Oficial e cavalheiro (9): Voando nas Nuvens
Um novo mundo começou a desvendar-se, surpreendente, como nunca. Chegara a hora de amar e de ser amado por uma mulher, numa descoberta constante, nos momentos, tão furtivos, que sobravam da vida do quartel.
Pela primeira vez, sentia-me a entrar na dimensão da vida que o seminário me negava. Em vez do enlevo da consagração ao amor místico de Jesus, era a realidade concreta de duas pessoas que se iam comungando a mesma vida, até à união total… União que tornava cada vez mais difícil a separação e reclamava a presença física um do outro.
Por isso, todo o tempo a partir das 5 horas da tarde de cada dia, durante a semana e os fins de semana eram, sofregamente, partilhados. Não houve recanto, rua ou passeio de jardim do Funchal que não tivesse sido palmilhado por nós, num diálogo inesgotável, mesmo quando os lábios se calavam.
Pela primeira vez, era a realidade feminina que eu imaginava e sonhava, distante, que se me abria, momento a momento, como doce complemento do meu ser. Parecia termos encontrado em cada um, toda a riqueza do mundo que nos faltava.
A sintonia do pensar e do querer era total. O primeiro mês tinha-me transfigurado. O Gonçalves deu conta disso e confessou-mo:
- Eh, Gomes, estás completamente mudado, para melhor...
Os meus receios e complexos desapareceram, por encanto. Eu era completamente eu, em toda a parte. Toda a vivacidade, abafada em mim, despontou natural, reatando-se com o que eu era desde a minha infância.
Ao fim de um mês, veio a apresentação à família. Uma família bem cotada na cidade, dona da melhor oficina de automóveis da ilha, no Funchal. Os pais e mais três irmãos. Uma irmã, mais velha. Vários tios e primos.
A formação, porém, era simples, tal como a da …, quase a roçar o primário. Esta foi a primeira névoa a ensombrar o idílio…Ela tinha apenas a 4ª classe, por não querer estudar mais.
Podia muito bem acontecer que aquela falha fosse compensada por tudo o resto. As semanas sucederam-se, em constante observação.
Oficial e cavalheiro (10): A Descida à Realidade
As nuvens fragrantes do primeiro entusiasmo, natural, foram-se dissipando, lentamente, deixando ver mais claro os recortes reais de cada um.
Para lá do encanto pessoal que os olhos liam, silêncios e saltos escuros, foram quebrando, dissonantes, a melodia que envolvia o nosso viver.
A dúvida e insatisfação começaram em luta com as expectativas já criadas; a percepção de que um forte instinto de libertação do cerco insular ampliava, em muito, todo o fascínio demonstrado, foram minando, no dia a dia, as bases do sonho já construído.
De súbito, veio a ordem de regresso ao continente. Para Évora, RI 16 (**), em dia certo daquele mês de Abril.
[Foto à direita: Évora > A Praça do Giraldo em 2006 > "De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo" (J. L. Mendes Gomes)…
Foto: Luís Graça (2006).
Ali, formar-se-ia um batalhão para o Ultramar. Apesar das mil promessas, a separação tornou-se inevitável. A nossa tenra relação passou a assentar na correspondência escrita e um telefonema, de vez em quando.
[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
2. Comentário de L.G.:
Este, em princípio, é o último poste da série... Não sei, minha cara amiga Felisma Costa, se se pode concluir que foi uma história de amor com final feliz... Todas as histórias de amor são bonitas enquanto duram. Muitas, e para mais neste tempo, levavam ao altar. Esta, não, pelas razões que o autor aponta ou sugere... Mas ele tem (ou ficou com) memórias felizes dessa primavera funchalense, no já longínquo ano de 1964... (Espero que a menina também).
Ontem a Felismina tinha escrito (e disse tudo, em comentário) (*): "Quero saber o resto da história! Muito bem descrita, como sempre, entusiasma... e deixa-nos suspensos... Se cada um cada um de nós, contasse as suas, este Blogue deixaria de ser um Blogue de HISTÓRIAS de guerra, para se transformar no Blogue do Amor. Mas, ainda bem que alguém se lembra de falar de amor! Sem ele, que graça teria a vida?...Espero o final da História." (...).
