terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24026: Os nossos seres, saberes e lazeres (553): As matanças eram tempos de celebração e de paz entre as famílias (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)


Bragança > estaurante  "Solar Bragançano" > Cozinha do restaurante deste "distinto e afamado  restaurante", de que são proprietários a irmã e o cunhado do  Francisco Baptista. Fica na Praça da Sé 34, 5300-265 Bragança / Telefone: 273 323 875... Olhem-me só o que deixa antever a sua página no Facebook: é obrigatório lá ir!... O Francisco este anos todos sem nos dizer nada do restaurante da mana ?!...Em 2017 foi premiado como um dos 10 melhores restaurantes de Portugal!...

Foto (e legenda): © Francisco Baptista (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de hoje, 31 de Janeiro de 2023, trazendo até nós a tradição da matança do porco na sua casa, em Brunhoso:


AS MATANÇAS
por Francisco Baptista

As matanças eram sempre aos domingos, os únicos dias de folga que os lavradores tinham, e repetiam-se por tantos dias quantos os casais de irmãos ou irmãs que cada casal tinha. Procuravam-se escalonar de forma a não haver coincidências, para que todos pudessem estar presentes nesses dias festivos.

Eram tempos de celebração e de paz entre as famílias, em que se procuravam esquecer as querelas ou pequenas guerras que podiam existir entre irmãos e cunhados,  causadas por diferenças de indoles e temperamentos, por divergências nas demarcações dos terrenos, por palavras que no calor das discussões podiam soar a insultos, por dívidas esquecidas ou que tardavam a ser pagas ou por outras questiúnculas. 

 Os cunhados e cunhadas vinham de outras famílias com algumas diferenças de ser e de estar, os irmãos, sendo filhos do mesmo pai e da mesma mãe, nunca eram iguais pois tinham ADN diferentes, herdados de uma cadeia de antepassados de melhor ou pior qualidade e com o crescimento e com a constituição de famílias próprias e exclusivas as diferenças iriam acentuar-se mais, ao ficar também sujeitos à influência benéfica ou desfavorável do respectivo cônjuge.

Estes convívios tão salutares para reforçar os laços familiares, organizados com leis e regras que pareciam imutáveis, se desmoronou como um baralho de cartas, no último quartel do século XX, com a globalização, a desertificação, o abandono dos campos, a diminuição abrupta da natalidade, e a desagregação da família. Serão na sua génese,  não de influência judaico-cristã, mas serão de origem romana mais antiga, que está na base da nossa língua, das nossas estradas e comunicações, do direito civil e familiar, a civilização que nos deixou mais marcas.

Pela proximidade e pela conjugação de todos estes factores, com a morte das mães e dos pais que procuravam mantê-los unidos, os choques e os focos de desunião, motivados também por interesses egoístas e de grupo, iriam acentuar-se inevitavelmente.

Há alguns dias um amigo e vizinho, da minha idade, homem bom e como tal considerado por muita gente (para mim um homem bom tem que o ser no plural) disse-me que tinha sete irmãos e que não falava com quase nenhum. É um artista, um profissional honesto, sempre admirei estes homens e fiquei espantado, a explicação só poderá estar no que escrevi atrás sobre as relações, as diferenças e os conflitos familiares.

Em casa dos meus pais eram criados todos os anos dois porcos, numa loja ao lado da casa. Todos os dias antes do nosso almoço e da ceia, aquecia-se numa caldeira nas grades da lareira a "vianda" com produtos da horta, couves, beterrabas, abóboras, batatas, adubada com farelos, a que se juntavam outros restos que houvesse, pois eles, sendo glutões, não eram exigentes, que seria levada para ser despejada na pia de pedra onde comiam sofregamente. 

 No Outono, quando se aproximavam as matanças, para os cevar, tornando as suas carnes mais rijas, davam-se-lhes também rações cruas de batatas, bolotas e castanhas.

Na manhã do domingo aprazado para a matança, o pai e os filhos varões mais crescidos traziam para a lareira os maiores toros de carrasco ou de sobreiro e outra lenha mais fina de boa qualidade para aquecer o ambiente, dar calor a todos, e aquecer as grandes panelas de ferro que,  guardadas na despensas, depois de lavadas, teriam que cozinhar comida para mais de quarenta pessoas, entre crianças, jovens e adultos.

