segunda-feira, 25 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21008: Notas de leitura (1285): 20 de abril de 1970: o meu casamento na Catedral de Bissau (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Isto de andarmos a remexer em gavetas fechadas há décadas traz resultados como este: encontra-se um filme super 8, o tema é um casamento que se realizou em 20 de abril de 1970, na pomposamente chamada Sé Catedral de Bissau. Retive o essencial do que se passou neste dia no segundo volume do meu diário, O Tigre Vadio, onde se conta que o Comandante de Batalhão se revelou cúmplice de uma proposta do médico, forjou-se uma baixa à psiquiatria para haver casório.
Numa cena da maior indignidade, durante uma visita de Spínola a Missirá, onde era patente a escassez de recursos, e depois mesmo de se ter mostrado a documentação a pedir materiais para dirigir abrigos seguros e melhores habitações para os Caçadores Nativos e Milícias, o comandante de Bafatá entendeu em premiar-me com dois dias de prisão simples por eu não estar a dar o máximo da minha competência para a segurança do quartel no destacamento. Reagi, pedi mesmo para que este processo chegasse a instâncias superiores. O ignóbil veio depois, quando o mesmo comandante de Bafatá me deu o meu primeiro louvor, onde exarou que a minha mentalidade ofensiva e o garbo dos militares que comandava eram apontados como exemplo para todos. Moral da história: não houve férias, e arranjou-se uma estrangeirinha para aquele casamento de 20 de abril de 1970.

Um abraço do
Mário


20 de abril de 1970: o meu casamento na Catedral de Bissau

Mário Beja Santos

O autor do filme super 8, de onde se extraíram estas imagens, foi o Capitão de Engenharia Rui Gamito, alguém que, vindo um dia de helicóptero na Ponte dos Fulas, ficou surpreendido com uma bandeira portuguesa a tremular no meio de uma mata imensa, pediu ao piloto para baixar e veio conhecer-me. Não indiferente à miséria que viu, abriu-me as portas ao descaro, pedi-lhe tudo e mais alguma coisa, a começar pelos vulgares sacos de cimento, passando pelas tesouras de corte de arame, as chapas onduladas e o Sintex, este fazia muita falta, na época das chuvas a bolanha de Finete ficava intransitável, como boa parte do itinerário entre Canturé e Gã Gémeos, autênticos lodaçais, o Unimog enterrava-se até ao volante, o Sintex era a boa alternativa. E nas minhas visitas ao Batalhão de Engenharia 447 conheci o Emílio Rosa, será ele o meu padrinho de casamento, a mulher, Elzira Dantas Rosa, a minha madrinha, a filha mais velha, muito pequenina ainda, aparece numa imagem. Este filme culmina num restaurante que em 2010 já era uma ruína. No momento em que eu estava a pagar o jantar com escudos metropolitanos, o Rui Gamito fez questão de me emprestar dinheiro, alegando que se justificava pagar em escudos guineenses. Imperdoavelmente, esqueci a dívida. Uns bons anos depois, estava a almoçar com a Cristina na Portugália, vejo chegar o Rui e a mulher, e fui direito a eles movido por uma mola, depois dos cumprimentos, sentei-me e passei um cheque, pedindo mil perdões pela tropelia. A mulher do Rui estava atónita enquanto eu falava sobre uma dívida que o próprio Rui tinha esquecido.

O dia foi muito feliz para os noivos e seguramente para os seus convidados, mas nesse dia na estrada entre Có e Jolmete foram despedaçados à catanada quatro oficiais e elementos de uma comitiva, iam negociar os termos da transferência de um grupo do PAIGC para o Exército português. Tudo correu mal, hoje há elementos fiáveis sobre como tudo se passou. Apercebemo-nos de que algo de muito grave se estava a passar quando o Alexandre Carvalho Neto, a trabalhar junto do General Spínola, meu antigo colega de colégio, apareceu esbaforido a dizer que se estavam a viver momentos dramáticos na Guiné, felicitava os noivos, mais tarde falariam. E agora as imagens de um super 8 que estava esquecido e que foi transformado num CD, talvez a minha neta se venha a interessar por esta relíquia do casamento dos avós.



Na sacramental espera da noiva, conversa-se com o Capitão Laranjeira Henriques e mulher. Conheci este oficial quando fui mandado para uma operação em Mansambo, íamos até Galoiel, uma antiga base do PAIGC e patrulhar uma região do Corubal. Não escondi a minha surpresa quando este oficial chamou os alferes intervenientes para uma apresentação do que era a operação, como se iria proceder, os riscos a perder. Em operações anteriores, limitara-me a ser informado em cima da hora do que se ia fazer. Houve mesmo uma operação ao Buruntoni, a uma certa distância do Xime, em que o major de operações me informara que ia em reforço ao grupo atacante, em cima dos acontecimentos logo se veria. Não se viu nada, à saída do Xime desabou uma chuva diluviana, andámos aos tropeços horas a fio, até que ao princípio da tarde o guia considerou que estava perdido, recebemos ordem para regressar. Este oficial era primoroso no trato, quando descobri que estava em Bissau, convidei-o para o meu casamento, prontamente aceitou. Há anos atrás telefonei-lhe, está octogenário, tagarelámos, bem gostaria de o voltar a ver.




