segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7511: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (8): O primeiro dia no Cuor (continuação)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dia em cheio. Amanhã vamos para o Xitole. Depois regresso a Finete, visito demoradamente Canturé, vou encontrar um número apreciável de vestígios da presença militar no Enxalé e depois subo até Cabuca, Madina e Belel, numa tentativa de conhecer mais e melhor o Cuor.
No Xitole ainda se encontram bastantes vestígios. Os reencontros com Albino Amamdu Baldé em Sinchã Indjai e Dauda Seidi em Cambessé foram emocionantes.
Dentro da lógica de que era uma viagem de trabalho, afastei a ideia de revisitar Cusselinta, ali tão perto e sempre tão deslumbrante.
O carro de combate do Fodé vai cada vez mais cheio com camaradas do Pel Caç Nat 52 e milícias de Missirá e Finete.
Ao findar do dia, voltei a Finete, à procura de uma casa para o Jorge Cabral.
Estejam atentos.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (8)

Beja Santos

O primeiro dia no Cuor (continuação)



O Tangomau irá recebendo petições da mais variada índole: dinheiro, bolsas de estudo, vistos para Portugal, ofertas de emprego. Haverá situações muito comoventes. No último dia da sua viagem, em plena Pensão Central, Filomeno, que aliás se chama Eufrágio (sim, Eufrágio) Júlio Vinício Júnior, que perdeu os pais no conflito político-militar de 1998-1999, pede a intercessão do Tangomau para ter uma bolsa de estudo, fez o seu liceu com notas brilhantes, julga-se à altura de uma justa recompensa dos seus méritos. Aqui e acolá, e depois de já ter distribuído todos os seus livros e livros alheios reportados à Guiné, os pedidos não irão faltar. Por exemplo o Prof. Moreira Nhaga pede com toda a naturalidade que lhe envie os livros para o Xime, agradece sobe para o quadro da bicicleta, acena ao longe e deixa o Tangomau com mais um pequeno problema para resolver.


Discursava o homem grande Fodé Dahaba quando em toda a sua mansuetude se perfilou diante do Tangomau Braima Mané. Para quem leu o primeiro volume do seu diário, o grito de felicidade que o Tangomau deu quando viu claramente visto que era Braima Mané, que ele julgava falecido, tudo compreenderá sobre os sentimentos humanos. Braima quase que tinha perdido tudo na vida quando o Tangomau o conhecera: repudiado pela família, com um braço inutilizado, o corpo coberto de estilhaços, vivia esmoler. Foi operado em Bissau, conseguiu-se algum trabalho em Bambadinca, aos poucos foi recuperando a sua auto-estima. Poucas pessoas procuravam o Tangomau com tanta alegria e gratidão como Braima Mané. Vê-lo a envelhecer e respeitado foi como se tivesse chegado uma estrela da tarde a cintilar sobre o céu de Missirá.


Que uma alegria nunca vem só comprova exemplarmente esta fotografia de Inderissa Soncó, o irmão mais novo do meu querido amigo Lânsana Soncó, o padre de Missirá. Com toda a sua dignidade, Inderissa encostou-se à parede para não se perceber como todo o seu corpo treme, convulsionado por algum mal parkinsónico. Mantém toda a sua delicadeza, era um agricultor laborioso, hoje reduzido à situação de deficiente imprestável, o grau mais intolerável da hierarquia socioeconómica africana. Não foi por acaso que o Tangomau se deslocou por Missirá de mão dada com este Inderissa que tem a vida num calvário. A seu lado, entregou prendas a Missirá, a começar pelo álbum do primeiro repórter militar português José Henriques Mello que cobriu as campanhas de 1907-1908 mostrando Infali Soncó e a chegada das tropas portuguesas ao Cuor. Missirá mudou muito, ampliou-se em todas as direcções, sobretudo para Sansão que, cem anos antes era a sede do regulado, aí viveu Infali e seu filho Bacari, o pai de Malã.


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.