Havia dois porcos nédios, para serem sacrificados aos Lares, deuses da família, que eram o orgulho da nossa mãe pois tinha sido ela que os tinha criado, e sei, conhecendo-a bem, que se sentia muito contente por ter reunido toda a gente da sua família e da do seu homem, apesar do trabalho que lhe dariam.

Pelas nove apareciam os homens da família que iriam "fazer o mata-bicho", um pequeno-almoço frugal para aquecer, à base de figos secos e aguardente.

Os porcos, um de cada vez eram atados com corda e guiados para um banco, onde os mais velhos e os jovens adultos, os deitavam e agarravam para serem mortos com um golpe certeiro de uma grande faca, chamada porqueira, manejada entre as pernas dianteiras e o pescoço, pela mão hábil do matador, um homem da família, muitos anos um tio, mais tarde um primo, que lhe atingiam o coração com um golpe certeiro, para minorar o seu sofrimento.

Depois era queimado o pêlo com colmo de centeio e raspado com navalhas e com pedaços ásperos de cortiça, para o couro ficar bem limpo. A seguir era aberto, pelo matador, tirando-se todos os "pordentros",  as tripas, o fígado, os boches (pulmões), a bexiga, os rins, etc.

As tripas seriam levadas logo pelas mulheres da família para serem lavadas na água corrente e fria, por vezes próxima da congelação, de um ribeiro, para alguns dias depois a dona de casa ensacar as chouriças, salpicões e outros enchidos.

Parte do sangue do porco era cozido e dado a comer a quem gostasse, outra parte era tratado para não coagular para fazer os chouriços de sangue.

A carne do porco,  um bem primordial tal como o trigo, o centeio, as batatas, o azeite, a hortaliça, seria guardada na despensa, de diferentes formas para alimentar a família durante todo ano. A despensa da casa era uma espécie de grande arca frigorífica onde todos os alimentos se guardavam e conservavam.

Ao almoço em casa iríamos comer galinha, vitela, ou outras carnes em alternativa. Os homens e os jovens adultos bem instalados na mesa da sala com vinho à discrição, que quase todos apreciavam, iriam sair satisfeitos, apaziguados, e a pensar na próxima matança. As mulheres e a garotada na cozinha ou na entre-sala contígua, contentes à sua maneira. As mulheres porque tinham contribuído para a paz da família alargada e os primos e primas porque tinham tido um grande convívio, boa comida e muita brincadeira.

As matanças eram feitas nas ruas por causa do fogo e da água que era necessário utilizar na preparação das carcaças e aos domingos porque, sendo dia de folga,  não iriam estorvar o trânsito dos carros de vacas proibidos de circular, nesse dia, pela Santa Madre Igreja. Nos meses de Novembro e Dezembro, em Janeiro já não porque começavam os lagares de azeite a trabalhar e iriam despejar para os ribeiros o piche, um líquido escuro, que não era azeite, que também saía das azeitonas quando se espremiam e era encaminhado juntamente com a água utilizada, para o ribeiro mais próximo, tornando as suas águas turvas e impróprias para lavar as tripas.

As mulheres que criavam os porcos, preparavam as suas carnes e faziam os enchidos, as nossas avós, as nossas mães, as nossas tias, já morreram ou estão velhinhas, tal como os seus homens que os matavam , os "desfaziam" e plantavam as hortas, com grande abundância de hortaliças e outros bens alimentares.

Os porcos,  depois de mortos e preparados na rua,  eram pendurados em vigas nas despensas dois dias para verterem bem todo o sangue. Ao terceiro dia o chefe de família iria desfazê-lo, serviço que consistia em cortá-lo de acordo com as características das partes que o constituíam. Separar os presuntos, o toucinho, o lombo, as costelas, os pés, o focinho e outras partes, era um trabalho árduo que requeria pulso, uma boa machada e facas bem afiadas. Recordo-me que o meu pai fechava-se na despensa para fazer esse trabalho e não queria ninguém à sua beira.

Em alguns concelhos transmontanos felizmente ainda há casais, alguns jovens, que se dedicam a essa actividade. É bom que não se percam os bons sabores e a qualidade dos produtos da terra fria transmontana.

"Ao ser indagado, sobre qual a ave que mais gostava de comer,  um espanhol citou as qualidades do frango, da perdiz mas suspirou dizendo: Se o porco voasse... seria ele a primeira das aves".

