1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2015:
Queridos amigos,
A todos recomendo que saboreiem esta obra, editada em 1992, pela Vega, hoje editora Nova Vega, adquiri recentemente a tradução portuguesa.
Manda a verdade que se diga que conheci este relato de Eustache de La Fosse quando li "Lá Découverte de L'Afrique", de que a seu tempo se fez a competente recensão.
Estas desventuras de um mercador na Mina, com tráfico de escravos, pilhagens, a descrição das ilhas Encantadas, uma condenação à morte em Lisboa e as peripécias da fuga até regressar a Flandres são um verdadeiro assombro, e com a Guiné ao fundo.
Não percam.
Um abraço do
Mário
Crónica de uma viagem à Costa da Mina no ano de 1480:
A narrativa assombrosa de Eustache de La Fosse
Beja Santos
As desventuras de um mercador flamengo nas costas da Guiné no século XV é um cativante relato que se aprecia melhor quando se conhece o ambiente em que tudo ocorreu. Nestas costas que iam sendo progressivamente descobertas, na sequência do projeto henriquino, afoitavam-se alguns comerciantes que conheciam a tentativa do monopólio português. Estes mercadores vinham municiados de verdadeira pacotilha como pratos de cobre e estanho, latoaria, com que procuravam trocar por ouro ou escravos. Recorde-se que o primeiro mercado de escravos fora estabelecido em 1448 na baía de Arguim. Um dos pontos altos deste mercado ocorrerá no século XVI quando as plantações se desenvolveram na América; no século XV havia escravos que iam para a Madeira para o cultivo da cana-de-açúcar, o grosso deste tráfico era feito entre reinos africanos que pagavam com ouro.
É uma verdadeira economia de troca, com combates, pilhagem e a deslealdade sem limites. O reino português sentia-se legitimado pelas bulas pontifícias que prefiguraram a partilha do mundo feita em 1493 pelo papa Alexandre VI entre Espanha e Portugal (Tratado de Tordesilhas).
Eustache de La Fosse, mercador flamengo natural de Tournai, intermediário de um rico mercador de Bruges, chegou a Sevilha em 1479 e subiu para uma caravela carregada de mercadorias de troca. Irá viajar até à Serra Leoa, será preso pelos portugueses e a sua mercadoria apresada, trazido para Portugal, onde será condenado à morte por fazer contrabando, e descreve as peripécias da sua fuga. O texto foi publicado em 1897, e o responsável pela publicação R. Fouché-Delbosc tece os seguintes comentários:
“O navegador aporta a Espanha por mar; desembarca em Laredo, e atravessa Burgos, Toledo, Córdova e Sevilha. Aqui toma conta das mercadorias que deveria transportar até à Costa do Ouro. Visita Safi, as Canárias, o Rio do Ouro, o Cabo Branco, Cabo Verde, a Serra Leoa, a então chamada Costa das Sementes, e, finalmente, a Costa do Ouro.
Aqui, e quando principiava a relacionar-se com os indígenas, quatro caravelas portuguesas assediam a sua embarcação, metralham-na, apossam-se dela e pilham-na. Feito prisioneiro, é obrigado a ajudar os portugueses a vender as suas próprias mercadorias.
Depois de terem capturado em diversos locais indígenas de todas as etnias, de La Fosse é levado para Portugal. Aqui, e sem mais delongas, o rei condena-o a ser enforcado por ter estado na Costa do Ouro sem a sua autorização. Consegue fugir para Espanha. Muitas aventuras mal sucedidas até que, por fim, consegue chegar a Corogne, na Flandres.
Um dos principais atrativos desta narrativa reside no facto de ter sido escrita pelo próprio navegador. Da mesma época, e referindo-se, se não às mesmas regiões, mas pelo menos a regiões próximas, só temos, como termo de comparação, nela avultando idênticas particularidades, a obra de Cadamosto (1455)”.
É uma empolgante narrativa de aventuras em que se fala da semente do Paraíso (a pimenta), as descrições geográficas, pela sua vivacidade, recordam-nos André Álvares de Almada, Eustache de La Fosse vinha para mercadejar e tudo conta ao detalhe:
“E também eles nos traziam mulheres e crianças para venda, que nós comprávamos, e depois revendíamos nos mesmos sítios ou onde nos aprouvesse. Custavam-nos mãe e filho uma navalha de barbear e ainda três ou quatro anéis de latão no ato da compra. Depois quando estávamos já na Mina, vendíamos mulheres e crianças por uns bons doze ou catorze pesos de ouro, e cada peso valia três estrelinos de ouro”.
