém, gosta de espalhar a sua adrenalina, não teme as balas nem a sede nem os reencontros com os frelimos.

Findo o heroísmo, em Fevereiro de 1972, regressam e a paz foi para todos eles uma tragédia. “Juntos sobrevivemos a mortes e desvarios, realizámos façanhas de epopeia que nos transfiguraram para sempre. Sabíamos que se fôssemos vivos, estivéssemos perto ou longe, não íamos faltar à chamada. Nisso podemos estar seguros, promessa feita a um camarada que combateu ao nosso lado, nos remendou as feridas do corpo e nos carregou às costas, dura mais que um talho rasgado na pedra bruta”. Alex fará a demanda de todos os seus camaradas. E no fim, para pasmo do leitor, serão as mulheres dos Rolling Stones que se encontram para os lembrar. O país de onde partiram ignora-os.

António Brito com Irmãos de Armas vem recordar-nos que a literatura da guerra colonial ainda está de muitíssimo boa saúde.
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Nota do editor

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