terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5749: Álbum fotográfico de Júlio Marques Tavares, sold cond auto, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) (Parte I) (Marisa Tavares)









Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > O Sold Cond Auto Júlio Marques Tavares, que morreu no Canadá,  de doença, há cerca de 25 anos ... As fotos, disponibilizadas pela filha Marisa (n. 1978), enfermeira especializada na recolha de órgãos e tecidos humanos (Toronto, Ontário, Canadá), não trazem legendas. Cotejando estas fotos com as do Victor Condeço,  camarada do Júlio, não tenho dúvidas em concluir que são de Catió, do tempo da CCS/BART 1913 (1967/69)... Aguardo, no entanto, o parecer especializado do Victor, que vive no Entroncamento.

1. Mensagem, em inglês,  de Marisa Tavares, a luso-canadiana filha do Júlio Marques Tavares, da CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69),

Hello,

Thank you so much for publishing my father's info and picture on your blog (*).

I can understand Portuguese to a certain extend. My primary language is English.

You mentioned Victor Condeço as someone who served along side my father in Guinea. I'm not sure if he wrote something but I can not find it.

I have been scanning some of my father's pictures that I have found from my father's time in Guinea. Here are the photo's I've been able to put up tonight:

If I understood correctly someone commented about my father asking when or how he passed away.

After my father's time in the military,  my father married my mother and had a son. My father came to Canada to try and find a better life for his family. Six months later my mother and brother made their way into Canada to be with my father.

My father worked in construction here in Canada. In 1978 I was born and a when i was about 6 years old my father was diagnosed with end stage cancer. He underwent surgeries, treatment and spent many months in the hospital but after an 8 month battle with cancer my father passed away.

He is survived by his wife (my mother) Celinia Ramos Godinho Tavares (originally from Pardilho, Portugal).

His son, Pedro Miguel Godinho Tavares who is now in his late 30s, married and has his own business which is on the legal (issuing licenses, making sure all laws are being followed on sites etc.) side of construction.

And his daughter (me) Marisa De Fatima Godinho Tavares, I was very young when my father died. I went to school to be a nurse, never married, and currently am working with the provincial organ and tissue donation program here in the province of Ontario. I specialize in corneal transplants and am also an enucleator (a medical professional which recovers eyes after death for transplant purposes) for the province.

His mother died shortly after her son died. She was a widow and with her my family name ended. My father didn't have any brother's or sisters, my brother and I don't have any kids.

I'm grateful to have found your site. Feel free to pass along the pictures and or story of my father's life post war.

Thanks in advance,

Marisa
Toronto, Canada




Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Quartel >


"Foto nº 4 - Foto tirada de cima do depósito da água do quartel [JUL 1967]. Vista parcial da parte nova do quartel. A parada com o cepo (raiz) do Poilão, à esquerda as casernas nº 1 e nº 2, ao centro o edifício do comando, por detrás deste as camaratas de sargentos e depois destas as novas messes ainda em construção, tal como a camarata de oficiais à direita. O telhado vermelho era a messe e bar de sargentos".  Foto e legenda: © Victor Condeço (2007). Direitos reservados.

[ Foto à esquerda: O Vitor Condeço, Fur Mil Mec Arm, CCS/BART 1913, Catió, 1968]



2. Tradução da mensagem da Marisa:


Muito obrigada por publicar, no seu blogue, uma foto com o meu pai bem como informações sobre ele.

A minha primeira língua é o Inglês, mas sou capaz de entender sofrivelmente o Português.

Você  menciona o Victor Condeço como alguém que fez a tropa com o  meu pai na Guiné. Não tenho certeza se ele escreveu alguma coisa, mas não consigo encontrá-la.

Estive a digitalizar algumas fotos,  que encontrei , do meu pai, do seu tempo de  Guiné.  Aqui estão as fotos que consegui pôr 'on line' noite:

http://www.flickr.com/photos/47130308@N03/sets/72157623206286189/show/

Se bem entendi,  alguém fez um comentário sobre o meu pai,  perguntando quando ou como é que ele faleceu.

Depois de tropa, o meu pai casou-se com a minha mãe. Tiveram um filho. O meu pai veio depois para o Canadá para tentar encontrar uma vida melhor para a sua família. Seis meses depois, a minha mãe e o meu juntaram-se ao meu pai no Canadá.

O meu pai trabalhou na construção civil, aqui no Canadá. Em 1978 nasci eu e,  quando eu tinha uns 6 anos, ao meu pai foi diagnosticado um cancro  em fase terminal. Foi submetido a tratamento médico-cirúrgico, e passou vários meses no hospital. Depois de uma batalha,  de 8 meses, com o cancro, o  meu pai faleceu.

