quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8949: Notas de leitura (293): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (José Manuel M. Dinis)




1. Em mensagem do dia 24 de Outubro de 2011, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos uma nota de leitura sobre o livro do Coronel Páraquedista José de Moura Calheiros, "A Última Missão".





A Última Missão, do coronel Moura Calheiros, é um catrapázio de mais de 600 páginas, com muitas fotografias, que se lê com facilidade e gosto. Tem uma parte inicial quase descritiva de alguma etnografia guineense (ou africana), e breves descrições das comissões passadas em Angola e Moçambique onde comandou CCP's.

O livro intercala dois discursos e dois estados-de-espírito do autor: um, a última missão, tem a ver com a recuperação dos restos mortais dos militares portugueses inumanos em Guidage, e é um muito humano cruzamento de sentimentos, recordações, levantamentos biográficos, que dá corpo a um excelente exercício sobre a juventude portuguesa de há 40 anos, sobre a sua formação, os seus anseios, as suas actividades, a inserção social, e as respostas que o país lhe dava ou deixava de dar; o outro estado-de-espírito tem a ver com a memorização da sua intervenção militar nos territórios de Angola, Moçambique e Guiné. A este propósito cabe aqui apreciar que o autor revela uma inopinada emboscada nos arredores de Luanda, declara a comissão em Moçambique como mais desgastante, perigosa e menos organizada, em virtude de uma malha muito espaçada e isolada das Unidades em quadrícula, com escassos meios de apoio, de comunicação e de socorro, em virtude da extensão da área operacional.

Assim, terá sido com agradável surpresa que, ao integrar o BCP 12, constatou que lhe sugeriu uma exemplar organização militar em guerra, onde aconteciam reuniões diárias no ComChefe, apoio aéreo quase instantâneo para evacuações, bem como o ambiente no Batalhão, onde havia coesão e as melhores instalações militares na Guiné, onde foi o Segundo Comandante.

Naturalmente, para quem combateu na mítica Guiné (estive a fazer intervenção em Piche, e depois em quadrícula em Bajocunda, nos quase pacíficos anos de 1970/71), os relatos sobre o Cantanhez, Guidage e Gadamael são sempre susceptíveis de curiosidade, e fonte de informação e interpretação crítica.
Por me propor fazer uma breve apreciação ao descrito, vou passar sobre muita da informação expandida, para me fixar apenas em poucos aspectos:

Assim, relativamente ao cerco de Guidaje fica nítido, que os nossos aquartelamentos mostravam vulnerabilidades, quando os ataques do IN eram bem dirigidos e organizados, consistindo de flagelações à Unidade, chamariz para a Força Aérea ali deslocar-se e confrontar-se com os Strela, enquanto por terra, a minagem e emboscadas aos itinerários, provocavam estragos e desmoralização nas NT, neutralizando-as. E deve notar-se, que em Guidage estiveram presentes todas as nossa tropas especiais, com maior ou menor envolvência, mas todas sofreram baixas antes inesperadas. É impressionante a descrição de uma emboscada na região de Cufeu, de onde os páras foram salvos pela decisiva e temerária intervenção dos Fiat's (temerária porque não pestanejaram perante a possibilidade da existência de mísseis nas redondezas), muito bem orientados sobre a localização do IN (a escassa distância das NT que já contavam duas baixas mortais), atacaram e dispersaram o IN colocando um ponto final à aflição.

Sobre o ataque perpetrado pelo Batalhão de Comandos Africanos à base IN de Cumbamory, destaco da leitura duas situações insólitas: primeira, que o BCA deslocou-se para a região com exagerada antecedência e o espalhafato da tropa especial, prejudicando o efeito surpresa que a Operação requeria; segunda, que a Operação foi precedida de um intenso bombardeamento onde se admitia ser a localização da base IN, o que não deve ter coincidido, caso contrário o IN teria sofrido baixas e abandonado o local. Ora, quando os Comandos chegaram à região, estiveram em combate e sofreram inúmeras baixas, pelo que o eventual êxito da Operação é suscetível de estar maquilhado, e pode tornar verosímil a declaração anexa de Manecas, Comandante do PAIGC. Ainda assim, proceder a um assalto sem o adequado conhecimento do local, enquanto, sabia-se, havia tropa apeada empenhada no cerco a Guidage, não parece aos meus olhos ter sido a melhor opção. E refere o autor na página 455: "O ataque à base de Cumbamory não veio aliviar em nada e muito menos solucionar a situação de Guidaje".

Também refere que no dia seguinte o BCA abandonou Guidaje a pé e a corta-mato, ao contrário do que lhe estaria destinado, escoltar as viaturas e o pessoal de regresso a Binta, que permaneciam em Guidaje havia 5 dias, incluindo "muitos feridos" a necessitar de evacuação. Outra medalha para AB.

