1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2010:
Malta,
Foi um dos dias mais tumultuosos da viagem. É melhor suspendermos a narrativa em Missirá, tenho muitas responsabilidades com a viagem que vou fazer a Mato de Cão e Chicri. Em Mato de Cão vou recolher imagens do que resta do destacamento. E Chicri, asseguro-vos, continua a ser um dos lugares mais belos do mundo.
Tudo isso será contado amanhã, tenho responsabilidades com quem calcorreou estas paragens ou ali viveu.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (7)
Beja Santos
O primeiro dia no Cuor
1. Ainda não são sete da manhã, o Tangomau põe-se de sentinela a olhar o sereno, parece algodão em rama muito fino, uma evaporação por cima de Bambadinca e das bolanhas da Ponta Nova e Finete. Antes que cheguem Calilo e Iaguba, convém pôr alguma ordem nos apontamentos dos primeiros dias de viagem. Gente de todas as idades, muitas vezes anunciando-se com cantilenas, descem do Bairro Joli para a fonte de Ponta Nova, para baixo vão lampeiros e coleantes, para cima não dissimulam o peso da água em contentores por vezes desmesurados. O Tangomau interroga-se se deve voltar ao HM 241, quando regressar a Bissau, o que viu na noite da chegada e durante as andanças entre Bissalanca e Bandim justificam, sopesados os argumentos, que não, há um limite para observar as ruinas, os escombros ou até aquele cego desdém ao património colonial. Escreve no caderninho: não voltar, não voltar também ao Mercado Central, recusar uma visita a Bafatá. Pelo contrário, tudo fazer para percorrer a estrada entre Amedalai e Moricanhe. E mais anotou: só para abraçar estes queridos amigos, valeu a pena, o Madjo Baldé, o Djiné, o Zé Finete, o Sadjo, o Mamadu; o ter encontrado Dungo Queta, o guarda-costas do Jorge Cabral, que prometeu entregar a lista dos soldados. Na véspera, o homem grande, Fodé Dahaba, foi categórico: “Amanhã vamos para o Cuor, primeiro vamos a Madina de Gambiel, depois Cancumba e depois Missirá. Ficas a saber que Missirá te prepara uma recepção. No regresso vamos a Mato de Cão e Chicri. Mas se ficarem coisas para ver, não te preocupes, voltamos lá”. O Tangomau replicou, quase indignado, que havia muito mais coisas para ver: Então Finete? Então Malandim? Então Gambaná? Então Canturé? E Gã Gémeos? E as novas tabancas de Sansão e Maná? O homem grande encolheu os ombros, por esta é que ele não estava à espera.
Abudu (Abudurramane Serifo Soncó) em casa do Tangomau, durante uma sessão de preparativos para a viagem. O dia vai-lhe ser dedicado. Ele vai para Lisboa em 1996, na esperança de amealhar uns tostões para educar os filhos. Abandonou a profissão de professor e atirou-se à construção civil em Portugal. Tudo foi bem até aos enfartes do miocárdio. Que ele fique a saber que o carro de combate que leva Fodé, Mamadu Djau, Sadjo Seidi, Madjo Baldé e o Tangomau, entre outros, se encaminha para o interior do Cuor recordando as suas saudades da terra natal. Dentro em breve o Tangomau vai beijar Mama Mané, a sua mãe octogenária, que fugiu espavorida de Missirá, depois do ataque de 19 de Março de 1969.