A ele sobreviveu a sua esposa (minha mãe),  Celinia Ramos Godinho Tavares (originária de Pardilhó, Portugal).

O seu filho, Pedro Miguel Godinho Tavares, que está agora com quase 40 anos, é casado,  e tem seu próprio negócio,  ligado às questões legais da construção (emissão de licenças, certificando  de todas as leis estão sendo cumpridas nos locais, etc.).

Quanto à sua filha (eu, Marisa De Fatima Godinho Tavares), era muito jovem quando o pai morreu. Fui  fazer o curso de enfermeira, nunca me casei, e actualmente estou  a trabalhar no programa de doação de órgãos e tecidos humanos,  aqui no Estado de Ontário. Especializei-me  em transplantes de córnea e também sou uma enucleator (uma técnica de saúde que recupera olhos post-mortem para efeitos de transplante).

A mãe do meu pai (minha avó) morreu logo depois dele. Ela já era viúva e,  com a sua morte, acaba também o nome da minha família. O meu pai não tinha nenhum irmão ou irmã. O  meu irmão e eu não temos filhos.

Estou grata por ter encontrado o seu site. Esteja à vontade para publicar as imagens e/ou ou a história de vida do  meu pai a seguir à guerra.

Antecipadamente obrigada, 

3. Comentário de L.G.:

De uma primeira análise das fotografias, conclui-se que o Júlio Tavares era soldado condutor auto. Vemo-lo, por várias ocasiões,  ao voltante de um GMC, de um Unimog 404 e até de um Matador... A namorada e futura mulher, mãe de Marisa, era de Pardilhó (concelho de Estarreja, distrito de Aveiro). Presumo que também ele fosse de Pardilhó ou de lá perto. (É uma delícia, a foto com ele sentada sua secretária improvisada, ao ar livre, onde ele escrevia as cartas ou aerogramas para a sua namorada, vísível na foto emoldirada)...

Vê-se, por outras  fotos, que o Júlio era um homem familiarizado com a água (ria de Aveiro)... Será no rio Ganjola ? ... Estava como peixe dentro de água. E tinha jeito para a pesca. Vêmo-lo igualmente num conhecido bar de Catió, frequentado também pelo Victor. Há ainda fotos de operações, de aeronaves da FAP e de prisioneiros do PAIGC... Ficarão para um próximo poste.

Entretanto, aguardo a resposta do Victor à seguinte mensagem:

Victor: Lembras-te deste camarada, o Tavares ? Ele rmorreu, de cancro, no Canadá, seis ou sete anos depois da filha ter nascido (em 1978).. A filha Marisa lê (mal) o português... Vamos ajudá ?


Reconheces os lugares ? Isto é Catió e arredores...As fotos não têm legenda... Gostava de fazer uma selecção e publicá-las... Mas preciso das tuas preciosas observações, legendas, notas... Quando puderes, vê o "slide show"... Um abração. Luís

A Marisa tinha enviado, esta mamhã,  a seguinte mensagem, em português:

Uma correcao. O meu pai nao faleceu em 1978. Eu nasci em 1978... Ele faleceu 6 anos depois.
Hontem (yesterday) eu encontrei os papeis do militario do meu pai. Tambem vou scan logo...  Thank you,  Marisa

Na minha resposta, aproveitei para a convidar a integrar a nossa Tabanca Grande:

OK, it was a mistake of mine! I write in a hurry. Send me more details concerning the military story of your father and our camrade Tavares, who has been acting as a driver soldier at Catio headquarters of the 1913th  Artillery Battalion... He was also born in Pardilhó, Estarreja, Aveiro, like as your mother ?... I' m waiting for some news from Victor Condeço (He is living at Entroncamento city).



I invite you to join us at our 400-member blog community. We have also, with us,  sons, wifes, brothers and other relatives of our camrades, dead, victims of  Guinea-Bissau colonial war or passed away after the war, due to disease, injury, accident or violence...  Best wishes / Saudações

Luis (I am assistant professor in social siences at National School of Public Health, New University of Lisbon, Lisbon > + 351 21 751 21 93 (room) / + 351 21 471 0736 (home) / + 351 931 415 277 (mobile)

4. O Victor Condeço [, foto à esquerda,] acaba de me mandar, ao fim da tarde, a seguinte mensagem, que eu começo por agradecer, com conhecimento à Marisa (que está a recorrer a um tradutor automático, quando tem dificuldades de leitura das nossas mensagens):


Olá, Luís: Tenho uma muito vaga ideia do Júlio Tavares, ontem mesmo pedi a um camarada que também foi condutor da CCS do BART 1913, para me ajudar a recordar algumas coisas a respeito do pai da Marisa.

