Foto de Belarusangola
1. Em mensagem do dia 18 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, a segunda relembrando os seus bons tempos vividos em Angola.[1]
BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 11
Feliz em África (e sem filmes)
Quando o meu filho Ze-tó fez 2 anos (Out1973), fizemos uma festa. Foi um sucesso! Ele era muito querido em toda a cidade e nós também gozávamos de muita simpatia. Ao fim da tarde cruzei-me com um furriel meu vizinho de Lourosa (Isaías da “Faroleira”), a quem “obriguei” a juntar-se à festa. Ele, relutante, afirmava que tinha de ir na coluna militar, lá para os lados de Buco Zau, junto à fronteira de Sangamongo (?) com o Congo-Brazaville. Meti-lhe na cabeça que, depois, o iria levar lá. Ele ficou, mas muito preocupado como havia de justificar-se no quartel. E, já “meio-embriagado", foi ficando até ao fim.
Um triciclo imposto antecipadamente pelo aniversariante
Eram cerca das 4 da madrugada quando o fui levar. Quando estávamos a chegar, já com raios do amanhecer, ele despertou para a realidade. Ainda lhe custava acreditar na aventura de o ter ido levar, àquela hora e sem coluna militar, para “um dos lugares mais perigosos da guerrilha no enclave de Cabinda”. Para lá, não cruzámos com qualquer carro, mesmo militar, ao longo de mais de 200 Kms.
Durante essa festa do 2.º aniversário do Ze-tó, o amigo Vinagre (Topógrafo da Câmara), estava eufórico. Tinha conseguido recentemente, o Brevet de Piloto Aviador e não falava noutra coisa. Precisava de fazer horas de voo e procurava companhia (sempre recusada) para essa missão. Eram já umas 3h30, perante as insistências da sua mulher em levá-lo para casa (pois não queria que ele conduzisse “naquele estado”), que me vejo, descontraidamente, a selar um acordo com o Isaías (o furriel meu vizinho que eu retive para a festa) de que no Sábado seguinte, iríamos, de avião, visitá-lo ao quartel, a norte de Buco Zau, para tomar um whisky no bar da messe.
No cimo da península do Malembo, onde viria a possuir terreno e projecto (em elaboração) para moradia balnear
Mesmo sem influências do álcool, o Vinagre tinha uma personalidade controversa. Vivia intensamente à sua maneira e pouco ou nada ligava ao considerado política ou socialmente correcto. Apaixonado pela vida nocturna, onde muitas vezes se descontrolava, montou uma suite em sua casa à semelhança da boite “Oásis do amor”.
E lá fomos. Foi o avião mais pequeno em que andei em toda a minha vida. Já não me lembro se atrás podia levar mais uma ou duas pessoas. O certo é que “aquilo” subiu e se manteve lá no alto, a planar sobre o mar, para além das praias do Malembo e de Landana. Logo de seguida, alinhados pela foz do Rio Chiloango, virámos na direcção do Maiombe.
Baía do Malembo
Praia de Landana
Rio Chiloango. Foto de Cabinda Buala Buitu
Durante a viagem, recebi aulas contínuas sobre aquela arte de navegar.
Pelas coordenadas, já devíamos estar sobre o objectivo, bastante a norte de Buco Zau, zona de Sangamongo. A transmissão via rádio foi difícil, mas deu para perceber que a pista estava entre o aquartelamento e uns coqueiros, no seu horizonte. Demos umas voltas e notámos um espaço sem árvores, paralelo a um rodado de viaturas. Mas tudo verde, sem terraplanagem de pista.
Entretanto, fomos avisados de que a pista era paralela à fronteira e que não devíamos atravessar esta. Pior! Já o tínhamos feito por duas ou três vezes à procura da pista. Avistámos movimentação das tropas a montarem a segurança ao longo do trilho. À terceira tentativa, lá conseguimos aterrar no capim sem embater nos coqueiros.
Conduzidos ao aquartelamento, demos a informação ao Furriel Isaías da Faroleira de que os pais me haviam telefonado dizendo que “a sua irmã havia fugido de casa com o namorado, à revelia dos pais. Mas para ele não se afligir”.
Ainda tenho presente a preocupação do Oficial de Dia que explicava ao Vinagre o perigo de termos atravessado o espaço aéreo do IN, enquanto ordenava que se atrasasse o almoço, por mais 30 minutos. Entretanto, eu manifestava a minha solidariedade, compatível com a cara triste do Isaías, encostado ao balcão do Bar, ao mesmo tempo que bebíamos o tal whisky prometido.
À caça, a norte de Cabinda, como acompanhante. No centro, o empreiteiro senhor Claudino, o tal que, já com 40 anos de África, não voltou ao “puto” (Portugal) – “porque não se havia esquecido de nada”.
Uns anos mais tarde, fomos ao casamento do Isaías. Ele procurou-nos em Crestuma e fez questão que nós fossemos. Conforme me tinha pedido, filmei todos os detalhes desse evento, desde a saída da casa dos noivos até à foto geral, na porta principal da Capela da Srª. da Saúde dos Carvalhos. Prometi preparar o filme com música e tudo o mais, próprio de cineasta amador, especializado em… Áfricas.