O porco enchia a casa dos lavradores de bons sabores desde o focinho aos pés tudo se aproveitava:

- O focinho, os pés, as orelhas, o bulho (bexiga de porco enchida com carne com osso, curada no fumeiro), tudo cozinhado com casulas (vagens secas) e batatas, compunham um prato delicioso para comer nos dias frios do Inverno, obrigatório nos dias de Carnaval;

- Os presuntos curados com muito sal, depois cinza, a seguir limpos e pendurados nas despensas, não iriam ao fumeiro, o frio seco do planalto completava a sua cura; eram das peças mais importantes e apetitosas do animal, comidos com parcimónia em dias especiais e na recepção de familiares ou amigos;

- O toucinho, o parente pobre do presunto, era curado da mesma forma, tinha os seus admiradores, ficava mais saboroso com a passagem dos meses frios e quentes, quando o sol já desmaiava no horizonte, no tempo das sementeiras em Setembro e Outubro;

- A marrã, a carne entremeada da barriga seria grelhada à lareira acompanhada por batatas cozidas, grelos ou couves;

- Com as carnes magras do lombo e de outras partes, as donas de casa faziam os "chichos" que seriam postos em "suça", a marinar temperados com vários condimentos em alguidares ou barrinhões, durante alguns dias na despensa, muito saborosos; com o amor e as liberalidade das mães, alguns seriam grelhados na lareira e comidos com batatas e grelos ou couves, porém a maior parte seriam para fazer as chouriças e os salpicões, os enchidos mais valiosos do fumeiro;

- O fígado e os rins grelhados, eram petiscos que todos apreciavam; outro petisco guloso eram os rojões do redanho (diferentes dos rojões do Minho) fritos na sertã;

- Com a banha do porco fazia-se o "unto",  muito saboroso para barrar as torradas ou para temperar o caldo.

Aproveitando o tempo frio e seco, o contributo e inspiração do ciclo do porco as cozinheiras iriam encher os fumeiros de todos os géneros de enchidos, alguns com carne dele, outros com outras carnes, outros sem qualquer carne: as alheiras, os azedos, os chabilanos, os brancos, os doces e outros, breves dias depois do mata-porco iriam encher o fumeiro com formas e cores variadas, que consolavam a vista e anunciavam prazeres futuros ao paladar.

Infelizmente não há uma história fotográfica desses encontros familiares, nem das grandes fogueiras à lareira ou dos fumeiros que cobriam o espaço acima. As pessoas gostavam de conviver, sem se preocupar em registar os momentos. Também raramente alguém tinha máquina para tal, não fazia parte dessa cultura.

A fotografia que acima de publica,  é de um fumeiro feito pela minha irmã Ana Maria, há alguns anos na cozinha do restaurante dela e do marido em Bragança. Um restaurante distinto e afamado, "Solar Bragançano",  que continua aberto sendo ela a cozinheira. Foi professora de meninos e foi uma grande aluna da nossa mãe, a trabalhar à lareira com panelas de ferro e a fazer boas alheiras chouriços e salpicões. A história continua...


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Nota do editor:

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24018: Os nossos seres, saberes e lazeres (552): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (87): Uma visita a legados presidenciais, a pretexto da exposição Pintasilgo (Mário Beja Santos)

22 comentários:

Valdemar Silva disse...

Que apetitoso texto.
Com cheiro a porco chamuscado e às tripas que tiravam da barriga ainda a fumar.
Só faltou ouvir o porco guinchar antes, durante e no fim da matança.
Em criança de 9 anos, lembro-me de ter ido a uma matança do porco na casa da tia Rosa Verde.
Pelo guinchar de outras paragens, o matador devia estar a chegar.
Eram só mulheres a tratar da matança, apenas dois homens a agarrar e atar o porco em cima do carro das "piscas".
A minha avó era do grupo que tratava da lavagem das tripas, e eu ia com ela à foz do rio junto ao mar lava-las com areia(?) e limões.
Depois era toda a gente a encher chouriços e os rapazes e raparigas desapareciam nas brincadeiras.
Que pena não saber escrever como o Francisco Baptista.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...