Sobre Gadamael, destaco da leitura que em cerca de 15 dias o COP-5 conheceu os seguintes Comandantes: Coutinho e Lima, Rafael Durão, Ferreira da Silva, Mascarenhas Pessoa, e Araújo e Sá. Esta sucessão de Comandantes nomeados pelo ComChefe, parece-me reveladora da perturbação que ia em Bissau, e pode ser demonstrativa de alguma incapacidade para gerir sob pressão. Segundo o autor, a acção preponderante de Araújo e Sá foi determinante para a retoma da normalização em Gadamael. Não o diz no livro, mas foi um período em que a par de acções de heroísmo, aconteceram outras de total perturbação e abandono, reveladoras de incompetência e falta de comando, com o IN a atacar quando e como queria.

Refiro-me agora (porque contraria a temporalidade) à missão no Cantanhez de que o autor foi responsável. Tratou-se de uma participação dos 3 ramos das FA, bem planeada, e bem coordenada, com uma única falha (a do local do desembarque de uma Companhia), que provocou a ira do General Spínola. Dessa acção concertada, resultou com êxito a reocupação do Cantanhez, como resposta à visita de uma delegação da ONU que iludiu no percurso o QG e as NT. O autor escreve como se construíram aquartelamentos e estradas a partir do nada, sempre com a preocupação de manter acções de patrulhamento defensivas, de inicio, e ofensivas mais tarde, por forma a garantir um ambiente de segurança e paz. Na página 620 e seguintes elogia o Comandante Araújo e Sá (cuja extraordinária acção terá passado despercebida) e o BCP 12, em contraposição com a opinião expressa: "É que na Guiné de então, a Glória estava pré-determinada e as honrarias contemplavam normalmente apenas um circulo restrito junto do General Comandante-Chefe. Depois, o marketing e os círculos de amigos fizeram o resto. E apareceram as lendas, que progressivamente têm vindo a tomar o lugar da História". E dá exemplos através de excertos de conceituados cronistas de guerra que terão ido às fontes do costume. Do que pode resultar que, "Quando hoje lemos algo sobre aquele período da guerra na Guiné, parece que tudo o que de bem e de bom ali foi feito se deve a um pequeno grupo de militares próximos do Gen. António de Spínola, cujos nomes são exaustivamente citados. É copy and paste, já satura! Até deverá saturar a quase totalidade desses militares, pois em nada contribuíram para a situação que se criou".

A partir desta constatação o autor questiona o rigor da História de Portugal e a genuinidade das fontes, duvidando, "se os cronistas investigaram ou se, como os copistas de antanho, se limitaram a reproduzir a opinião da corrente dominante na corte, para, em coro com os bardos, cantarem as glórias dos príncipes".

Muito obrigado senhor Coronel.
JMMD
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Notas do Editor:

(*) Vd. poste de 13 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8900: Notas de leitura (286): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)

7 comentários:

armando pires disse...

Notável, este comentário do Matos Dinis. Felicissima, a escolha daquela última citação para encerrar o texto. Já li o livro. Por isso acrecento: melhor que o comentário do Dinis só mesmo o livro de Moura Calheiros.

Torcato Mendonca disse...

Olá Zé Dinis
Depois da curva de Gauss, de que gostei,envias esta mensagem sobre um livro de que, igualmente gostei.
Na matemática há outra curva que cito,de quando em vez, e a comparo á vida - é a curva do seno. Há outras curvas...mais bonitas...Na história há, felizmente, mais do que uma interpretação dos factos, se feita honestamente.Li e reli com atenção o modo como o Coronel Calheiros descreve os acontecimentos. Mais, Zé Dinis, já tenho algumas vezes, depois de ler certas descrições de factos acontecidos na Guiné,ir consultar a Ultima Missão.Gostos.
Os Fernão Lopes e Azuraras eram "protegidos" do filho ou de outro senhor...há sempre um cronista em relato muito subjectivo, digamos assim. Há, no entanto, aí alguns livros, como este, a merecerem serem lidos e irem marcando o nosso pensamento, sobre a guerra numa terra que tanto nos marcou.
Abraço do T.

Luís Graça disse...

Por que razão é extremamente útil que apareçam mais e mais livros com depoimentos dos atores da guerra da Guiné (1961/74), de um lado e do outro da barricada ? E quem diz livros, diz filmes, etc. E, consequemente, de recensões e recensores de diferentes quadrantes "teórico-ideológicos" ?

Estamos longe de ter atingido o ponto a que, em investigação qualitativa em ciências sociais (que inclui a história), se chama "saturação teórica"...