Diz-se que os velhos perdem a memória. Estou a preparar o caminho para a desculpa. Sei que este homem me disse chamar-se Miguel Totala Baldé, pertenceu ao 3.º pelotão da CCaç 12 e disse-me assim: o meu alferes era o Abel Rodrigues. E disse mais: sou o soldado arvorado n.º 82108769, e o meu telefone é o 002456462497. O Abel que me telefone e que me venha buscar. O recado está dado. O que confunde o Tangomau é como é que esta fotografia aparece no meio das imagens de Missirá, isto numa altura em que nos apontamentos ele escrevia nomes e idades: Lamine Mané, 59 anos; Braima Mané, 70 anos; Ansumane Indjai, 68 anos; Calilo Soncó, soldado de milícias n.º 101, 63 anos. Convém ainda referir que Mama Mané, a mãe de Abudu, tem mais de 80 anos e Ansumane Soncó, que aparece no comité de recepção, também cerca de 80 anos. Não é por acaso que na fotografia do comité de recepção para Iussufo Soncó: ele dirigiu-se em voz alta ao Tangomau lembrando-lhe que era filho de Bacari Soncó, ambos tinham o mesmo sangue, o Tangomau que nunca se esqueça.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Lembram-se? Havia umas pilastras que aguentavam uma passadeira de madeira, ali o Tangomau, em cima deste pilar que permite a leitura da tabela das marés, tal como Ponta Varela, pedia boleia aos barcos civis e militares quando era necessário ir buscar comida e aparato bélico a Bambadinca. O nosso Mato de Cão não desapareceu mas está irreconhecível. Da nova estrada até lá são algumas centenas de metros, devido ao traçado da estrada alcatroada. Para se tirar esta fotografia é preciso estar com os pés bem enterrados no tarrafo, contemplar a enchente, este pilar tem vários metros na vazante. Contemplando todo este barro sujo a contrastar com o verdejante arvoredo, o Tangomau deu asas à imaginação, pensando as vezes que aqui veio, contornados, chuvas diluvianas, a fornalha do sol, os entardeceres cálidos, as noites de breu. Conheceu Mato de Cão em todos os segundos do dia. E tem sempre orgulho em dizer que naqueles 17 meses nem um só barco foi atacado nesta entrada do Geba estreito. Para que conste.


Presta-se agora homenagem a quem viveu no destacamento de Mato de Cão. Referenciado o local onde se montava obrigatoriamente a vigilância à navegação, subiu-se ao planalto onde hoje viceja a tabanca e onde vive o régulo Carambá Soncó. Aqui também tudo mudou, ou quase tudo. Havia que identificar vestígios do destacamento. Este é o primeiro, o resto vai aparecer no álbum fotográfico. O Tangomau teve um desgosto: plantaram tantos e tais cajueiros que já não se avista nem o palmar de Chicri nem o palmar orientado para Sinchã Corubal (às vezes, enquanto se esperava a chegada dos navios ouviam-se os tiros dos caçadores de Madina que percorriam esta velha tabanca). Nisto, o anarca Jorge Cabral e o Tangomau cantam à mesma voz: são alguns dos mais belos palmares e panorâmicas da Guiné e do mundo que conhecem.


Aqui fica uma prova de vida em Mato de Cão, um friso de mulheres ao entardecer. Não foi uma visita prolongada, há pouco menos de uma hora de sol, a peregrinação vai findar em Chicri, o Tangomau está trémulo de emoção, Chicri está associado a emboscadas e a sangue derramado, está morto de curiosidade pelo que vai encontrar. E dali sairá consolado.


A seguir a Mato de Cão inflecte-se pela esquerda, é uma bonita e aprazível picada sempre a avistar os campos tratados, os muitos cajueiros e palmares. Coisa curiosa, o Tangomau percepcionou que estava em Chicri independentemente da tabanca nova, havia qualquer coisa na natureza que mantinha o arvoredo frondoso de há 40 anos. Todos saíram do carro de combate, como seria de esperar Fodé Dahaba já tinha preparado um contacto com um parente, prepara-se um cerimonial de recepção, os homens grandes equiparam-se, não escondiam o seu júbilo. Enquanto tudo isto acontecia, o Tangomau afastou-se discretamente e minutos depois olhava para a picada que conduz a Madina. Teve mesmo um assomo, uma vontade súbita de se pôr ao caminho. Perguntou a alguém qual a distância. “É lunge, mais de três horas, andando depressa”. Foi o que o desencorajou, senão tinha cometido a traquinice de entrar na floresta pela noite escura.


Sopram os ventos de mudança em Chicri, os miúdos já se misturam com os graúdos nas fotografias. Tinha acabado a escola, mordidos pela curiosidade, os pequenos vieram até àquela sessão pública em que um branco mostrava livros e fotografias de um passado semilongínquo. O que se avista em todas as direcções é mais do que o verde luxuriante: há os meandros barrentos do Geba, há as palmeiras gigantes graciosamente dispostas, os campos lavrados, o arroz amadurecido na bolanha. Aqui respira-se alguma prosperidade. O dia finda, todos dão sinais de cansaço, há gente que irá de bicicleta para Amedalai. E regressamos a Bambadinca. Em casa do Fodé, Albino Amadu Baldé deixara uma carta que encheu de alegria o Tangomau. Todos à uma tomaram a decisão: amanhã vamos para o Xitole, vamos dar um abraço ao Albino. Como aconteceu.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7504: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (7): O primeiro dia no Cuor

1 comentário:

Anónimo disse...

Finalmente uma Discoteca em Missirá!Realizou-se o meu sonho
de há 40 anos.Posso então partir..
e instalar-me.Até já tenho guarda-
costas.

Obrigado Mário.

Abraço.

Jorge Cabral