2. Chegam os meus acompanhantes, nova grande surpresa: Dauda Seidi, que foi soldado milícia em Missirá, e que vive agora em Cambessé, perto do Xitole, vem abraçar-me, vai seguir connosco para o Cuor. Seguimos para as compras, o Tangomau foi estupidamente aldrabado no talhante, deram-lhe carne de vaca podre. No dia seguinte ele irá perorar e imprecar em frente do farsante: “Rachid, que o Profeta à porta do paraíso te obrigue a comer durante um ano a carne que me vendeste!”. A viagem segue o seguinte itinerário: contornando Bantajã, segue-se para a bolanha de Finete; na estrada de Bissau, vira-se à direita, como se fôssemos para Canturé, vira-se então à esquerda e caminha-se já com os grilos estridentes na velha estrada de Gambaná, como se fôssemos para Cancumba. Nova guinada à esquerda, o Tangomau está desorientado e por duas razões: o carro de combate de Fodé vai praticamente com as rodas da esquerda no ar, se ele não morrer de acidente, é fatal como o destino que nunca mais morrerá de acidente; e o que se chama Gambiel vai dar origem a muita discussão, toda esta peregrinação sinuosa anda à volta do rio de Biassa, segue para Sancorlã, o que eles chamam Gambiel é pura fantasia, entrámos nas florestas de algumas das madeiras mais exóticas do mundo, é uma atmosfera de grande aridez, é uma paisagem familiar, fazia parte dos 16 itinerários que o Tangomau traçara para chegar a Mato de Cão. Este era um dos calvários da época seca, sofria-se bastante à ida ou à volta, quando se apanhava a fornalha do sol. O Tangomau gritou até que todos se calassem mesmo os habitantes da localidade: isto não é Madina de Gambiel, é Madina de Biassa!
É aqui que o Geba separa Bambadinca do Cuor. O Tangomau ainda insistiu em cambar para a bolanha de Finete, fazê-la a pé como nos bons velhos tempos de viatura avariada em que toda a gente carregava a comida e as munições à cabeça. Só que o trilho se transformou numa estreita linha de passagem, para quem tem a coluna num oito não é viagem recomendável. Entendeu-se, pois, que se devia aproveitar o alcatrão até perto de Canturé e depois aproveitar as velhas estradas. Começava a peregrinação da rota nostálgica, o Cuor de Finete, o Cuor de Canturé, o Geba em Mato de Cão, o regresso à Jerusalém Celeste, Missirá
3. Primeira discussão do dia com o homem grande Fodé Dahaba. Se ele quer sessão de cumprimentos em Canturé e evento social em Finete, depois só há tempo para ir a Missirá e Cancumba. Ele interpela porque é que se vai a Cancumba, é facto que há lá uma tabanca, mas qual é a importância de Cancumba? Sem perder as estribeiras, o Tangomau recordou-lhe que era dali que vinha a água, sem aquela fonte era como viver num lugar ermo do Sahara, era igualmente dali que vinha o fogo das flagelações, por ali passávamos em patrulhas de nomadização ou num dos percursos de acesso a Mato de Cão. Dada a explicação, desfeitos alguns equívocos, seguiu-se para Madina de Biassa. O que jamais se esquecerá é o encontro com outro soldado milícia, Mamadu Mané. Houve grandes alegrias, o reconhecimento não foi difícil, o Mamadu mantém o ar acriançado. A fotografia era inescapável, guarda estilhaços na região frontal e no pescoço. Não é deficiente das Forças Armadas, não tem direito a tratamentos. O Tangomau tinha a garganta seca: é injustiça demais que este combatente viva com a saúde abalada e nós a ignorá-lo. Ei-lo aqui, para nossa vergonha.
Madina de Biassa é uma das povoações novas do Cuor. Aqui chegou a haver três quartéis durante a guerra: Finete, Missirá e Mato de Cão; o PAIGC acantonava-se em Cabuca, Madina Belel e Banir – eram estas as forças em presença, como soe dizer-se. Com a independência, brotaram Malandim, Mato de Cão, Saliquinhé, Chicri, Gãbaná, Maná, Sansão e Madina de Gambiel. Mas o Tangomau tem de voltar à Guiné pois desconfia que há ainda muito mais vida para pesquisar dentro do Cuor.