Ainda não tive resposta, mas hoje vi e revi a fotos que a Marisa ontem colocou na Net, relembrei algumas das caras que ali aparecem entre elas a do Júlio, embora não recorde os nomes da maioria das pessoas.

As fotografias, só duas ou três não são tiradas em Catió. Contudo vai ser difícil e moroso fazer a sua legendagem, pela quantidade e porque não estão numeradas.

Vou procurar fazer uma selecção e fazer o melhor que me seja possível, mas tens de me dar algum tempo.

Um abraço

Victor Condeço
______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5742: Em busca de ... (115): Camaradas de meu pai, Júlio Marques Tavares, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) (Marisa Tavares)

Guiné 63/74 - P5748: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (23): Colonialismo... jamais... jamais...

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 24 de Janeiro de 2010:

Caros Editores:

Será sina vossa aturarem-me a esta hora ou mais tarde? É, salvo erro, o terceiro dia ou noite seguido(a).

Aí vem ele... quem???... o chato do.... e desta, o que é?... jamais??... e procura o Luís Graça no crioulo e o Vinhal coça a cabeça e pensa... pifou... jamais?'... o MR diz: - O gajo andou por Lamego mas não é RANGER... iá...

Aí vai um escrito género açorda depois de noitada de borga... coisas do Alentejo... donde parti e olhei para trás chorando/alentejo da minha alma/tão longe me estás ficando...

Agora vou a Mansambo... passa-se algo.

Abraços para vocês do,
Torcato


JOANITO: Colonialismo, jamais… jamais…
por Torcato Mendonça

O Joanito e o Ohtu encontraram-se já em fim de tarde, tarde de domingo.

Espera. Pára, caramba... Quem era o Joanito e o que é isso de Ohtu?

É do PDI. Cuidado com hipotéticas confusões de iniciais: PDI!

Joanito era rapaz de olho vivo, estudo de primária mal alinhado, emprego de ocasião. Melhor, preferência pelo biscate leve e rentável. Ia assim crescendo enquanto a penugem já quase lhe desaparecia da cara.

A mãe estava a ficar farta daquele filho, daquela ovelha tresmalhada de seus filhos. Pensou, pensou e resolveu despachá-lo para África.

Lá vai Joanito ao encontro de um Tio, comerciante e senhor de outros interesses numa parcela do Império. Homem de poucas falas e mais de actos e factos.

Joanito chega e o Tio recebe-o com friamente. Põe logo o rapaz a trabalhar. Mas o rapaz não gostava de trabalho e logo começou a magicar na sua vida, a dar voltas, a tentar esquemas. Só que ali era diferente e o Tio, olhar frio, homem de actos e factos, trabalho duro e de pouca conversa, de pronto viu o conteúdo da encomenda enviada e passou à acção. Rapidamente falou com Capatazes de uma Companhia do norte e para lá enviou Joanito.

Aí estava agora Joanito a trabalhar numa espécie de escritório, ouvindo ordens aos berros, gritos e lamentos, falando com homens de chibata à cinta e, se necessário, tratado com dureza. Pensava, pensava e não sabia que fazer. Fugir nem pensar, teria logo cães e pisteiros à perna... E fugir para onde ?

O tempo passou. Esperto como era, foi entrando no jogo, na adulação, na mesma forma de vida e acabou recompensado. Foi tomar conta de uma cantina. De tudo se vendia, em tudo desviava uma parte para os patrões e uma pequenina, muito pequenina, para ele.

Joanito quase se sentia gente. Era branco, caramba. Comprou uma bicicleta, pasteleira velha meio enferrujada e ruidosa no rolar. Não se importava e, nos poucos momentos de descanso, lá se distraía, dando voltas ao redor da pequena aldeola. Só que pedalava, pedalava e isso cansava-o. Aborrecido.

Um dia pedalava Joanito e viu um dos mainates da cantina. Rapaz alto e forte, curioso, sempre atento e, sem nas vistas dar, a aprender e a apreender tudo. Joanito parou e berrou:
- Ohtu, Ohtu, anda cá.

O negro veio com o seu sorriso.
- Ohtu, tenho um trabalho para ti. Para já a partir de hoje começas a chamar-te Ohtu, depois começas a empurrar a bicicleta.