Fala dos diferentes linguajares da Mina, do seu aprisionamento por Diogo Cão, o mesmo que chegara ao rio Combo. Refere os negócios da mourama na Mina. Garante que viu leprosos a besuntarem o seu corpo com sangue de tartarugas, assim ficavam curados. Aportaram a Cabo Verde e mais adiante falam-nos das ilhas Encantadas:
“Fizemo-nos de vela para Portugal, e tivemos vários dias de vento não favorável mas outros dias vieram em que o vento soprava de boa feição, e enquanto assim navegávamos vimos algumas aves a voar. E os marinheiros diziam que essas aves eram das Ilhas Encantadas, ilhas essas que nunca surgiam sobre as águas, tal se devendo a um bispo de Portugal que, com todos quantos o quiseram seguir, se sublevou e se apresentou a Carlos Magno, dizendo que todas as Espanhas tinham sido conquistadas pelos Sarracenos, como Aragão, Granada, Portugal, Galiza. E então o tal bispo, mais os seus sequazes, fizeram-se ao mar e foram até às ditas ilhas. E foi o caso que o dito bispo, que era um grande clérigo, e conhecendo a arte da negromância, encantou as tais ilhas, declarando que elas nunca se mostrariam a ninguém enquanto todas as Espanhas não passassem para a nossa boa-fé católica. E os marinheiros viam sempre as aves já ditas e reditas, mas nunca aos seus olhos viram as tais ilhas”.
Chegados a Lisboa, começam as novas tribulações de Eustache de La Fosse, uma fuga ousada com mil expedientes, peripécias mil, até os seus manuscritos desapareceram, e um dia aporta a Bruges, e deste modo dá fim o seu relato: e assim terminou a minha viagem, de corpo salvo, mas com todos os bens perdidos. Graças a Deus, ámen. Um documento precioso que traz um excelente contributo para o conhecimento de uma época ainda mal conhecida. Aqui se misturam a precisão das descrições geográficas, à luz dos conhecimentos da época, e se fala do encantamento, na crença das Ilhas Encantadas.
Que maravilha!
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15821: Notas de leitura (813): “A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola”, tese de doutoramento de Josep Sánchez Cervelló, Assírio e Alvim, 1993; e Revista Africana, publicada pela Universidade Portucalense, número de Março de 1992 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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8 comentários:
“E também eles nos traziam mulheres e crianças para venda, que nós comprávamos, e depois revendíamos nos mesmos sítios ou onde nos aprouvesse. Custavam-nos mãe e filho uma navalha de barbear e ainda três ou quatro anéis de latão no ato da compra. "
Ah,grande Mário BS! Estou sempre a aprender com estas incursões esclavagistas de teor beja santiano agora nos entendimentos da História da Expansão pelas costas africanas da Guiné (não a nossa Guiné mas toda a terra que ficava para sul do cabo Bojador).
Que maravilha,logo naquele espantoso sec.XV!
Abraço,
António Graça de Abreu
Humilde(?) Mestre em História da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses, (1999) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
António Graça de Abreu, se ainda hoje lemos que crianças são levadas de Bissau para o Senegal e outros países, dentro dum tal espírito mussulmano, e não só. que não consigo entender, porque devemos estranhar essa venda de mulheres e crianças naqueles séculos que relata BS?
O tráfico de crianças e jovens hoje 2015, em África, deve ser algo bem terrível.
Até é bom não sermos poliglotas para não entendermos o que se passa por lá.
Cumprimenos BS e AGA
Caros camaradas
Volto a dizer.
O Mário Beja Santos não é o autor do livro.
O que o Beja Santos apresenta é um livro, que foi inicialmente editado no estrangeiro e tem uma edição portuguesa, salvo erro de 1992.
Faz os seus (dele) comentários, as suas observações e, também, obviamente, as suas 'escolhas' naquilo que achou por bem, ou mais relevante, ou mais 'apelativo', para nos 'aguçar o apetite' a ler tal livro.
Não me pareceu fazer a apologia de nada.
Não me pareceu tirar ilações. Que cada um as faça.
Por isso me interrogo porque 'carga de água' há-de continuar, a pretexto de tudo e de nada, a ser destilado tanto ódio, tanta insolência?
Não haverá meios de isso se tratar?
Hélder Sousa
"Ódio?"
Que Deus Nosso Senhor tenha piedade do Hélder, e de mim.
Abraço,
António Graça de Abreu
"Aqui nasci, aqui aprendi com meus Pais a falar a língua que nos une e une a centenas de milhões por todo o mundo.
Aqui eduquei os meus filhos e espero ver crescer os meus netos.
Aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os Portugueses. Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos.
É para Portugal, para cada Portuguesa e para cada Português que vai o meu primeiro e decisivo pensamento.
Feito de memória, lealdade, afecto, fidelidade a um destino comum."
São palavras do presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, hoje na tomada de posse.
Ódio por outros camaradas meus de luta nas terras da Guiné?
Ódio?
Ódio?
Cuidado, meu caro Hélder!
Abraço,
António Graça de Abreu
Meu caro António
EU não sei exactamente o que TU pretendes. Isso é uma prerrogativa tua.
Há um comentário anterior a este último onde citas parte do discurso do Senhor Presidente da República, mas reprimi o desejo de te responder, de te tentar trazer ao essencial do que tinha sido o meu comentário que motivou o teu e não apenas ficar pela superficialidade 'indignada' relativamente a uma palavra "ódio".
