quarta-feira, 27 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21014: Historiografia da presença portuguesa em África (211): Planos de desenvolvimento no rio Geba e em Fá, um pouco antes da guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
A vasculhar a coleção do Boletim Geral das Colónias e Boletim Geral do Ultramar, publicações naturalmente oficiosas, mas onde, em dado passo, era possível obter informação sobre projetos em curso, encontrei referência ao que se pretendia fazer na regularização e defesa do rio Geba e notícia pormenorizada à Fazenda Experimental de Fá, como aqui se resume.
Seria bem interessante que quem viveu em Fá e conheceu as instalações, e possua delas imagem, aqui as publicasse.
Aproveita-se para pedir aos amigos guineenses se têm imagens atuais do que se procurou fazer para a regularização e defesa do rio Geba e de como é hoje Fá, se algum daqueles projetos teve continuidade ou se está tudo reduzido a ruínas. Talvez o Patrício Ribeiro, um confrade tão esforçado, nos dê notícia do que é a Fá atual...

Um abraço do
Mário


Planos de desenvolvimento no rio Geba e em Fá, um pouco antes da guerra

Beja Santos

Quem procura sempre alcança. Não é taleiga fácil mexer no acervo do Boletim Geral das Colónias e no Boletim Geral do Ultramar, que lhe sucedeu, em 1951, quando deixámos de ter colónias e passámos a ter províncias ultramarinas. Depois de folhear muito papel depara-se no n.º 443, de maio de 1962, um artigo onde a propósito de grandes projetos e realizações em África se faz larga referência às realizações em curso pela Brigada de Estudos Hidráulicos da Guiné: o que se estava a fazer no rio Geba e na Fazenda Experimental de Fá. Vale a pena extrair as informações oferecidas por autores anónimos.

Primeiro o Geba e a sua economia:
“Na agricultura, a principal produção é o arroz de regadio. Outros produtos comercializados da região são o coconote e o óleo de palma. A campanha da mancarra, principal produto de exportação da província, provoca um aumento do movimento de navegação do rio durante a época seca, período em que as condições de navegabilidade são mais deficientes. As estradas existentes na região servem de complemento à rede fluvial de transporte, que, devido às condições topográficas da região, com numerosos cursos de água que tornam a construção de estradas muito onerosa devido às numerosas obras de arte necessárias e desvios anormais dos percursos a que obrigam, se deve considerar como o meio mais económico de drenar os produtos agrícolas da região”.
Não menos curioso é o texto referente às caraterísticas fisiográficas do rio Geba:
“O troço do rio compreendido entre Bafatá e a foz apresenta um primeiro escalão com cerca de 35 km a contar da foz com leito sensivelmente estável, embora meandrizado; a zona seguinte, com 40 km, está altamente meandrizada e é muito instável, com as margens em permanente erosão; a zona final, até Bafatá, é estável, embora ainda meandrizada. Para dar ideia da meandrização, basta dizer que o percurso do rio entre Bafatá e Bambadinca excede 70 km, ao passo que em linha reta a distância se reduz a 27 km. De uma maneira geral pode dizer-se que a largura do leito vai estreitando de Bafatá para jusante, até Fá, onde atinge um mínimo, alargando depois gradualmente até à foz. O leito do rio está em acelerado assoreamento, como prova o facto de se registarem em 1896 marés com a amplitude de 2,40 m em Geba, quando em 1958 não excedem 0,20 metros. Este assoreamento está a dificultar cada vez mais a navegação do rio. As terras baixas marginais, que entre Bafatá e a foz atingem cerca de 18 000 hectares, podem dividir-se em duas partes. A zona de montante, com cerca de 12 600 hectares, é alagada durante a época de chuvas pelas águas do rio, que transborda do seu leito, impossibilitando que aí se faça todo e qualquer aproveitamento agrícola. A zona de jusante, com 5 400 hectares, é somente alagada em alguns pontos de cota mais baixa e nos períodos de maiores marés, sendo já hoje cultivada com arroz”.

Seguidamente, são referenciados os objetivos das obras no setor agrícola, dos transportes, na parte industrial e no setor político-social. Depreende-se que o grande objetivo era a defesa dos terrenos marginais e o aumento da área agricultável, o propósito de diminuir custos dos fretes e das despesas de conservação das vias de transporte. Pretendia-se obturar a foz do rio por um açude, impedir a propagação da maré e das aluviões por ela transportadas e manter o nível das águas a montante a cota suficiente para a navegação. A par deste objetivo pretendia-se construir um canal de navegação, com eclusas, para transpor o desnível entre a albufeira criada pelo açude e a cota natural do canal de Bissau a jusante. Faz-se o elenco do que se pretendia como obras de regularização e navegação: o açude, o canal de navegação, as eclusas de navegação. Em paralelo, haveria obras de aproveitamento agrícola: defesa contra as cheias, obras de enxugo, a estação de bombagem, a rede de rega, sobretudo. Dei voltas à procura de mais elementos sobre o avanço destes projetos, o curioso é que neste artigo do Boletim Geral do Ultramar se veem fotografias da estação de bombagem, da rede de enxugo, do campo experimental de amendoim e da rede de rega. É neste contexto também que se menciona o projeto da Fazenda Experimental de Fá.
Escreve-se o seguinte:
“Para o estudo do interesse agrícola das terras baixas marginais do rio Geba torna-se necessário proceder à experimentação, de modo a obter elementos que permitam elaborar com base segura um esquema de exploração daqueles solos. Com esta finalidade construiu-se em Fá uma fazenda experimental ocupando uma área de cerca de 125 hectares.
Entre as culturas ensaiadas na fazenda contam-se, na zona de terras baixas, arroz, juta, crotalária, cana sacarina, feijão congo e rícino; na zona da base da encosta, a cotas mais altas que a anterior, cana sacarina, citrinos, café, bananeira, coleira, ananaseiro, feijão congo, pimenta preta, mandioca e culturas miscelâneas; finalmente, na zona do planalto, amendoim, rícino e feijão congo”
.

