1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 30 de Maio de 2012:
Queridos amigos,
Chegamos ao fim deste diário singularíssimo do soldado Góis.
Nada conheço que se aproxime desta intimidade desvelada, deste afã em passar ao papel operações, patrulhamentos, os desastres de guerra, a apresentação dos atores, o gosto de contar histórias, os queixumes no tratamento díspar entre as praças e os oficiais e sargentos.
Estas 400 páginas mereciam ser reapreciadas pelo que valem e não tenho pejo em considerá-las um documento único, o olhar de um operário que se fez soldado e que decidiu anotar com impressionante minúcia a vida daquela companhia sediada em Fajonquito.
Que grande surpresa poder juntar o diário do soldado Góis como um acontecimento para a literatura da guerra!
Um abraço do
Mário
O diário do soldado Inácio Maria Góis (3)
Beja Santos
O segundo ano da comissão da CCAÇ 674, de acordo com o diário do soldado Góis, foi mais movimentado na atividade operacional, mais doloroso pelos sacrifícios, pela perda de vidas e número de feridos. O soldado Góis pode andar desalentado mas em caso algum abandona este relato único na literatura da guerra de África. Logo em 26 de Junho a Companhia parte para Sarinhaco(1) (entre Fajonquito e Farim) havia notícias de uma presença regular de guerrilheiros na área. Neste tempo ainda se combate com capacete. O pelotão de milícias comandando pelo alferes Galã vai à frente. Estamos em plena época das chuvas. Ao amanhecer, avistam tabancas junto a um vale, entram cautelosamente e dão com dois homens já em idade avançada. Queimam-se as tabancas, um dos anciãos é baleado à queima-roupa e quando a força se embrenha na mata começa uma emboscada, as consequências foram um milícia ferido. Na retirada veio a aviação e bombardearam toda a zona da emboscada. Encaminham-se para Sárdico aonde vai aparecer o Comandante de Bafatá que insistia que regressassem à frente de combate mas o Comandante de Companhia considerou que estavam completamente exaustos.
Toda esta intensidade operacional aparece entremeada por colunas de abastecimento a Bafatá, pernoitas em Cambajú, há guerrilheiros capturados que virão a ser fuzilados, o diarista descreve os vencimentos de todos os membros da CCAÇ 674, depois segue-se para uma operação ao Oio, onde se capturam civis: “Capturámos 1 homem, 2 mulheres e 3 crianças, os outros conseguiram fugir, conseguimos também capturar 3 ovelhas e 75 vacas, que foram entregues aos soldados da milícia, que as fizeram chegar a Fajonquito. Os prisioneiros foram levados pelos soldados da milícia, as crianças, as mulheres e o homem não foram mal tratados. Andámos mais uns 200 metros e surgiu uma nova bolanha, alguns camaradas tinham bastante sede e começaram a beber a água, apesar desta se encontrar muito turva”.
O diarista está firme no seu posto, escreve logo a seguir: “Tento escrever os dias mais tristes e mais amargos da minha vida, assim como os dos meus camaradas. Estes factos são os reais e verídicos, são escritos na frente de combate, os meus camaradas podem confirmar, mesmo havendo quem não dê grande importância ao que eu vou escrevendo no teatro de guerra”. É uma retirada esgotante, não faltam pormenores. Os patrulhamentos são insistentes, a escrita não desfalece, tem interrupções quando o diarista é atacado pelo paludismo. Todos os seus amigos são mencionados, são um exemplo da sua página de 6 de Setembro: “Quando escrevo estas tristes e amargas palavras, tento escrever para comigo e ao mesmo tempo narrando o sofrimento do meu amigo Vítor João Caniço, natural de Santo Estevão, Ribatejo. Pertence à CCAÇ 727 (…) Dia 24 de Junho de 1965, quinta-feira, próximo de Canquelifá, onde se encontrava acantonado o pelotão do meu amigo Caniço, os guerrilheiros pela calada da noite aproximaram-se do aquartelamento e lançaram diversas granadas de morteiro e dezenas de rajadas de metralhadora, surpreendendo os soldados que não tiveram outra alternativa senão abandonar o pequeno aquartelamento e foram para a mata para tentarem salvar as próprias vidas. Neste ataque morreram 3 soldados, o meu amigo Caniço sobreviveu mas deixou a sua arma que os guerrilheiros levaram e agora tem um auto levantado”.