Assim foi. Joanito passou a andar mais de biccleta, sentava-se e o Ohtu empurrava, escorrendo suor e praguejando entre dentes.

Joanito berrava:
- Com mais força… mais força… e um dia ainda vamos à cidade ver o Índico. Força, meu sacana de merda, nem para trabalhar prestas.

Othu nada dizia. Empurrava, suava e em cada dia que passava, mais aprendia e apreendia. Aos poucos, sem dar nas vistas, ia lendo e escrevia tudo em pequenos papéis.

Um dia Joanito gritou:
- Ohtu, Ohtu - e nada. O negro desaparecera e levara uma parte, uma ínfima parte, do que Joanito desviara.

Joanito queixou-se dizendo que o negro desaparecera e nada mais. Em vão o procuraram. Anos depois diziam ter ido juntar-se à guerrilha.

Indiferente para Joanito mas, esperto como era, sentia os ventos da mudança e começou discretamente a preparar, ele também, a sua fuga.

Mal os sons de independência cruzaram os ares e já Joanito estava noutro país e, tempos depois, no seu.

Dizem que Ohtu voltou à já abandonada Companhia e procurou Joanito. Dele nem rasto. Só ficou um carro meio rebentado e poucos pertences na casa abandonada.

Joanito, tantos anos depois, ainda vive. Está num Lar como peça descartável, sentado num cadeirão com almofadas aos lados a ampará-lo.

Baba-se, diz palavras sem nexo. De quando em vez aparece um enfermeiro ou auxiliar. Joanito babando-se tenta gritar:
- Ohtu, Ohtu, preto de merda, empurra… empurra… - E cala-se cansado.

Ali fica, babete sujo e pijama mijado… pret… d…

Colonialismo, jamais… jamais…
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5740: Blogoterapia (141): Pensar em voz alta: Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)

Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal


"Era conhecida a separação entre fulas e mandingas. Estes pouco simpatizavam com as nossas tropas, eu tive essa ideia, os fulas, na generalidade, estavam do nosso lado. Esta rivalidade, e o não querer estar com os fulas, têm razões históricas: os mandingas tiveram um grande império no sudeste africano e foram senhores do reino do Gabú. Mas dum e doutro foram usupados pelos fulas...


"Nesta brochura, editada pela Editorial Cosmos (sem data) na sua colecção "Cadernos Coloniais" (é o N.º 13), António Carreira faz uma resenha histórica da islamização daquela zona de África e da lutas entre fulas e mandingas pelo seu domínio. São dados importantes para a história dos povos da Guiné e para a nossa commpreensão deles". [António Barbosa Carreira nasceu em 1904, em São Filipe, Ilha do Figo, Cabo Verde. Morreu em 1988, em Lisboa].

Imagem e legenda: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados



1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da segunda parte do  Capº III (*):


Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos

[III.2] Décimo primeiro solilóquio


Durante o almoço falámos largamente sobre “O Rosário”, o romance de Florence Barclay que tanto impressionara a Benedita quando o pai estava a cegar de 1940 para 1941. Fiz uma consulta ao Google, vejo que o livro foi o mais vendido nos Estados Unidos em 1910. Não é difícil perceber porquê, trata-se de um melodrama bastante convincente, para os cânones da época. Jane Champion, a sobrinha da Duquesa de Meldrum, é uma trintona pouco bonita, muito sociável e com alma sensível. Tem pouco amigos seguros, um deles é Derick Brand, um médico filho do reitor da paróquia onde ela cresceu. Jane vai visitar a tia, aí conhece Garth Dalmain, um artista mais novo do que ela, brincalhão, cosmopolita, superficial. Encontram-se numa tertúlia cultural, onde Garth, ao piano, acompanha Jane que canta O Rosário. Inicia-se um idílio que culmina com a recusa de Jane em aprofundar a relação afectiva, lembrando a Garth a diferença de idades. Jane parte para o Egipto onde virá a saber que Garth perdeu a vista num acidente de caça. Graças a Derick Brand, disfarça-se de enfermeira e começa uma relação sublime em que Garth, após o sofrimento pela perda da visão retoma o gosto pela vida, aprendendo estratégias de autonomia, até se chegar à revelação da paixão mútua.

Vou explicando à Benedita (**) como tudo se tornou simples na compreensão desta narrativa que tanto a ajudou a apoiar o Estevinha, diminuído pela cegueira e pelo tumor no cérebro.