Não sei se um dia podemos fechar a "porta do gabinete" e dizer: "Não vale a pena escrever e/ou ler mais nada sobre esta guerra"... A isto se chama (ou pode chamar) o fechamento de uma amostra por saturação teórica...

Podemos definir, em termos operacionais, "fechamento de uma amostra por saturação teórica" como sendo a suspensão
de inclusão de novos participantes /fontes de informação quando os
dados obtidos passam a apresentar, aos olhos do investigador, uma certa redundância ou repetição.

Nesse caso não vale a pena ou não é relevante prosseguir a recolha de dados... Trocando por miúdos, as informações fornecidas pelos novos participantes/fontes de informação pouco ou nada acrescentariam ao material já obtido.

Este livro do Moura Calheiros e esta recensão do Zé Diniz (que eu saúdo, pela elegância, frescura, irreverência e desenvoltura do seu estilo) são dois exemplos acabados daquilo que eu disse: estamos longe de ter atingido o ponto de "saturação teórica" da história da nossa guerra... Parabéns aos dois!

PS1 - Quando, no nosso blogue, atingirmos esse tal ponto (não confundir com o ponto G...), prometo que fecho a tasca e reordeno... a Tabanca Grande... (Se isso depender de mim, o que é cada vez mais improvável).

PS2 - Às vezes, por entre as moranças da Tabanca Grande, ouço vozes difusas (das nossas bajudas e mulheres grandes...) a comentar: "Lá estão aqueles marretas - ou jarretas ? - a bater no mesmo"...Tenho que ir ao cabo cripto para decifrar a mensagem...

antonio graça de abreu disse...

Muito bem, Zé Dinis, esta tua recensão, honesta, fundamentada, verdadeira.
Assim nos entendemos, ajudamo-nos a entender uns aos outros no fazer da nossa História.
Uma ressalva apenas. Guidage e Gadamael foram duas derrotas para o PAIGC que não conseguiu conquistar os aquartelamentos, ou forçar ao seu abandono, como em Guileje.
Então foram uma vitória para as NT?
Em termos militares, sim. Mas como é possível falar em vitórias com um tal estendal de sofrimento e mortos e feridos, a nossa geração a morrer aos poucos
numa guerra injusta para os dois lados?

Abraço,

António Graça de Abreu

Torcato Mendonca disse...

Meu Caro Luís Graça eu,
logicamente, não entro em teorias, menos ainda de Ciências Sociais e menos, menos, ainda sendo tu o actor (ator é feio mas).
Se fosse matemática, ciência dita mais exacta, podiamos abordar algo.
Fundamentalmente, penso eu, que queremos neste espaço uma pluralidade objectiva, o mais objectiva e honesta possível. A verdade, no relato do acontecimento, ou o alcançar relato do acto tal qual ele aconteceu, é, para mim, inatingível.Não falo só do facto histórico, menos ainda do relato de Cronistas protegidos pelo "filho" do Rei a terem a sua vida relatada. Mas, continua assim hoje como outrora...a verdade?! e o que é a verdade? Um dia plagiei o Águalusa e escrevi -"de quantas mentiras é feita a verdade". Agora a verdade imposta, o unanimismo, a certeza absoluta do facto e do acto,carece de debate,de preferência "meigo" (refiro-me ao blogue) -aliás estas palavras só aqui têm cabimento - e não devem ser alongadas. Gostei do escrito do Zé Dinis, concordante ou não com ele e de ler e ter como referência, em livros da guerra colonial, A Ultima Missão.
Por isso por aqui me fico.
Boa continuação na recuperação do joanete e aproveita o tempo para repousares. Difícil certamente. Parado não se "anda"...AB T.

manuelmaia disse...

Francamente gostei da forma como abordas o trabalho do sr.coronel Calheiros.
Os tais dois últimos parágrafos que referem "heróis programados" próximos do comandante chefe, e os bardos que tecem loas aos (gosto de lhes chamar "heróis"...)
A famosa fotografia dos ditos que foi manchete no Paris/Match,onde o enluvado AB,peito aberto às balas( à guiza de outro "herói" Eanes de seu nome, que saltando do carro de campanha em andamento vai colher o ramo préviamente cortado com que apagaria o fogo da berma da estrada...) com os Ray-Ban de artista de hollywood... é preciso chamar os bois pelo nome.

Luís Dias disse...

Camarigo José Dinis

Gostei dos teus comentários ao livro de Moura Calheiros, que também já li e do qual fiquei fã. É importante os relatos históricos de uma guerra quando feitos por quem os viveu no terreno e sentiu na pele o cheiro a pólvora.
Um abraço.
Luís Dias