Do Ninho D'Águia até África (40)
O tempo ia passando, as obras no aquartelamento tinham algum progresso, havia restos de tudo, e por todo o lado era a barafunda do costume, já havia alguns postes de cimento, colocados na parte sul, com uma certa distância uns dos outros, alinhados, e continuavam a abrir buracos no chão, derrubando algumas árvores, os veículos militares começavam a chegar com rolos de arame farpado, feios, cheios de espetos, intimidativos e arrogantes.
Estava a começar a colocação do arame farpado nessa área, a verdade estava a vir ao de cima, estavam a começar a demarcar fronteiras, para lá do arame farpado era terreno proibido, talvez dos guerrilheiros, portanto do inimigo, para cá do arame farpado, era terreno conquistado, portanto, era nosso.
Era esta a verdade que o Cifra compreendia, não porque tivesse tido escola superior ou alguém o tivesse instruído nesse sentido, mas era a natureza das coisas, que o fazia compreender, e também se recordava dos livros com histórias aos quadradinhos, que o Carlos, filho do Santos dos Correios, que tinha vindo dos lados de Leiria, trazia e lhe dava, a troco de uma conta de multiplicar ou dividir, em que o Cifra, nessa altura o To d’Agar, lhe resolvia, e onde vinham histórias do Oeste americano, nas quais os rancheiros no Arizona, no Texas ou em Montana, demarcavam fronteiras com o maldito arame farpado, e já nesse tempo andavam aos tiros para resolver as questões de fronteira.
Ora nós, os militares, estávamos a demarcar fronteiras, esta era a realidade das coisas, sem talvez nos apercebermos de que estávamos a dar todo o terreno ao inimigo e a isolarmo-nos numa área cercada de arame farpado.
O Cifra também compreendia que não era bem este tipo de protecção que precisávamos, mas porquê então este isolamento? E logo com arame farpado?
Era sinal de que não estávamos num cenário livre. Enfim, neste caso, o arame farpado até foi útil, talvez só pela sua presença e intimidação, deverá ter evitado muitos confrontos, portanto, salvou muitas vidas, tanto nos guerrilheiros, como nos militares, oxalá que sim.
O Cifra nunca se sentiu seguro dentro do arame farpado, se tinha medo continuou a tê-lo, tentava não pensar no perigo, tentava sobreviver, arranjando sempre algo que lhe mantivesse a mente ocupada, por isso fumava, também bebia e andava pela aldeia com casas cobertas de colmo que existia perto do aquartelamento, onde não havia arame farpado. Havia pessoas que, embora vivessem numa profunda miséria, gostavam dele, o acarinhavam, o abraçavam, entre outras coisas, e que eram suas amigas, e lhe acariciavam as mãos, dizendo “ca bai”, quando se despedia.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10876: Do Ninho D'Águia até África (39): Passa por mim em Mansoa (Tony Borié)
8 comentários:
Tony
Como sempre,gosto do teus escritos,mas hoje,1 de Janeiro,dia Mundial da Paz(será?)realço aquele desenho com a tua visão do arame farpado,onde as pombas vão passando...
Da nossa terra,o meu abraço
Paulo
Caro Tony
O Cifra é um 'fulano' que pensa(va) muito, verdade?
Aproveito a boleia do Paulo Santiago para realçar o facto, felicitando-te por isso, de que as ilustrações com que nos presenteias, para além das fotos, são muito interessantes e contribuem bastante para a riqueza dos textos.
Voltando ao Cifra, ora vê lá o que lhe deu para 'matutar'... o arame farpado é realmente divisória, 'fronteira', mas protege quem de quem?
Abraço.
Hélder S.
Caro Tony Borié,
Obrigado por continuar a brindar-nos com os teus textos que parecem simples e ingénuos mas contem pensamentos profundos que merecem reflexao.
Também, com o passar do tempo, comeco a ter a percepcao que, de facto, de uma forma geral, a preocupacao maior com os arames de proteccao e sobretudo a construcao de dispositivos de defesa e seguranca foram parte de um plano posterior (talvez a partir de 68?)quando o exercito portugues se apercebe, finalmente, que a guerrilha esta bem instalada no territorio e que a guerra podia durar mais tempo que o inicialmente previsto.