E elencam-se igualmente as obras de defesa contra as cheias, de enxugo, de rega, a estação de bombagem, a piscicultura, referindo-se instalações que muitos militares conheceram: instalações agrícolas da fazenda, que constam de celeiro e eira coberta, instalações para pessoal e serviços, e escreve-se o seguinte:
“Num único edifício, com dois corpos, instalaram-se os laboratórios de análises, hidrobiologia, estudo do descasque do arroz e rendimentos, arquivo de sementes, etc.; os gabinetes de trabalho do pessoal técnico e dos serviços administrativos; uma sala de reuniões e biblioteca; e um anexo com o posto de socorros e enfermaria.
Em duas moradias, uma das quais geminada, fica instalado o pessoal técnico com família; numa casa com quatro quartos, o pessoal técnico sem família. Anexo a esta casa existe um centro cívico, que serve de cantina e centro de reunião.
Prevê-se a construção de outra casa para habitação do pessoal auxiliar assalariado na província da Guiné. Para os trabalhadores da fazenda construíram-se várias casas de madeira e querentim rebocado, com cobertura de alumínio, uma cozinha, um refeitório e instalações sanitárias.
A rede de abastecimento de água consta de um poço, cisterna e central elevatória; dois reservatórios de água; uma estação de tratamento de água; e tubagem de condução e distribuição”
.

Seguramente que este mundo aqui versado desapareceu, terá deixado vestígios. Bom seria que quem passou por Fá e captou imagens as publique aqui, são naturalmente posteriores a 1962. Recordo que este Boletim Geral do Ultramar n.º 443 de maio de 1962, está disponível no site, todas as imagens que acompanham a descrição destes projetos também ali aparecem. Resta saber o que é que as autoridades da Guiné-Bissau fizeram deste projeto ou que reutilização deram à Fazenda de Fá. Talvez o Patrício Ribeiro nos possa ajudar…

Fá Mandinga
Imagem retirada de http://trip-suggest.com/guinea-bissau/guinea-bissau-general/fa-mandinga/

Adriano Moreira faz a sua primeira visita à Guiné, vem de Angola, foi muito bem acolhido em Mansoa e Nhacra. Voltará à Guiné em 1962, então sim, uma viagem um pouco mais demorada, a luta armada estará para breve. Imagem extraída do Boletim Geral do Ultramar

Os meandros do Geba, imagem magnificamente captada pelo confrade Humberto Reis, usei-a com enorme satisfação num dos meus livros.
____________

Nota do editor

3 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

O edificio que se vé na imagem deste Poste é o dos antigos correios em Bafata e nao Fa-mandinga como diz a legenda e encontra-se situado logo a seguir aos escritorios da administraçao regional e um pouco antes do restaurante da transmontana.

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Boa tarde, Cherno Baldé.
Realmente, este edifício é o dos antigos correios de Bafatá, como se pode ver, em maior plano, numa fotografia do Patrício Ribeiro de Maio 2016. Em Fá Mandinga não havia destes edifícios.
A propósito de Bafatá, ontem tive que ir ao Posto de Saúde tratar da renovação do receituário de oxigénio e como o meu médico de família estava ausente fui encaminhado para outro médico.
No caso foi uma jovem médica e de nome Ansaro Baldé.
Pelo apelido Baldé a senhora doutora é com certeza natural da Guiné? Perguntei-lhe.
Sim, respondeu-me.
Por acaso não é da família do Cherno Baldé, que é economista, engenheiro, professor e antropólogo, natural de Fanjoquito, andou no Liceu de Bafatá, agora deve ter 60 anos e vive em Bissau?
Não sei, Baldés há muitos é como cá os Silvas. Tenho alguns parentes em Bafatá, mas eu nasci em Bolama, respondeu-me ela.
Depois, falamos do declínio de Bafatá e da minha doença.
O mundo é pequeno, quem diria que passados 50 anos haveria de ser consultado por uma médica natural da Guiné e de apelide Baldé, como o de muitos soldados do meu Pelotão.

Abraço, saúde da boa e cuidado com este 'co(n)vid ado surpresa'.
Valdemar Queiroz

Cherno AB disse...

Grande Valdemar,

Concerteza que se trata de uma sobrinha, pois ao contrário do que pode suceder com os Silva em Portugal com uma história mais antiga de assentamento e de integração, os Baldé's da África Ocidental (Senegâmbia), nomeadamente na Guiné-Bissau, são todos aparentados e basta um pequeno retrocesso no passado para se reencontrarem. Da próxima vez, pergunta-lhe pela origem (aldeia, sector administrativo, região e/ou regulado) dos seus pais e os respectivos nomes para que possa identificá-la melhor. Se fosse Aissatu poderia ser mais dificil porque mais abrangente, mas Ansaro é Fulacunda (Gabunkê) do mesmo ramo fula que o meu, de modo que podemos ser mais próximos do que ela pode imaginar.

É bem provável que seja filha de um antigo combatente do lado português que escolheu viver em Portugal depois de uma longa travessia do deserto após a independência.

Um grande abraço,

Cherno Baldé