Camarada e amigo Valdemar Queiroz, tu escreves bons comentários também saberás escrever bons textos.
Os porcos grunhem , não guincham, confesso que à distância de muitos anos, esse grunhir queixoso me incomoda mais do que no tempo real em que acontecia, talvez porque com mais idade , com outra experiência de vida e mais conhecimentos, me tenha dado que conta que há a inteligência humana dos bípedes como nós e a inteligência anima. Talvez os porcos ao ser puxados com uma corda e ao depararem com tantos homens adivinhassem que era o fim da boa vida e das comezainas. Lembro-me da minha mãe que durante muitos anos matou as galinhas e os perus e com mais idade , deixou de o fazer. Enfim com a idade ficamos mais humanos e passamos a ficar mais próximos e a compreender melhor os animais,
Continuo a gostar da carne de porco, ainda ontem um bom cozido dessa carne.
Abraço e saúde também ,

Francisco Baptista

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, é um texto de valor etnográfico. É bom poder voltar a ler os teus escritos. Este Portugal, da matança do porco, do fumeiro, da salgadeira..., já não existe mais. Há anos que deixámos de matar o porco em Candoz, no Nort... Mas faz parte das minhas memórias de infância, quando eu, menino e moço, ia à aldeia da minha mãe, Nadrupe, a 3 km da vila da Lourinhã, ma Estremadura, para participar na "festa" da matança do porco... Era sempre por esta altura, no inverno. Ao pé do mar, não se fazem presuntos, mas havia também um bom fumeiro, à base de chouriços.
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87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem.

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2019/08/guine-6174-p20082-manuscritos-luis.html

Anónimo disse...

Meus amigos
Em minha casa todos os anos se matava o porco. Era dia de muitas emoções para mim. O frenesim começava de manhã cedo com os preparativos e terminava ao fim da tarde com a chegada do especialista, com o seu facão para aplicar o golpe de misericórdia no sítio certo de forma a evitar o sofrimento do bicho. Este parecia que adivinhava o que vinha aí já que desde muito cedo mantinha um comportamento anormal. O caminho do calvário (corredor da morte) da pocilga até à rudimentar mesa onde era atado, esperneava, grunhia e gritava (parecia a convenção da IL). Era uma cena macabra. Ainda o bicho ofegava e já era chamuscado com tochas de palha a arder.
Depois era o lavar das tripas, fazer os enchidos e proceder à salga...

Mas o que mais me impressionava era a matança da galinha, com a minha mãe cortando a cabeço à pobre ave (que esperneava sem cabeça) que durante meses era tratava com zelo e carinho.

Mas verdadeiramente arrepiante era a matança do coelho com as pancadas dadas no cachaço do fofinho animal. Fugia daquela cena arrepiante, razão pela qual nunca comi coelho na minha vida.
Felizmente hoje a matança é … mais fofinha!!!???

Anónimo disse...

O anónimo do texto anterior é:
Joaquim Costa

Antº Rosinha disse...

Os Durienses e os Transmontanos emigrados, no Brasil e Angola, onde havia muitos portugueses, invadiram a maioria de restaurantes, pensões à antiga (sopa e dois pratos), casas de petiscos grandes e pequenas, em cidades de há 50 anos como Luanda e São Paulo.

Gastronomia à portuguesa, era com gente daquela região que mais se impunha.

Embora em São Paulo muito italianizada com pizarias e por churrascarias à gaucha, se averiguássemos quem estava por traz, com frequência estava por traz um transmontano e podia haver alguma concessão e permitiam alguns minhotos.

Até em variedades de cogumelos selvagens em Angola, (pouco consumidos) era gente de Trás-os-Montes (e Alto Douro) os mais especializados.

Em peixe, apenas o bacalhau, evidentemente.

Com excepções, mas era, hoje não será tanto, as gentes daquela região que se impunham em Luanda e São Paulo, cheias de portugueses, no campo da restauração.

Mas como havia ali tanto transmontano!

Sem lhe contar o dinheiro, mas a alguns "sobrava bastante".

Cumprimentos

Cesar Dias disse...

Pois, a matança do porco era sempre no tempo frio, como não havia arcas frigorificas, a conservação da carne era nas salgadeiras.Era realmente um ritual onde reuniam os amigos e familiares.

Valdemar Silva disse...