A pedido da Felismina, e de mim próprio e demais famílias da Tabanca Grande, espero que o Joaquim Luís, o nosso camarada do caqui amarelo (nessa época ainda não se ia de farda camuflada para a guerra...) nos leve no barco (da imaginação) com ele, e com os seus netos, e inclusive nos mostre um bocadinho de Bissau desse tempo... e nos fale até dos amores que eventualmente lá teve, tentando esquecer a menina do Fiat 600, cor de café com leite,(...), leve como uma andorinha, alta, esguia e graciosa como uma garça, de cabelos pretos a escorrer, compridos e sedosos, sobre os ombros, (...) linda como uma orquídea (...).
Não sei, meu alferes, se é pedir lhe muito... já que este blogue tem tendência para se transformar em "voyeurista"... De qualquer modo, fica a série em aberto... aguardando "novo material"... LG
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Notas de L.G.:
(*) Último poste da série > 17 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7298: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (6): Funchal, 1964: As minas e armadilhas de Cúpido
(**) O canário de caqui amarelo, como ele próprio se baptizou, pertenceu à companhia independente CCAÇ 728: mobilizada pelo RI 16 (Évora) partiu para a Guiné em 8/10/1964 e regressou a 7/8/1966. Esteve em Bissau, Cachil, Catió e,d e novo, em Bissau. Comandantes: Cap Inf António Proença Varão; Cap cav Ramiro José Marcelino Morato; Cap Inf Amândio Oliveria da Silva.
Fonte: Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso: Os anos da guerra colonial: volume 5: 1964: três teatros de operações. Matosinhos: QuidNovi, 2009, p.123.
2 comentários:
Caro Mendes Gomes!
Tenho acompanhado as cartas aos netos de um Palmeirim que comigo fez a Guerra.
Pois é também percorremos caminhos comuns. Em Catió, Cufar, Cadique, estrada de Cobumba, Ganjola, ainda passei dois dias no forte Apache do Cachil, enquanto vós fosteis ao Tombali, Darsalame onde ficou o Sasso no dia do aniversário do Oliveira e Silva.
O hoje coronel Oliveira e Silva ainda lá vai andando por Elvas e pela minha terra Vila Fernando, onde por vezes nos encontramos falando de fardas amarelas, mas operacionalmente de camuflado.
O Gonçalves que julgo ser o de Campo Maior, já não está entre nós.
Quando visito o meu neto em Campo Maior também com os meus amigos por vezes se fala do Gonçalves.
É verdade fui furriel miliciano dos "Lassas" C.CAÇ.763 do Capitão Costa Campos. Também já me encontrei uma vez na Verney em Oeiras na apresentação de um livro do Cor. Amaro Bernardo, com o Cor. Casanova do 619. Enfim vamos recordando tempos mal vividos, mas que nos deixaram grandes recordações.
Mudando o azimute, de Lamego a Cufar e vice versa também voaram centenas de cartas e aerogramas. Juventude muito forte e de doação total.Não resultou!
A flor rosa em botão ainda. Foi chamada pelo Criador, apenas com vinte e quatro anos. Que descanse em Paz e a terra lhe seja leve, por tudo aquilo que me deu.
Um abraço,
Mário Fitas
Muito Boa-noite, Sr. Mendes Gomes!
Pois é!
Fiquei triste com o final da história, ainda mais que, (como diz o Prof. Luís Graça), quase todos os romances de amor daquele tempo, levavam ao altar.
Lá deve ter as suas razões, para terminar assim, uma série fantástica, de cartas para os seus netos.
Mas, se é assim que pretende terminar esta série...assim seja!
Os meus parabéns!
Os meus sinceros parabéns, pelo que tive o privilégio de ler.
Tal como o Prof. Luís Graça, e muita gente desta Tabanca, fico esperando ansiosa,uma segunda série.
Um Abraço Fraterno e grato da
Felismina Costa
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