Na boda, tive a oportunidade de ouvir, de um seu familiar, a narração de um acto heróico, em que o Isaías numa noite, atacado pelo IN que quase havia invadido o aquartelamento. O pequeno grupo do Isaías, ao contrário dos outros, não fugiu, e, quase sozinho, conseguira ripostar ao IN.
Recentemente, num contacto de interesse comercial, estive com um filho dele, que me falou do pai e dos seus problemas de saúde. Fiquei a saber que ele ficara muito afectado psicologicamente devido às torturas que sofrera nos meses em que esteve prisioneiro no IN, antes de ter conseguido fugir.
************
Notas:
1 – Confirma-se que todos os combatentes da Guerra do Ultramar se consideravam mal em tempos de guerra; tenha sido no mato ou na cidade, em combate ou no melhor bar de zona citadina. Do que não havia necessidade era de se criarem tantos filmes, especialmente os da excessiva e ridícula valentia.
2 -Não sei o que se passou que perdi o filme do casamento. Disso, senti sempre algum desconforto nas nossas raras relações. Mas, depois de saber doutros filmes, aliviei, pensando: - Com tanta imaginação, nem é preciso qualquer registo de imagens
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
____________
Notas do editor
[1] - Vd. poste de 16 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20980: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (10): Feliz em África - I (em jeito de biografia)
Último poste da série de 23 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21002: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (11): O Bando festejou mais um ano
8 comentários:
Foram uns tempos de adrenalina generalizada, irrepetível.
Mas o mundo não gostava, achava mau aquela vida especial.
Tu continuas, ele continua e nós continuamos a gostar das tuas narrativas ,pela passagem por Cabinda .
Os actos próprios de uma juventude irrequieta ,estão bem retratados neste texto , com a tua viagem `de madrugada, para transportares o amigo Isaías , teu conterrâneo,indiferente ao eventual perigo , que fez pasmar o Oficial de Dia .
A viagem num aparelho voador minúsculo , simboliza a coragem de voar ao lado de um recente brevetado. Coisa rara nos dias de hoje.
Continua, para ele ...continuar !
Aquele Abraço
Ricardo Figueiredo
O mundo é pequeno.
Caro Ferreira da Silva
Conheci o Manuel Vinagre antigo Topografo da CM de Cabinda. Esteve comigo, foi meu subordinado em Andrada na Diamang/Endiama, nos amos 80, aquando do ataque da Unita á vila de Andrada em Março de 1986, ele deixou-se agarrar, fugiu da coluna de estrangeiros mas por incrivel, foi outra vez agarrado( eu que lhe tinha dito para subir para o meu Land-Rover, escapei, ele quiz ficar na Casa de Transito, lixou-se), ainda hoje nos almoços da malta daquele tempo falamos dele. Tanto quanto sei vivia para os lados de Vagos, Gafanha, Aveiro. Depois do ataque em 86, não voltou a Angola, e perdi-lhe o rasto. Teve um acidente de caça, a caçadeira escorregou e disparou-se levando-lhe um naco da perna.
Um abraço
Caro Ferreira da Silva
Se souber algo dele ou o contacto agradeço que mo faculte, sff.
Um abr
Carlos Coutinho
As histórias deste aventureiro, forçado ou voluntário, não sei quando acabarão, porque ele andou por mares e terras sempre em cima do arame, como se quisesse desafiar o destino. Mais uma bela história verdadeira do homem mais importante de Crestuma.
Um abraço , Zé Ferreira
Carvalho de Mampatá
Caros amigos,
As vossas palavras continuam a ser um forte incentivo para que eu conte mais alguma coisa.
Fico duplamente agradado pelo contacto do Carlos Coutinho. Claro que é o mesmo Vinagre que trabalhou comigo mais de 4 anos (70-74) na C.M.Cabinda. Nunca mais o vi e, confesso, que também gostaria de saber mais sobre ele. Espero que a caracterização que faço dele, não esteja longe da que testemunhou mais tarde. Faltou dizer na história que conto, que foi ele que foi, com os seus colaboradores, apanhar as ostras para o tal 2º aniversário do meu filho. Sem qualquer exagero, informo que ele encheu de ostras a parte de trás do Land Rover descoberto.
Grande abraço do
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
São só filmes...
Como o outro que simulava não ter peças para arranjar os "carros" (expressão dele), para "obrigar" os camaradas a andar a pé. Era preferível andar 500 Kms a pé, dizia ele, isto na Guiné, do que caírem nas minas, com corpos espalhados por todo o lado. Até levou uma porrada, por se recuar a ir buscar mais corpos.
Filmes... mas muito mal realizados, mas esses sim, não se perdem e cada vez há mais, infelizmente.
Um abraço Zé... a tua vida dava um filme, aonde é que eu já ouvi isto?...
cumprim/jteix
Caro amigo.Continuas a ser uma "fonte"
de belas histórias….Desejo,muito sinceramente
que a "fonte"não seque,para continuar a
regalarmo-nos...Um abração amigo,e Inté!!!!
Enviar um comentário