1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2011:
Queridos Amigos,
Conclui-se assim a recensão sobre as memórias do comandante Bobo Keita. Importa reconhecer o seu olhar peculiar sobre a vida da guerrilha em que esteve envolvido tantos anos. Envolveu-se em controvérsias, desamores e não esconde ressentimentos. É claramente desprimoroso com as tropas portuguesas no Leste, após o reconhecimento da independência, carece de contraditório. E se a caso se vier a demonstrar que Osvaldo Vieira abençoou a conspiração de Janeiro de 1973, em Conacri, é escusado continuar a bater no ceguinho de que a PIDE foi o braço-longo e o cérebro da operação.
Seria bom que pessoas responsáveis e que ainda estão vivas, caso de António Fragoso Allas, o dirigente da DGS em Bissau, viessem depor com documentos na mão. Compete a portugueses e a guineenses apresentarem provas, ambos estão comprometidos com a verdade histórica.
Um abraço do
Mário
Bobo Keita: do assassinato de Cabral à entrada em Bissau, em 1974
Beja Santos
O que o comandante das FARP Bobo Keita nos conta em “ De Campo em Campo, Dos Estádios de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde” (edição do autor, 2011) quanto ao período próximo do assassinato de Cabral poderá ter a maior importância caso venha a ser confirmado por outros testemunhos. Mas há uma relativa nebulosa ou vontade de não comentar em profundidade tudo quanto estava a ver quando chegou a Conacri, vindo da União Soviética. Diz que a situação estava caótica mas não explica porquê. As coisas não estavam bem em Conacri e aponta imediatamente para os nomes de Momo Turé e Aristides Pereira, dá-os como recrutados por Spínola e mobilizadores de todos aqueles que tinham sido castigados. Em Conacri recebe uma informação de que fora designado como novo comandante dos tanques anfíbios, sucedendo a Inocêncio Cani, comprovadamente o conspirador que primeiro atirou sobre Amílcar Cabral, na noite de 20 de Janeiro. Recebido na véspera do assassinato pelo próprio Cabral, este revela-lhe que tinham acabado de sair do seu gabinete os embaixadores da Tanzânia e da Argélia que lhe deram a informação que as autoridades de Bissau tinham fechado a zona de Cacine e preparavam um novo golpe contra a República da Guiné, era um plano que incluía a eliminação da sua própria pessoa.
Em 20 de Janeiro, Bobo deixa Conacri na companhia de José Pereira, representante do PAIGC em Boké, é para ali que ambos se dirigem. De madrugada, foram convocados pelo governador de Boké, são informados do assassinato do líder e que entretanto um barco saíra de Conacri levando a bordo Aristides Pereira, feito prisioneiro. Deu-lhes a entender que esse barco se dirigia para Cacine e deveria passar por Boké. O que nos relata sobre o assassinato de Cabral é o que já consta de outros testemunhos, Norberto Tavares de Carvalho cita abundantemente Oleg Ignatiev que, como veremos oportunamente, é parcialmente contraditado por outros testemunhos como o de Oscar Oramas, o embaixador cubano em Conacri.
O relato imprevistamente descamba nas negociações entre autoridades portuguesas e o PAIGC e depois Bobo dá a sua opinião, muito crítica, sobre a alegada clivagem entre guineenses e cabo-verdianos, desmente-a categoricamente, não deixando porém de referir que os cabo-verdianos têm, todos eles, missões de desempenho muito elevado, desde artilharia passando por mísseis terra-ar, direcção política e outras actividades que requeriam elevada formação ideológica ou militar. Estiveram nas frentes de combate mas em lugares seleccionados, di-lo explicitamente: “Lembro-me de uma vez, quando atacámos Gadamael em força, estavam ali eles, ao nosso lado, a manejar com perícia os morteiros 120. Quem esteve presente e não se lembra de João José (o Jota Jota) no assalto a Guileje? Este cabo-verdiano, hoje radicado nos EUA, deu mostras e provas de um espírito de combatividade e de técnica no manejo das peças de artilharia que contribuiu para que Guileje não resistisse às nossas forças. O Julinho de Carvalho esteve sempre ao pé das Katyuissas e dos morteiros. O Tchifon tratava por tu tudo o que era artilharia. O Manecas era também especialista no manejo das Katyuissas e dos morteiros”. Depois o relato volta aos acontecimentos do assassinato, Cani chega a Boké, afinal não foram os barcos soviéticos que o detiveram no alto-mar, como por vezes se vê escrito, foi detido ali. Cani, segundo Bobo Keitá, iria a Boké ajustar contas com José Pereira, fora este que investigara os actos ilícitos que teriam levado à sua expulsão do Comité Executivo da luta do PAIGC, tempos atrás. O livro é outra vez reconduzido a Oleg Ignatiev e a um conjunto de fantasias como a não comprovada implicação da PIDE em Lisboa na chamada operação “Rafael Barbosa”, de que não existe qualquer indício ou prova documental.
O relato volta a dar uma guinada, vai para aviões de caça, mísseis o relato da independência unilateral, a operação “Amílcar Cabral” que envolveu Copá, Guidaje e Guileje e, por arrastamento, Gadamael Porto. E dá nova guinada para críticas a Nino Vieira com quem se incompatibilizou à volta do golpe de Estado de 1980. Estranhamente, parece ignorar o que se passou de facto na morte dos três majores no Jolmete, em 20 de Abril de 1970 e estamos chegados aos acontecimentos posteriores ao 25 de Abril.