Os padrinhos de casamento da Cristina foram o David Payne Pereira e a mulher, Isabel, com gravidez pronunciada do primeiro filho. Conheci o David na crise académica de 1962, contactos de raspão, reencontrámo-nos a bordo do Uíge, e foi com muita alegria que o vi chegar ao Xime, integrado no BCAÇ 2852, um dos três batalhões de que dependi ao longo da comissão. Foi uma amizade muito terna com este casal que se prolongou por muitos anos, o David especializara-se em psiquiatria, e marcava-me almoços num tasco ao pé do hospital Miguel Bombarda, tínhamos começado rigorosamente ao meio-dia porque ele à uma e meia começava as consultas. Dediquei-lhe várias páginas do meu Diário, recebia regularmente os meus militares e a população civil, visitou-me em Missirá algumas vezes, uma delas ele veio na companhia do então Comandante do Batalhão, o Tenente-Coronel Manuel Pimentel Bastos, após o jantar, e sabedores que eu tinha levado várias óperas, “exigiram” ouvir uma fabulosa versão da Aida, de Verdi, e no final preparavam-se para eu pôr no gira-discos As Bodas de Fígaro, mas aí fiz finca-pé, pedi-lhes para irem fazer oó, tinha patrulhamentos para fazer nas redondezas e suas excelências queriam regressar de manhã cedo a Bambadinca. Como aconteceu. Ainda hoje estou inconsolável com a morte do David.



Considero que a passagem deste super 8 para CD foi uma operação quase milagrosa, desapareceram imagens da cena do jantar, convidei dois primeiros-cabos de quem era muito amigo, o António Ribeiro Teixeira, cabo de transmissões, e o Benjamim Lopes da Costa, guineense, que durante muitos anos encontrei em Lisboa, quando vinha a tratamentos. Na primeira imagem estão o Capitão Laranjeira Henriques e o inesquecível Barbosa, andava sempre com uma boina verde, numa terrível emboscada que preparámos na região de Chicri, e que apanhou em completa surpresa uma coluna que vinha de Medina, fizemos uma retirada em passo de corrida, pela noite escura, até estarmos a meio caminho de Missirá. Pois foi nesse exato momento que o Barbosa me disse, e de forma perentória, que teria de regressar a Chicri porque perdera ali a boina, a discussão a tempestuosa, eu afiancei ao Barbosa que lhe comprava uma boina verde, desse por onde desse, que não, respondeu sempre obstinadamente, era prenda de alguém a quem garantira regressar com aquela boina. E quando eu vi jeitos do Barbosa levar uma coça dos seus camaradas, encontrei uma solução, eu sabia que na tarde seguinte tinha que regressar a Mato de Cão, qualquer coisa como seis quilómetros de Chicri, garanti-lhe que ele viria comigo para resgatar a boina verde. Como aconteceu, dentro daquele quadro macabro de haver corpos espalhados, vítimas da emboscada. Foi assim.

Na última imagem está outro inolvidável amigo, o médico Joaquim Vidal Saraiva, que veio para Bambadinca depois do David Payne Pereira ser chamado para o Hospital Militar em Bissau, fiquei também com uma dívida de gratidão insuperável. Muitos anos mais tarde, telefonou-me do Hospital de Gaia, consegui encontrá-lo, chorei comovidamente quando o ouvi, sempre tonitruante e afetuoso. Aquele capitão fardado era o Capitão Miliciano António dos Santos Maltez, então Comandante da CART 2520, era licenciado em Físico-Química, sofreu muito por ter vindo para a guerra, conversámos e ele extravasou o seu estado de alma, sobre tudo quanto se passou depois e que me levou ao Xime um mês antes de casar, vai comigo para o túmulo. Há segredos que não devem ser desvendados.

No exato momento em que vos escrevo, e revisto o CD de onde se extraíram estas imagens, só resta dizer que a noiva trouxe a fatiota para o noivo, o que havia de indumentária civil foi pasto de chamas em Missirá, na noite de 19 de março de 1969, o comportamento do BCAÇ 2852 quando a nossa tropa apareceu em Bambadinca praticamente sem roupa foi inexcedível, três quintos das moranças arderam, como há imagens a atestar a dimensão do desastre, voltámos a cobrir a nudez graças à pronta disponibilidade da malta de Bambadinca; e aquele restaurante de nome Pelicano, voltado para o Geba e com vista desafogada para o Pidjiquiti, podendo-se mesmo olhar o Ilhéu do Rei, estava muitíssimo bem decorado ao gosto da época. Foi um belo jantar que paguei sem juros, uns bons anos mais tarde.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

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