Francisco Baptista
Com certeza, o porco grunhe na sua habitual "conversação", e também oinca-oinca.
Mas altera o seu grunhir quando grita 'socorro quem me acode' desatando aos guinchos.
Eu gosto muito de carne de porco, quem não gosta.
Depois da matança, e durante o Inverno e Primavera, todos os dias era sopa do cozido ao almoço e ao jantar. Água, batatas e couve não faltavam para se lhe juntar toucinho e chouriço. O chouriço de cebola era o mais usual, coitado.
Depois chegavam as sardinhas ao quarteirão e em Setembro a fruta das tardes.
Quem me dera ter nove anos e poder andar descalço.... se me apetecesse.

Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha;
Os ternos pombos arrulham;
Geme a rola inocentinha.

Muge a vaca; berra o touro;
Grasna a rã; ruge o leão;
O gato mia; uiva o lobo,
Também uiva e ladra o cão.

Relincha o nobre cavalo;
Os elefantes dão urros;
A tímida ovelha bala;
Zurrar é próprio dos burros.

Regouga a sagaz raposa
(Bichinho muito matreiro);
Nos ramos cantam as aves;
Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar;
Fazem às vezes gorjeios,
Às vezes põem-se a chilrar.

O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas,
Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita;
Zune o mosquito enfadonho;
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.

Chia a lebre; grasna o pato;
Ouvem-se os porcos grunhir;
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.

Bramam os tigres, as onças;
Pia, pia o pintainho;
Cucurica e canta o galo;
Late e gane o cachorrinho.

A vitelinha dá berros;
O cordeirinho, balidos;
O macaquinho dá guinchos;
A criancinha, vagidos.

A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais.
Nos versos lidos acima,
Se encontram, em pobre rima,
As vozes dos principais.

(Poema de Pedro Diniz (1839-1896), recolhido por Antero de Quental, no Tesouro Poético de Infância)

Valdemar Queiroz

José Botelho Colaço disse...

Que me perdõe o nosso amigo F. Baptista mas nesta situaçao de aflção o porco não grunhe guincha, tal como o ser humano em aflição grita e não fala. Abraço.

José Botelho Colaço disse...

E para completar o meu comentário o porco nem a boca podia abrir para sair um som mais natural com a sua vóz pois era utilizada uma corda com várias laçadas que lhe impedia esse movimento e não se poder defender, porque uma dentada do porco naquela aflição seria terrível. Colaço.

Alberto Branquinho disse...


Ó Francisco!

Gostei muito do teu texto. Fez voltar infância.
Na minha santa terrinha, que não é muito longe da tua (o Douro separa-nos), aos pulmões não chamam "boches", mas "bofes" e ao teu "piche" chama-se "alpechim" (origem árabe, vê tu, em terra de judeus...).
E com o auxílio de "fachas" de palha a arder não tiravam as unhas ao bicho para dar à garotada? Que as coloca no nariz e berrava: - Cheira a "carrapé"!
E não faziam cruzes no sangue com palhinhas para "coalhar" mais depressa?
O "unto", homem, o "unto"! É capaz de ser por causa disso que o pessoal não tem colesterol... Ou tem?
A matança, pois! Há uns poucos anos assisti a uma (clandestina), mas a pressa de matar (?!) era tanta, com medo de aparecer a fiscalização...

Abraço
Alberto Branquinho

Anónimo disse...



Muito ob5rigado a todos os camaradas, pois todos acrescentam algo de importante a minha história eou corrigem erros meus. O Luís Graça conhece bem estas tradições de norte a sul , já as retratou , já as estudou, a sua palavra é um de um Professor que gosto de escutar. O Joaquim Costa tem experiencias semelhantes às minhas , um pouco diferentes sendo do Minho , região com muita história, que 3ele interpreta bem. O António Rosinha é um sábio antigo, já correu mundo e tem sempre histórias a propósito de tudo, ele sabe bem que os transmontanos, grandes andarilhos para onde vão levam sempre o presunto e o garrafão. O César Dias, sempre simpático, dá uma boa achega. Mea culpa ao Valdemar Queiroz que tem razão bem como o José Botelho Colaço quando afirmam que nas horas de aflicão os porcos guincham, na verdade eles grunhiam (sem gritar) quando lhes levava a vianda.
Ao meu vizinho Alberto Branquinho direi que me lembro de boches e de bofes e agora fiquei confuso, tens razão era alpechim, sempre te considerei um mestre em línguas, quando falas ou quando escreves. As cruzes , lembrei-me delas, também nos alguidares, antes de se começar a encher os chouriços. Muita saúde e um abraço. a todos.