Em Agosto de 1974 é assinado o acordo de Argel. Bobo regressa à Frente Leste e afirma desabridamente: “Eu resolvi fazer uma astúcia. Escolhi o quartel de Buruntuma. Preparámos a operação e organizámos um assalto em simulacro. Fizemos tudo para que a tropa portuguesa tivesse conhecimento da operação. Mandámos avisar a população e os elementos do Partido para que abandonassem Buruntuma pois íamos atacar aquela população”. O comando de Buruntuma não percebe o que se está a passar, contacta o PAIGC, dentro do bluff Bobo comunica que as tropas portuguesas têm duas horas para sair. No dia seguinte, as tropas portuguesas saem para Piche, só lá fica a milícia. Bobo Keita, recorrendo a este estratagema, diz ter conseguido libertar seis pequenos quartéis e que entretanto começaram as dissensões entre oficiais superiores e Carlos Fabião. Adoptou, diz ele, uma postura agressiva, estende a Bafatá e a Bambadinca o controlo de carros. Em Pirada, tendo sido informado da sublevação das milícias, procede a execuções. Afirma ter dado ordens ao oficial de Pirada. E não esconde que há populações e tropas africanas que se põem em fuga para o Senegal. Em Setembro, entra em Bissau, foi nomeado Comissário Político da região e afirma: “Eu é que organizei a retirada definitiva de Bissau dos últimos elementos do exército português”.
Assim termina o relato na primeira pessoa do singular. Segue-se uma listagem de guerrilheiros que caíram em combate, o posfácio do nosso camarada António Marques Lopes, que teve a gentileza de me enviar esta obra para recensão. Em anexo, consta o texto dos acordos de Argel e uma cronologia de factos e feitos da história da Guiné.
Estamos perante um testemunho que nalguns pontos-chave carece de contraditório: se é facto que Osvaldo Vieira passou uma boa parte do dia 20 de Janeiro de 1973 na companhia de Inocêncio Cani, e que razões determinaram a saída daquele guerrilheiro histórico da direcção do PAIGC; o guerrilheiro, à semelhança de outros depoimentos, refere que Conacri, ao tempo da conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral, era um local irrespirável quanto a intrigas e a rumores de conspirações, mas não se dá substância à natureza do que se fala, os nomes que se põem na mesa são os de Momo Turé e de Aristides Barbosa, ninguém acredita que estes dois quadros em estado de “regeneração” prepararam e executaram uma conspiração que envolveu largas dezenas de quadros guineenses; e porque continua ausente uma resenha histórica de tudo quanto se passou na Guiné entre 25 de Abril e a saída das tropas portuguesas, ao menos que os protagonistas que viveram os tais episódios que Bobo Keita refere em Buruntuma e outros locais nos transmitam a versão dos acontecimentos, parece essencial começar a clarificar o que foi de facto o entendimento sobre os acordos de Argel no território guineense, como se viveu esse período tão conturbado.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9137: Notas de leitura (308): De Campo em Campo, de Norberto Tavares de Carvalho (1) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Respeito para com os nossos ex-IN, sim.
Para os nossos ex-IN que não nos respeitam e complementam isso com um "chorrilho" de mentiras ou meias verdades, o meu mais profundo desprezo.
Sobre os acontecimentos de Beruntuma, não os presenciei, estava em Bissau,mas soube que tiveram que sair à pressa,porque foram ameaçados de serem atacados..os motivos não sei.
Lembro-me de ouvir alguns testemunhos, mas cada um contava a sua versão.
Sobre a versão de quem manobrava a artilharia, é verdade que alguns cabo-verdianos o faziam pelo simples facto de terem mais habilitações literárias tendo alguns frequência do ensino superior em Portugal, mas no sul,nomeadamente na zona de Gadamael, eram CUBANOS.
Confirmado pelos próprios elementos do PAIGC, no pós 25-A, durante as conversações.
Para se por em posição e calcular os elementos de tiro na artilharia,tem que se ter conhecimentos de matemática e especificamente de trigonometria, e dispor ainda de cartas topográficas actualizadas, evidentemente se se quiser ter êxito nessa acção...tudo o resto são tretas.
Refiro-me ao nosso tempo, porque hoje é muito mais fácil com a tecnologia electrónica.
Para terminar este personagem parece-me ser mitómano, e isso nem teria grande importância, se não fosse a falta de respeito que demonstra para com as NT.
C.Martins
Diz o C. Martins:
"Respeito para com os nossos ex-IN, sim.
Para os nossos ex-IN que não nos respeitam e complementam isso com um "chorrilho" de mentiras ou meias verdades, o meu mais profundo desprezo."
É isto mesmo. Devia estar no ADN do blogue.
E não só não está como temos tido no blogue
uns tantos seguidores e bajuladores do "chorrilho" de mentiras ou meias verdades propagandeadas por alguns dos ex-IN.
A própria História da Guiné, também feita, escrita por Guineenses terá sempre de se alicerçar em critérios de verdade, a verdade factual, a verdade histórica que nada tem a ver com a História dos vencedores ou dos vencidos. Aí cada um, tergiversado, pode enfiar as patranhas que muito bem, ou muito mal, entende.
É a nossa, HISTÒRIA, sem paixões, sem mitos, sem recalcamentos, sem presunções, sem falsificações, humilhações ou vaidades.
Isto é assim tão difícil de entender?
Abraço,
António Graça de Abreu
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