Nova operação em Sarinháco(1), foram emboscados. Andam perdidos pela mata e depois de muito sobressalto chegam a Sárdico(2). A partir de Outubro toda a prosa é um espelho de sofrimento, abundam as imprecações, as operações e os patrulhamentos não abrandam. Em 11 de outubro fala nos últimos 7 meses de sofrimento que ainda tem pela frente, isto durante um patrulhamento a Sitató. Acantonam regularmente em Cambaju, aí o soldado Góis esmera-se na cozinha e diz com orgulho: “Comemos todos do mesmo caldeiro enquanto em Fajonquito há duas cozinhas, uma para os soldados e outra para os oficiais, sargentos e furriéis”. É em Cambaju que o diarista se apercebe do drama das populações sujeitas a duplo controlo e escreve: “Os guerrilheiros nem os próprios irmãos de cor respeitam, cada vez há mais ódio e vingança”. Comove-se com o drama das crianças, muitas delas perderam já os seus pais. E começa um registo intenso de rebentamento de minas antipessoais e anticarro. De Cambaju vai pernoitar a outra tabanca, Alicunda. E passa o dia de Natal em Cambaju. A passagem de ano é um delírio, emborcaram champanhe, vinho do Porto e uísque, a bazuca e algumas granadas de mão deram sinal de festa, a população de Cambaju estava arrelampada com tanta gritaria e gente bêbeda.
Regressam a Fajonquito e ele escreve a 2 de janeiro: “Sou o único militar que me considero repórter de guerra, sou o único que vou escrevendo o que se vai passando na companhia” e uma semana depois nova operação no Oio, vão para Sarinháco(1), vai ter lugar uma emboscada fatal: “Chegámos a Sárdico(2), são 17:45. Ao aproximar-me das viaturas encontrei um camarada encostada à mesma e eu toquei-lhe pensando que ele estava ferido mas verifiquei que já estava morto; tinha partes do corpo completamente abertas e estava crivado por dezenas de balas. Subi para cima da viatura que sofreu a emboscada, nunca tinha presenciado um cenário tão horrível. Vi 9 camaradas mortos, em cima uns dos outros, estendidos sobre o solo da viatura. Vi um camarada que se encontrava sentado no banco da viatura mas já não tinha cabeça, a mesma encontrava-se junto aos seus pés. Muitos dos meus camaradas não conseguiram resistir a tudo isto, cada um chorava pelo seu canto. Os nossos camaradas não tiveram a felicidade para pedir a Deus para os salvar e dizerem adeus aos seus familiares. Os meus olhos viram e ficaram cheios de tanta mágoa e de uma tristeza profunda”.
É um dos trechos mais patéticos que saíram do punho do soldado Góis, ele não se poupa a descrever a colocação dos corpos dentro das urnas e a sua deposição no cemitério de Bafatá. E volta a pernoitar em Cambaju e Alicunda. Em Fajonquito é colocado de faxina à cozinha e explica a sua missão: “Carregar água que temos de tirar de um poço que fica a pouco mais de 30 metros da cozinha, temos também que carregar lenha, descascar batatas, louça não há para lavar porque cada um de nós, soldados, come na sua própria marmita, umas vezes ao sol outras à chuva". Em 1 de fevereiro regista: “Os últimos 60 dias que nos faltam para deixarmos a frente de combate”. Num desastre morre o soldado José Rodrigues Vicente Murracão, será sepultado no cemitério de Bafatá em 2 de fevereiro: “Estes são os factos verídicos desta guerra que vai continuando e ao mesmo tempo ceifando a vida a dezenas e dezenas de soldados, dia após dia, durante anos e anos, mas esta guerra um dia terá fim, tenho esse pressentimento para comigo”.
Temos depois o rebentamento de uma mina anticarro acionada entre Cambaju e Fajonquito, morre Aires de Jesus Ferreira, natural de Sargaçal dos Vinagres, Pombal, virá falecer perto das 8 da noite, a notícia amarfanhou toda a gente: “Eu acompanhei todo este inferno de sofrimento e por algumas vezes não consegui deter as lágrimas. O meu camarada Pombal lutou contra a morte durante mais de 3 horas, se o helicóptero tivesse vindo quem sabe se a sua vida teria sido salva?”. Haverá registo de mais mortos, sinistros com armas que se disparam durante a limpeza, pernoitas em Sómundo, chega a notícia que morrera o camarada Silva que tinha ido para os Comandos e no fim de março saem de Fajonquito, todo o mês de abril será passado em missões em Bissau, no fim de abril partem para Lisboa.
É um documento único, lê-se com comoção tudo quanto escreve o repórter Góis, apetece escrever para Porto Covo e pedir-lhe que reveja este exercício extraordinário de registo, valeria a pena pensar numa edição que garantisse ampla divulgação nacional das memórias do soldado Góis.
Nota do editor baseada na informação de Cherno Baldé:
(1) - Sare-Nhaco
E por analogia:
(2) - Sare-Dicó
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10148: Notas de leitura (380): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Caros amigos,
Nos registos do seu diario, o autor, Inacio, M. Gois, fala muitas vezes de operacoes na regiao de Caresse e outras vezes fala de operacoes no Oio que, no fundo e no entendimento local da época, é a mesma coisa, pois sao tres regulados contiguos e problematicos(Cola, Caresse e Oio), uma regiao extensa que vai de Fajonquito (Saré-Jambara) até Cuntima ao norte (40 Km?), até Canjambari a oeste (50 Km), ou Banjara, passando por Cntacunda ao sul. Uma terra de ninguém onde os guerrilheiros so serao oportunados por operacoes pontuais que foram diminuindo gradualmente até serem abandonadas.