4. De Madina de Bissa a peregrinação rumou para Camcumba. A paisagem mudou. Houve um projecto italiano e a fonte está disciplinada. A nova tabanca custou a vida de muitas palmeiras, Cancumba não era assim. O Tangomau não parava de meditar sobre aqueles dois quilómetros que separavam Cancumba de Missirá, os bidões a rolarem pela estrada quando as viaturas estavam avariadas. A tabanca é harmoniosa, fez-se uma breve paragem para saudar os habitantes, ala morena que se faz tarde, agora vamos a correr para Missirá.
Recorre-se a um lugar-comum para dizer que o que se viu há 40 anos foi mudado pela natureza ou pela mão do homem. As recordações de há 40 anos desorientam o visitante. Onde ele se sentiu melhor é naquela estrada que outrora ligava Bissau a Bafatá. É uma laterite muito especial, cheia de terreno pedregoso, faz parte do Cuor árido, mais árido do que aquilo só Cabuca, Madina e Belel. E no entanto o Tangomau extasiou-se com aquela natureza selvagem, a zanguizarra dos grilos em Novembro, as borboletas multicolores, os pássaros, até os macacos. Talvez a delirar, o Tangomau entendeu tudo como uma recepção triunfal, 40 anos depois.
5. Para não entrar imediatamente em pranto, o Tangomau, logo à chegada a Missirá pediu para ir ver o túmulo do irmão, o régulo Bacari Soncó, um irmão profundamente amado e admirado. Aqui se ajoelhou, rodeado dos Soncó, dos Indjai, dos Mané. Deus sabe o que ele deve à dedicação deste homem integro e valoroso. Depois, antes que o homem grande Fodé Dahaba subisse ao púlpito e fizesse novo discurso, vagabundeou pela velha Missirá, a inexistente, onde ele viveu 17 meses a fio.
Os mandingas são sepultados de muitas maneiras. Gosto muito deste cemitério coberto, Bacari tem terra em cima e aguarda a companhia de outros familiares. Deus misericordioso tenha compaixão deste homem bom, meu dedicado companheiro de armas.
Na deambulação, o Tangomau confirmou aquilo que toda a gente sabe: com o velho se faz o novo, basta olhar para aquelas chapas. Aqui, começaram a escorrer algumas lágrimas tímidas, aqui situava-se o seu abrigo, mais à frente a casa do padre, Lânsane Soncó e mais à frente o balneário, um pouco à esquerda, fora desta imagem, um espaço a que se chamava o refeitório que tinha ao lado o armazém de víveres. Mudam-se os tempos, mudam-se as finalidades.
Aqui está o comité de recepção: de pé, a partir da esquerda, Inderissa Soncó, Sana Mané, Ansumane Indjai, Cali Soncó, Braima Mané. De joelhos, à esquerda, Lamine Mané e Iusso Soncó. O Tangomau estava a jogar em casa, estas eram as crianças do seu tempo, uns usaram Mauser, outros sofreram os efeitos das flagelações e dos ataques, outros ajudaram na cozinha ou dela beneficiaram. Lamine lembrava-se do Natal de 1968, recebera prendas. Foi um momento extraordinário, evitámos falar nos nossos queridos mortos, não houve amargor pelas muitas privações porque continuam a passar. A seguir, Fodé Dahaba tomou conta da banda, os Dahaba aqui também pontificam. Aliás, o Fodé tem família em toda a parte. Depois houve discursos, foram entregues petições, o Tangomau comoveu-se quando apareceu Mama Mané, a mãe de Abudu. O passado tornou-se presente, havia que explicar àquela octogenária que o filho não deve viajar, aquelas paragens não são boas para quem já teve dois enfartes do miocárdio.
Mama Mané panejada como se estivesse em cerimónia. Só perguntava pelo filho, irrompemos num choro miudinho, uma mulher grande recompõe-se rapidamente, Mama Mané vem da linhagem real, os reis não devem chorar em público.
Aqui se interrompe a viagem, leitor e narrador têm direito a uma pausa. A viagem é quase interminável, vamos prosseguir amanhã, mesmo que se esteja a meio do dia. E, meu Deus, daqui ainda se vai partir para dois lugares santos: Mato de Cão e Chicri.
Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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