Francisco Baptista

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, faz-nos saudades a tua descrição da matança do porco e da grande gastronomia (nomeadamente transmontana, minhota e duriense) associada ao porco... E não só: no fim eu estava quase a salivar com a evocação das iguarias que vocês faziam em Brunhoso, com as carnes deste bichano (que, de certo modo, fazia parte da família tal como o "tourinho" em Candoz, que era o "mealheiro" dos lavradores, muitos deles rendeiros; ainda sou do tempo da parceria pecuária: o meu sogro comprava um touro para engorda, que era "pensado" por um dos caseiros, e o no fim o "lucro" era dividido a meias: metade para o "patrão" ou "fidalgi9", outra metade para o "rendeiro"). Nunca assisti à matança de novilhos, mas ainda apanhei, desde que passei a ir a Candoz, em 1976, a matança do porco, do "anho", e das aves de capoeira...

Mas diz-me uma coisa: falas em "grande arca frigorífica" onde se guardavam as carnes de porco... Mas isso só depois da eletricidade ter chegado a Brunhoso... Em Candoz só chegou depois do 25 de Abril, mesmo com as barragens do Douro ali perto... O queos meus sogros tinham era uma enorme arca de madeira, a "salgadeira": depois do primeiro AVC desmanchámo-lo... Foi também uma grande "assassina" das gentes do Norte...

Tabanca Grande Luís Graça disse...


https://www.publico.pt/2020/02/14/fugas/critica/valente-orgulhoso-bragancao-preciso-reverenciar-solar-bragancano-1903918

Público > Fugas >
CRÍTICA
Valente e orgulhoso Braganção: é preciso reverenciar o Solar Bragançano
Restaurante de António e Ana Desidério tem uma cozinha única que nos conforta até à emoção.

José Augusto Moreira(Texto) e Tiago Bernardo Lopes(Fotos)
14 de Fevereiro de 2020, 21:30

(...) Com uma cozinha e envolvência únicas, o Solar Bragançano deve ser olhado como mais do que um restaurante. Uma espécie de casa comum da memória gastronómica e da fidalguia transmontana, que deveremos até reverenciar. Não é exagero. É apreço e gratidão pela forma como ali são recebidos todos os clientes, pela preservação da mais pura e rica cozinha tradicional e de uma casa que mantém essa espécie de museu vivo que nos conforta até à emoção. Também na oferta, com uma carta que, a par dos pratos e produtos mais emblemáticos da gastronomia transmontana, propõe sempre peixes frescos e uma meia dúzia de pratos especiais de caça. (...)

Anónimo disse...


Luís peço-te desculpa e a todos os que leram o texto pois entre outros cometi um erro quando falei em " grande arca frigorifica ". sem explicar o que seria. A electricidade só foi para Brunhoso no ano de 1964, até lá as iguarias que o porco daca quando se desmembrava e outros bens alimentares eram conservados na despensa térrea , um degrau ou dois abaixo do rés-do-chão, que tinha uma temperatura constante no inverno e no verão.Com algum tratamento inicial como sal, cinza e outras especiarias e condimentos, praticamente todos , outros sem qualquer tratamento. Terei que pedir ao Carlos para me emendar neste caso e noutros.
Muito obrigado pelo grande elogio que dás ao "Solar Bragançano" do meu cunhado e da minha irmã, uma senhora delicada de quem gosto muito e admiro, pela sua bondade, pela qualidade dos manjares que serve à décadas e pela elegância e requinte do restaurante

Francisco

Anónimo disse...



Qualquer escrevinhador como eu tinha que ficar contente com um elogio de um plumitivo (veio-me este palavrão à ideia para separar as águas entre nós). Por causa de um emaranhado de sentimentos e descrições Confesso que demorei anos a pensar em escrever este texto e somente agora consegui fazer esta pintura incompleta e desbotada pela memória.
Muito obrigado meu amigo

Um grande abraço.

Francisco Baptista

Anónimo disse...



O comentário anterior é dirigido a ti meu grande amigo José Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, a nossa língua é traiçoeira,e ainda mais quando vai buscar ao francês palavrões como "plumitivo"... Um abraço, e continua a escrever que só te faz bem, a ti e a nós... LG
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plumitivo | n. m. | adj.

plu·mi·ti·vo
(francês plumitif)
nome masculino

1. [Depreciativo] Jornalista ou escritor, geralmente de má qualidade.

adjectivo
2. Relativo à pluma, à escrita (ex.: estreou-se nas lides plumitivas ainda jovem).


