quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9149: (Ex)citações (161): Fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades (José Brás)

1. O nosso camarada José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), deixou este comentário no Poste 9141:

Sem desfazer nas palavras e nos sentimentos que legitimamente dão forma e carácter ao Amílcar Mendes, de tudo isto, gostei e muito da nota de Virgínio Briote.
E nem sequer entrarei em comentários acerca de torturas e assassinatos praticados por gente do PAIGC a conterrâneos seus que lutaram do nosso lado, alguns mesmo, a quem nunca chamarei heróis porque o que os animava era mais uma sanha guerreira e algumas vezes mesmo ferozmente assassina, do que esse tal amor a uma bandeira que não poderiam sentir enquanto símbolo de centenas de anos de história de um povo que conheciam apenas nas relações coloniais.

Sempre achei que o seu engajamento nas nossas fileiras se deveu mais a acidentes na sequência das relações de origem tribal ou mesmo pessoal entre os protagonistas dos acontecimentos, do que a devoções nacionalistas, e que alguns ficaram do outro lado obrigados ou por acidente e outros do nosso lado por conveniências de momento.
E não eram melhores uns que os outros, como seres humanos, senão na diferença de carácter que nos distingue a todos, havendo gente boa e má dos dois lados, se quisermos reduzir o conceito de bom e de mau a esta nota simplificada.

Eu perguntaria a mim próprio o que iria eu pensar de um vizinho que alinhasse com uma potência estrangeira que ocupasse o meu País, enquanto eu dava o coiro contra tal ocupação.
Não conheço maus tratos que o PAIGC tivesse infligido a militares portugueses embarcados em Lisboa para os combaterem, ao contrário, sem colocar em dúvida que tivesse havido algum caso fora do quadro dos prisioneiros em Conakri, o que tenho ouvido são relatos de respeito e de bom tratamento na situação precária em que eles próprios viviam.

Para ilustrar o que digo, conto uma pequena história que vivi em Bissau após o 25 de Abril, no período de sobreposição antes da cerimónia de independência.

No roll up de descolagem de um voo da TAP, na volta à cabeceira da pista um reactor engoliu capim e iniciou o que poderia ter sido fogo.
Concluído que seria impossível sair sem assistência vinda de Lisboa, a tripulação foi para o hotel e eu que conhecia a cidade e tinha saudade de ostras convenci parte dos colegas a irmos a um estabelecimento ali para os lados dos fuzileiros.

Comemos satisfeitos e na volta, junto ao edifício do BNU estavam quatro ou cinco guerrilheiros em guarda às instalações. Iniciei uma conversa com eles e rapidamente descobrimos termos andado aos tiros uns aos outros na zona de Guilege.
As minhas colegas estavam inicialmente apavoradas e acabaram maravilhadas porque não viram da parte desses guerrilheiros nem um sinal sequer de animosidade.

Se há alguma coisa que diferencia portugueses dos restantes europeus é essa ausência de ódio e essa capacidade de dar as mãos sem grandes preconceitos, que atravessou o nosso processo colonial. Prova disso é que no fim, ao contrário do que aconteceu com outros, fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades.
No entanto, bom é que não exageremos ao ponto de concluir que somos santos e que não cometemos também algumas atrocidades.

Afinal, os nossos inimigos de então, acabaram mais maltratados pelos seus dirigentes do que por nós, mas isso, a meu ver, não anula a razão da luta que travaram.

José Brás
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9063: O nosso blogue em números (19): A propósito dos 3 milhões de visitas... Bom mesmo é termos um espaço onde, cada um à sua maneira, diga a verdade da sua vida e da dos seus na mata da Guiné, no respeito e conservando a amizade que aqui se cultiva (José Brás)

Vd. último poste da série de 27 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9105: (Ex)citações (160): Na convicção que a ideia possa germinar (António Matos)

7 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Zé Brás

Dizes:

"Não conheço maus tratos que o PAIGC tivesse infligido a militares portugueses embarcados em Lisboa para os combaterem, ao contrário, sem colocar em dúvida que tivesse havido algum caso fora do quadro dos prisioneiros em Conakri, o que tenho ouvido são relatos de respeito e de bom tratamento na situação precária em que eles próprios viviam."

Não te vou chamar ingénuo, meu caro,mas as opções assumidas durante uma vida acabam por toldar sempre o entendimento, à esquerda e à direita.
Então aquilo não era uma guerra? Quantos crimes são cometidos numa guerra dura e cruel, por ambas as partes?
Recordo-te,um exemplo apenas, três majores, um alferes, dois intérpretes, do meu CAOP 1, desarmados, em busca da paz, bárbara o cobardemente assassinados no chão manjaco, pelos guerrilheiros do PAICG, 20 de Abril de 1970.
Guerra é guerra.
Não vamos ser inocente, deliberada ou intencionalmente ingénuos. A História não nos perdoa.

Abraço,

António Graça de Abreu

Eduardo J.M. Ribeiro disse...