Um forte abraco e continua;
Cherno Baldé
Caro Tony
Também tenh que fazer um reparo ao teu desenho do arame farpado e das pombas para além gostar do que tens vindo a escrever.
Parabéns pela tua sensibilidade
"o Cifra compreendia, não porque tivesse tido escola superior ou alguém o tivesse instruído"
Tony,nem todos tinham falta de "instrução", já havia muito comandante com o curso completo de «coimbra-e-tarimba».
E havia alguns estrategicamente dispersos a dar umas aulas discretas, principalmente uns tempos antes do embarque na metrópole.
Tony, não há quarteis sem arame farpado e porta de armas.
Custa mesmo, é compreender como tanta gente pode resistir meses e meses dentro de uns tantos metros quadrados.
Aí havia falta de atenção e imaginação de comandantes, não era falta de soluções para amenizar o isolamento.
Mas para a ilha das Galinhas só iam os deportados, e para Bubaque só iam os Comandantes e famílias.
Cumprimentos
1. Toni, já não me lembro quando começaste a mandar as tuas ilustrações... Donde te vem este talento ? Começaste só agora ou já há muito que desenhas ?
2. Outra coisa:
o Cifra nunca quis saber quantos quilómetros de arame farpado "plantámos" nós na Guiné, pequeno território do tamanho do Alentejo ?
Não sei ao certo quantos aquartelamentos e destacamentos existiam no TO da Guiné... incluindo as tabancas com milícia e em autodefesa... Seriam muitas muitas, largas centenas...
Tudo somado, daria muitos (milhares de) quilómetros de arame farpado e postes de madeira (que eu presumo fossem importados da metrópole ou usava-se as rachas de cibe ? não tenho a certeza...).
Concordo com o Cifra, é estranho viver-se (ou ter que viver-se) dentro de arame farpado... Dois anos...
Olá Luís.
Tens toda a razão, o que se usou na Guiné, daria milhares de quilómetros de arame farpado, e depois da minha experiência, fiquei a odiar, passe termo, o arame farpado, dentro dele, sentia-me preso, sem ter praticado nenhum crime, a não ser estar lá, no lugar do conflito.
O jeito para o desenho, quando novo, e nas escolas por onde andei, aqui nos Estados Unidos, tirei algumas classes, pois fazia parte da minha graduação, e agora com mais tempo, tento improvisar algumas imagens, que não são lá muito perfeitas, mas os nossos camaradas combatentes merecem tudo, e assim talvez possa exemplificar melhor a intenção dos textos que vou escrevendo com a vossa ajuda, na correcção do meu miserável português. Não tenho muitas fotos, em meu poder, tinha quando regressei a Portugal, mas ficaram em casa de meus pais quando emigrei, essa casa muitos anos depois ficou para uma irmã minha, onde um sobrinho meu sabendo do meu gosto pela Guiné, me mandou algumas em muito mau estado, mas que eu tento recuperar.
Um abraço para ti, e todos os que põem o seu comentário nos meus escritos, são todos uns "cinco estrelas", como agora diz a nova geração.
Bom ano de 2013, Tony Borie.
Caro Tony Borié,
É curioso que eu acho que nunca encarei o arame farpado como um limitador da minha liberdade, mas sim como um protector.
Tivesse ou não pesa espíritos (garrafas de cerveja vazias para fazerem barulho) avisando-nos de qualquer perigo.
Em Guidage servia para nos proteger a nós e à população cerca de 500 alminhas contando com as nossas pois a população tinha a tabanca dentro do arame farpado.
Isto de Outubro de 1968 a Março de1969. Porque depois, não sei quando acho que fizeram um aquartelamento com condições completamente diferentes e ainda bem porque no "Maio quente de 1973" tinha sido ainda pior se estivesse tudo misturado, mas no meu tempo foi muito bom e tínhamos uma relação admirável com a população. Era mesmo 5 estrêlas.
Se calhar até foi mesmo esse conjunto de circunstâncias que me fez encarar o arame farpado desta forma tão leve.
Manga d´abraços para ti e para todos.
Adriano Moreira
Ex-Fur.Mil.Enf. CART. 2412
"SEMPRE DIFERENTES"
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