Voltas agora novamente ao assunto e ao tema do "ódio".
Ora bem, embora não 'sabendo' as tuas reais pretensões, sou por vezes sobressaltado por pensamentos menos bonitos a respeito delas, pela insistência obsessiva com que abordas recorrentemente certos temas, assuntos, 'medos'.
Vamos ver se consigo transmitir, de forma resumida e sem que isto possa ser entendido como uma contenda qualquer (que repudio), o que é para mim o essencial.
Começando pelo princípio, como convém, 'redigo' e 'tredigo' o que já afirmei várias vezes: tenho-te como uma referência, já que foi através de ti e do teu "Diário" que cheguei a este Blogue. E não é só pela 'referência', é que o "Diário", tendo sido escrito 'em cima dos acontecimentos' revela-nos muita coisa, com muito interesse. É um documento de razoável genuinidade, embora seja fruto do que se poderá chamar "jovem António". Posteriormente, o "jovem António" ficou 'menos jovem', o seu pensamento 'amadureceu' e as suas 'visões e entendimentos das coisas' foram-se adaptando. Quanto a isso nada tenho a opor, acho que as pessoas podem, e devem, evoluir (já 'involuir' é outra coisa...) mas já não considero 'bondade' que ao mudar de visão se faça um revisionismo militante e impositivo.
Questão de feitio.
Para além disso ainda, e também, aprecio a tua 'veia poética'.
Mas já não acompanho o teu estilo de intervenção aqui no Blogue.
Repara que o grosso das tuas intervenções é de uma "marcação cerrada" a pretexto de tudo e de nada, ao Beja Santos. Ao que ele escreve, ao que ele opina e até, vê lá, ao que nem sequer é dele (e tu insurges-te como se fosse) mas que nos apresenta ao conhecimento. Aqui, cada um é livre de captar o que entender do que é apresentado mas tu primas por puxar à colação os temas que te interessam, do ponto de vista que te interessa e espicaçando os brios dos camaradas para te coadjuvarem no teu ponto de vista. O exemplo mais flagrante disso é a tua constante picardia por causa da expressão "guerra perdida" (que já foi mais que falado, explicado, demonstrado, etc., que não é 'invenção' do Beja Santos, que algumas vezes a reproduziu mas cuja paternidade é bem anterior a este Blogue), procurando levar os camaradas a pensar que se está a dizer "vejam lá seus heróicos guerreiros, que vos estão a chamar cobardes, que vocês foram derrotados, que vocês perderam a guerra".
Para mim isto é, no mínimo, pouco sério.
Agora a questão do "ódio" que, aparentemente, te incomodou.
Escreves num primeiro comentário ""Ódio?" Que Deus Nosso Senhor tenha piedade do Hélder, e de mim".
António, não invoques o Santo Nome do Senhor em vão!
Agarraste-te à palavra. Mas a palavra não existia por si só, ela estava lá como corolário interpretativo do que me parecia a tua intervenção. E não cuidaste de esclarecer o que eu contestei, de desmentir o que eu referi, e que, isso sim, é que devia merecer a tua reflexão.
Vieste agora citar o Sr. Presidente.
E muito bem. O que transcreveste só me pode merecer aplauso.
Mas, já agora, se me permites, respigo a última frase que transcreveste. Aquela que diz "Feito de memória, lealdade, afecto, fidelidade a um destino comum". Li as palavras todas e não só apenas algumas.
E até por causa disso preciso de saber qual o 'sentido' que quiseste dar à tua expressão "Cuidado, meu caro Hélder!". É um 'aviso'? Uma carinhosa chamada de atenção? (a quê?) Uma ameaça? Como devo interpretar?
Abraço
Hélder Sousa
Comecemos pelo fim.
Escrevi "cuidado, Hélder" porque não gosto de ser insultado. Apenas isso. A palavra "ódio" e tudo o que lhe é subjacente não faz parte da minha maneira de estar na vida e no mundo. Se não entendes,o problema é teu.
Quanto à "guerra perdida" é o respeito pela nossa História, pelos nossos mortos, pelos mortos do PAICG. Se não entendes, o problema é teu.
O Mário Beja Santos é um camarada da Guiné.Por isso, merece-me respeito. Embora não goste muito da pessoa,e discorde frequentemente do que escreve, sou capaz de lhe dar um abraço. Se não entendes, o problema é teu.
Abraço,
António Graça de Abreu
António Graça de Abreu
Caro António
Para tua tranquilidade e serenidade informo-te que "percebi".
Até deu para desfazer a dúvida que coloquei quanto à tua expressão ser um conselho, um aviso amigável ou uma ameaça, já que esclareceste bem.
E, claro, que isso, de 'perceber ou não perceber' seria sempre 'problema meu'.
Já 'outras pessoas' passam bem pelos 'problemas'.
Percebi tudo. O explícito e o implícito.
Como de costume, uma coisa são as palavras, outra coisa são as acções.
Abraço
Hélder Valério de Sousa
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