"plumitivo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/plumitivo [consultado em 02-02-2023].

Anónimo disse...


Plumitivo, sendo uma palavra que conhecia mal, talvez nunca a tenha escrito, tive o cuidado de ir ao google a procurar sinónimos, e os que encontrei foram os seguintes: escritor, jornalista, repórter. Confesso que não consultei o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Peço desculpa ao José Belo se por imprevidência ou ignorância, o desconsiderei. Ele para mim quer tenha livros escritos ou não é dos melhores escritores vivos que conheço. Desconfio que ele, tal como Fernando Pessoa, deve ter uma grande arca de folhas escritas para alguém editar.
Obrigado Luís pela divulgação que fizeste do restaurante da minha irmã. Um dia que estejas de melhor saúde, que seja para breve, vai lá , sei que gostarias de a conhecer, é muito simpática e a comida é muito boa.
Abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Já terei chamado demasiados nomes,nem sempre valorativos,ao nosso Zé Belo.
Agora,quando se tornou inesperado filósofo existensial, enquanto observa as renas ao luar ou os vizinhos de Key West sentados no seu bar favorito,plumitivo?
De revolucionario contando G-3 em Beirolas a capitalista contando dólares na América vai todo um mundo filosófico.
Mas plumitivo?

Manuel Teixeira.

Fernando Ribeiro disse...

Eu quero agradecer ao Francisco Baptista a extraordinária descrição que faz, tão vívida, da matança do porco e do aproveitamento que se faz das suas carnes e das suas entranhas, para a produção das mais deliciosas iguarias. Que grande lição que o Francisco Baptista nos dá!

Eu passei a minha infância num subúrbio industrial do Porto chamado Areosa, rodeado de operários e de ciganos (havia um acampamento de ciganos, arrepiantemente miseráveis, a cem metros da casa dos meus pais), o qual confinava com freguesias que ainda eram muito rurais, mas que agora são meros dormitórios da grande cidade, que eram Rio Tinto (Gondomar) e Águas Santas (Maia). Sendo oriundo de uma família burguesa do Porto, predominantemente ligada à indústria, eu pouco ligava ao mundo rural que estava ali mesmo ao lado. Mesmo ao lado! Este mundo rural era completamente estranho ao meu próprio mundo, apesar da vizinhança. Eu via, por exemplo, a minha mãe preparar a "lavagem" com os restos das nossas refeições, que mais tarde iria ser entregue a lavradores que passavam lá por casa, assim como por outras casas da zona, com os seus carros de bois, para recolhê-la e alimentar os seus porcos (que lindas eram as cangas dos bois, preciosas obras de arte popular!), e pouco mais. Eu não fazia a mais pequena ideia da importância do porco na vida social e familiar das nossas gentes do campo. Com vergonha o digo. Agradeço ao Francisco Baptista a descrição que faz. Muitíssimo obrigado.

Anónimo disse...


Fernando Ribeiro, meu camarada, senti-me vaidoso pelo grande elogio, que fizeste ao meu texto, conhecendo-te pela propriedade e rigor, de engenheiro, com que usas as palavras , como sabes ou sabias usar as medidas e os volumes em qualquer construção.
Eu não sou engenheiro, não sou nada, nasci da terra e a terra hei-de voltar, da terra onde nasci falo e escrevo, com ela me confundo, a minha alma faz parte da Terra inteira, tal como a tua, tal como a de todos nós. Há alguns anos uma amiga do Porto disse-me que gostaria de ter uma aldeia como eu . Eu compreendi-a bem. Os velhos lavradores tinham raízes fundas e fortes nessa terra mais fértil e árida, e respeitando os animais da casa , as vacas, os burros, os porcos, as galinhas e outros, entendiam-se com eles sobre as necessidades, a utilidade e o fim de uns e outros, sulcavam a terra com arados ou charruas puxados por vacas, sabiam quando ela estava árida e seca ou quando tinha "sessão" (cor escura e humida) como as fêmeas quando querem ser cobertas pelo sémen do machos.
Muitíssimo obrigado, digo eu, Fernando ribeiro

Francisco Baptista