Amigo e Camarada António Graça de Abreu,

Faltou acrescentar ao assassinados, a incompreensível e horrível mutilação dos corpos à catanada.

Abraço,
Magalhães Ribeiro

Anónimo disse...

Num comentário acima li:"opcöes assumidas durante uma vida".Para alguns de nós, simplórios menos cosmopolitas, as "opcöes assumidas durante uma vida" terão um outro carácter que piruetas de conveniências várias,sejam elas de direitas ou esquerdas.Um humilde ponto de vista. Abraço

Cherno Balde disse...

Caro José Bras,

Tambem eu gostei e muito das boas notas do Virginio Briote e lamento nao poder dizer o mesmo destas tuas “boas” notas, e na minha modesta opiniao de antigo rafeiro e “of-sider” deste Blogue de antigos combatentes, como alguém ja me chamou, as duas notas nao vao no mesmo sentido, para nao dizer que nao tem, quase nada, a ver uma da outra.

Certamente que, ao José Bras, nao interessa entrar em comentarios sobre torturas e assassinatos e provavelmente, dentro desta mesma logica, os guerrilheiros do PAIGC foram os verdadeiros herois da guerra colonial. Nao surpreende muito, alias, pode até ser que tenha sido assim, mas a minha surpresa é que esteja a ouvir isto de um ex-combatente do exercito portugues, facto que nao deixa de ser bastante original.

Numa coisa, todavia, eu concordo contigo e, de facto, é confrangedor constatar que os africanos raramente estiveram à altura dos desafios a que foram confrontados na historia e, perante as potencias ocidentais e a sua sanha de conquista e de dominacao (isso sim), sempre se apresentaram desunidos e com interesses divergentes o que facilitava nas estrategias de manipulacao e de repressao colonial com o unico objectivo de melhor dominar. Isto aconteceu sempre: Antes, durante e depois do periodo esclavagista. Antes, durante e depois do periodo colonial. E, ainda hoje, acontece.

Nao é assim tao simples julgar sobre acidentes de percurso historico e/ou conveniencias de interesse de grupos colectivos ou tribais, por isso nao quero entrar em especulacoes, mas no meio desta reflexao, pode-se perguntar: Se voces (antigos combatentes), que eram portugueses e cidadaos da Europa civilizada, foram enganados e metidos numa guerra injusta e fora do seu tempo, o que se podia esperar de sujeitos (nem sequer eram cidadaos) colonizados, indigenas e iletrados?
-Certamente que deviam ter uma consciencia patriotica, revolucionaria e emancipadora e nao entrar em conflito com os seus proprios irmaos de sangue e de raca...tudo muito bonito. (Aplausos!!!!!).

E quais foram as contrapartidas que os caes de duas pernas receberam? As cruzes de guerra de latao ou os bonecos com a cabeca de honorio Barreto? Em troca de tantas vidas!?...

De uma coisa, acho eu, todos deviam estar cientes desde o inicio, a de que, no fim, haveria um vencedor, e que, como se costuma dizer, a verdade historica seria sempre a dos vencedores e nao dos vencidos.

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Todos os crimes ou violências individuais em momentos de combate em que a consciência de cada um reage inconscientemente e a sangue quente, podemos chamar barbaro e desumano.
Mas aquilo que aconteceu nas ex-colónias, logo após a saída do exército português (que não quero classificar aqui), é indescritível.

O Cherno fala nos cães (cathurro) de 2 pernas.

Mas se ouvirmos os filhos irmãos e parentes que assistiram o que aconteceu ao seu familiar "catchurro", compreenderemos um pouco a palvra "horror". E até esteja aqui alguma explicação do que se passou todos estes anos de instabilidade guineense.
O PAIGC de Luis Cabral teve culpa nessas valas comuns, mas o exército dos nossos Generais e Capitães tambem teve a culpa da irresponsabilidade.

Não falo do que se sabe de Angola, que se assemelha ao Ruanda e Congo, e ultrapassou tudo.

Fazer uma guerra é muito mau, e não é qualquer um que a faz, desfaze-la, até parece simples, mas não é.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Caríssimos!
A questão central era, penso eu,e se não for corrijam-me, poder este Blogue, comportar, estar aberto, incluir opiniões, relatos de situações vividas, pontos de vista, dos dois lados da contenda, ao tempo.(agora já não há contenda, embora às vezes me pareça que para alguns, ela, a contenda, ainda perdure, viva e "assanhada").Enfim, pontos de vista...!
E penso até que, os fundadores(pais da criança) deste n/Blogue, principalmente o Luís,e se calhar o Vinhal e o V.Briote,idealizaram, imaginaram, criar um espaço onde os dois lados do conflito(repito já terminado)pudessem dissecar, exorcizar fantasmas, contar a história(quase sempre mal contada por outros)pelo seus próprios protagonistas, ou seja, nós, e os outros, do outro lado.E aceitá-los, aos "outros", caso o desejem, como membros de pleno direito, do colectivo que é o n/Blogue.E aqui, o "colectivo", para que não surjam dúvidas, não tem nada de conexões políticas, garanto.
Então porque não aceitar as versões deles?- Evidentemente que poderão estar,(algumas), como direi, inquinadas de algo que poderemos não concordar, assim como do n/lado, se calhar, também alguns deles, os poucos que nos lerão, infelizmente até por razões de expectativa de vida- morrem muito mais cedo que nós- se calhar direi eu, também não concordarão.
Mas é assim, sempre foi assim, sempre há duas, ou mais, verdades,há sempre(como agora soi dizer-se)direito ao contraditório.
E assim, como aliás os n/estatutos, as n/regras de jogo prevêem e estipulam, se estabelecem consensos para os "homens de boa vontade". Mas temos que ser "homens de boa vontade", nós e eles evidentemente.
(continua)