A partir dos anos 70, uma incursao ao Cola-Caresse tinha mesmo que contar com tropas especiais. Esta regiao estava ligada ao Oio (Banjara) que, por sua vez, poderia estar ligado ao corredor de Enxalé-Xime-Xitole e por ai diante.
O nome do comandante do pelotao da milicia é Guela Baldé e nao Gala como ele, erradamente, escreve. Era meu tio e pertencia a casa real de Canhamina de que ja tive oportunidade de cronicar aqui no bloque. Morreu numa emboscada, em 1971, na estrada de Cambaju. O Carlos Vinhal sabe de quem estou a referir-me. Ha uma controversia quanto a sua graduacao. Em 1964 ele ja era Alferes mas parece que, antes da sua morte teria sido promovido, pelo menos é o que afirmam muitos testemunhos.
Mais uma vez, sugeria ao Inacio M. Gois a actualizacao dos toponimos locais, alterando Alicunda por Ualicunda e Somundo por Sumbundo (ver carta de Fajonquito se disponivel).
De resto, gostei do relato cujo livro espero um dia poder vir a consultar pessoalmente, sem deixar de lamentar as mortes pelo caminho e sobretudo os fuzilamentos dos civis em condicoes onde era extremamente dificil provar a sua culpabilidade ou implicacao directa com a guerrilha.
Muito obrigado ao Mario B. Santos
por mais esta revelacao e,
um grande abraco aos Gra-Tabanqueiros.
Cherno Baldé
Ao querermos "acompanhar a velocidade" destes tempos, muitas vezes damos opiniões que, pouco depois, teremos que corrigir.
É o que temos e somos.
Agora, com um grande abraço para o Cherno, agrego a minha opinião - aposta na primeira parte desta recensão - com a dele, que consta do comentário anterior.
Reescrevo o meu comentário:
Esta história, ao ser reeditada, não deve sofrer qualquer correcção.
Eu adorei, porque genuina, a alusão das "Foquesses" (Fox).
Concluo: ao haver reedição deverá manter tudo como está, mas salvaguardo a hipótese de uma boa revisão, por quem saiba, com notas que esclareçam algumas situações.
Errata,
Em tempo, na ultima frase do primeiro paragrafo do meu comentario, onde escrevi "oportunados" queria escrever "importunados".
Com as minhas desculpas,
Cherno Baldé
PS: O Inacio M. Gois, num registo com data de 2 de Janeiro de 1966, descreve uma cena de horror e de morte na estrada entre Fajonquito-Canjambari nas imediacoes de Sare-Dico. Penso que se trata da mesma operacao "Durao" em que, para além das CCAC 674 (Fajonquito) e 675 (Canjambari) participou o BCAV 757 de Bafata-7 de espadas. (dados de um poste recente na TG, de cuja autoria nao me lembro).
No entanto, verifico que as datas nao coincidem pois, o Inacio registou a 2 de Janeiro e no poste falava-se de uma operacao que teve lugar de 10 a 12 de janeiro de 1966.
Com um abraco amigo,
Cherno Baldé
Para iniciar o meu comentário, que fazer um pequeno reparo do Cherno Baldé, sobre o dia 2 de Janeiro a que ele faz referencia, que é a seguinte:
"Regressam a Fajonquito e ele escreve a 2 de janeiro: “Sou o único militar que me considero repórter de guerra, sou o único que vou escrevendo o que se vai passando na companhia” E UMA SEMANA DEPOIS nova operação no Oio, vão para Sarinháco(1), vai ter lugar uma emboscada fatal:"
daí a data 10 ou 12 de janeiro estar correcta.
Mas o que me leva a este comentário, é que o meu irmão contou-me que uma vez sobre esse massacre, e que fora ele que se tinha voluntariado para transportar a viatura com os corpos dos mortos, visto os condutores e restantes camaradas estavam tão afectados e desorientados sem condições de o fazerem, e quem o fize-se teria que fazer a viagem sózinho na viatura Auto-Maca sem mais viaturas a acompanhar e de noite.
O meu irmão descreveu-me que a viagem foi a mais dificil que ele fizera e que fumara um maço de tabaco inteiro no trajecto.
Para quem ainda não sabe quem era o meu irmão: Furriel Milº. Mec. Auto SÉRGIO NEVES.
Abraço
Tino Neves
A linguagem é de uma grande simplicidade e igual clareza. É uma verdadeira reportagem de guerra acompanhada de juizos de valor. A pena passa para o papel todos os pormenores, com a preocupação de nada omitir nem mistificar.E não menos importante, é notável a sua recusa em assumir-se como o protagonista principal. Ele está ali, bem no centro dos acontecimentos mas sempre preocupado com a sorte dos seus camaradas e mesmo confortado quando os prisioneiros são bem tratados. Quem de nós não gostava de ter feito um diário tão autêntico, tão humano e tão útil para a história da guerra colonial?
Um abração para ti Inácio Góis e para todos.
Caravlho de Mampatá
Enviar um comentário