Anónimo disse...

(continuação)
Ps: por lapso não assinei a 1ª. parte do meu comentário, mas sou eu, o F.Godinho, e assinarei obviamente no final deste também)

Mas uma coisa é certa,como bem diz o Zé Brás,fomos capazes, teremos que continuar a ser capazes, de manter o respeito e a amizade uns pelos outros.
Durante o conflito, em zona de combate, durante as acções, no calor da refrega, obviamente que, se calhar, foram cometidas, ou melhor, não foram evitados certos
excessos, certos exageros,cruéis até por vezes, de parte a parte, pelas mais variadas razões, nao vamos agora aqui escalpelizar,ou até branquear até porque já não resolvemos nada, o tempo e os actos
já não voltam atrás.
Mas há um aspecto, ligado a isto do respeito e consideração pelos outros, os do "outro lado duma guerra" que queria compartilhar, trazer ao "terreiro" desta n/catarze sobre a guerra que protagonizámos, cada um no seu tempo como é bom de ver.
Conheço há já algum tempo, anos largos até, um ex-combatente da Guiné como nós, é quase meu vizinho aqui no concelho do Seixal, e do qual eu sabia ter estado na Guiné, penso que em 1967/1968, ele é de poucas falas sobre isso, um pouco introvertido até, enfim eu de certo modo respeitava isso, embora lhe fosse dizendo que era bom falar, desabafar, convidei-o inclusive para o Blogue, mas ele nada. Agora há para aí um mês mais coisa menos coisa, e a propósito de um destes programas da n/TV sobre prisioneiros de guerra, é que ele me confessou que esteve prisioneiro em Conakri quase 2 anos, e que veio naquele grupo libertado aquando da operação "Mar Verde" do Alpoim Calvão".
É o António Teixeira(não o n/Fermero Tichera claro)é outro Teixeira, pertenceu à Cart. 1746, que estava em Geba, e ele estava no Destacamento de Cantacunda com o seu Grupo de combate(na altura comandado pelo Fur.Milº.Vaz, creio que o Alf.Milº. que o comandava estaria de férias na Metrópole-livrou-se de boa, o fulano-e creio que em Junho de 68, o PAIGC atacou o Dest. derrubou o arame farpado, parece que não havia iluminação adequada,e quando deram por ela, estavam completamente cercados e neutralizados. Creio que ainda conseguiram fugir para a mata 9 ou 10, distavam de Geba cerca de 40Km, mas ele e mais 11, incluindo o Furriel foram apanhados à mão e levados pelo PAIGC.(O Marques Lopes n/tertuliano creio, que era Alf.Milº.dessa mesma Cartª.1746, mas que, penso, já há data, nao estar na Cª. por ter sido ferido e posteriormente evacuado para Lisboa,tem este episódio bem escalpelizado no seu Blogue "Coisas da Guiné" e não vou alongar-me mais sobre isto.
O que eu queria dizer fundamentalmente, é que, e repito, o Teixeira tem falado comigo sobre isto muito a custo,durante o trajecto a pé, com sapatilhas que era o que trazia calçado na altura, atravessou o Oio todo, inclusive o rio Cacheu, pois foram primeiro ao Senegal, trataram-lhe dos pés que estavam como calculam numa desgraça(a ele e aos outros),foram recebidos de forma correcta pelo Luis Cabral, e depois, já de camião, para Conackri, onde estiveram cerca de 18/19 meses, até à libertação pela "Mar Verde" creio que em Nov/70(Luis, confirma s.f.f.)e segundo ele nunca foram maltratados.Inclusive até recebiam os jornais(A Bola etc. etc.) que a família lhes mandavam, só que, como se compreenderá, com alguns dias de atraso.
Espero, e disso já dei conta ao Luís via telefone, "arrancar-lhe" mais algumas coisas para poder partilhar convosco, mas não posso prometer muito. Inclusive vou tentar falar com o Vaz(o tal Fur.) que também lá estava, visto que o Teixeira tem o contacto dele, e vamos almoçar os três um dia destes, a vêr se é mais loquaz.
Como vêem, depende apenas de pessoas,Comandantes neste caso, o respeito pelos outros, seja de que lado for.
Até sempre
Francisco Godinho