Conversámos igualmente sobre dois grandes ausentes nos nossos encontros: a Estrelinha e o Toninho. A Benedita confessou ser pouco expansiva: não era dada à escrita, telefone era impensável, as férias eram de 3 ou de 4 em 4 anos, havia que juntar dinheiro, era o preço de ser a mulher de um administrador sério, que não entrava em negociatas com ninguém, nada de expedientes ou subornos. Limitava-se a acumular saudades, mas estava bem informada do que se passava.

A Estrelinha continuava na Avenida da República, repartia a casa com o Toninho e com a Maria Inocência. Percebendo a minha surpresa, a Benedita esclareceu que o Toninho, já com duas especialidades, mas continuando a preferir a ortopedia, casara com a Maria Inocência, professora de Românicas, tinham já dois filhos, um rapaz e uma rapariga, conhecera a nova família nestas férias.

Voltei a insistir quanto à curiosidade pelas culturas guineenses. Continuava a não partilhar o gosto do Albano pelas culturas dos Felupes e Banhuns, mas a passagem pelo Gabu despertara-lhe o interesse pelos Fulas e Mandingas, as duas principais etnias da região. Perguntou-me se eu conhecia as castas entre os Mandingas, aproveitei a deixa para falarmos da nobreza Mandinga, os ferreiros e os sapateiros, os Sani e os Mané, os mais nobres (os Nhantchó), os ferreiros, onde se incluíam os Soncó, os Cassamá e os Biai, e os sapateiros com as famílias Fati, os Turé, os Dahaba, os Danfá.

E, de repente, falámos em Tubabo Tiló, uma expressão paradoxal, pois refere simultaneamente a nostalgia pela partida do branco mas também o desejo de o ver partir, para ser livre do tutor. Expliquei à Benedita que só depois da independência da Guiné é que a expressão me despertou curiosidade, vi muita gente saudosa, mas vi também muita gente a viver miseravelmente dizendo-me que tinha sido bom ver os brancos partir e tomar o destino com as suas próprias mãos. É admirável como aquela guerra não produziu qualquer hostilidade entre o guineense e o português.

Não escondo à Benedita que estou ansioso por ouvir as suas histórias de Bambadinca. Ela dá uma gargalhada: “Eu também estava à espera deste momento. Andámos desencontrados, mas passámos os dois por ali! Francamente, quando comecei a ler o seu livro e descobri que você se enamorara por Bambadinca, achei que estava a delirar”.


[III. 3] Mais recordações da Benedita (décimo primeiro trabalho de casa)


O que eu disse sobre o Gabu é completa verdade, nunca me afeiçoei ao lugar. Gostei de algumas experiências, é certo, pela primeira vez convivia com muçulmanos naquele território inóspito.

Quando, mais tarde, estávamos nós já a viver no Porto, soubemos que a luta armada pendia para o PAIGC naquela região, não me surpreendi. Tudo aquilo era pobre e mal povoado. A presença do branco praticamente inexistente. Já no meu tempo a fronteira com a Guiné pouco representava, não estava praticamente definida qualquer autoridade do lado português. Quando fui com o Albano assistir ao referendo na Guiné-Conacri apercebi-me que os portugueses não eram apreciados e que aquela independência iria ter consequências, como teve, foi nesta Guiné que o Amílcar Cabral encontrou mais apoios, toda a vegetação, sobretudo no Sul, favorecia a guerrilha.

Pela primeira vez, comecei a ler obras sobre os povos com quem convivia. O António Carreira ofereceu-me uns livrinhos sobre costumes, vida e religião dos Mandingas, que muito apreciei. Os Mandingas praticamente não fazem mutilações, em épocas recuadas faziam cortes nas extremidades dos incisivos superiores, era um sinal de luxo. Não percebo a importância que o Mário atribui à expressão Tubabo Tiló, a expressão é bonita, mas o significado até pode ser triste.

Ao almoço falámos nos cemitérios Mandingas, lembro-me agora que me surpreendeu a primeira vez que os visitei, tal a sua simplicidade e que me tocou muito. Enquanto eu lia estas obras, o Albano chamou-me a atenção para o momento, em que no século XIX, os Fulas esmagaram os Mandingas. O António Carreira descreve muito bem esse episódio.

Tudo se passou a 19 de Maio de 1864, os Fulas do Futa, ao som de um grande tambor de guerra, avançaram para Cam-Salá, a infantaria acometeu a paliçada da povoação dos Mandingas Soninqués, com tiros de espingarda e azagaias, os Mandingas resistiram com bravura. Quando se viram perdidos, decidiram-se pelo suicídio em massa.

A batalha ficou conhecida por Guerra do Turu-Ban, expressão que significa “a sementeira acabou”. Foram exterminados muitos Mandingas. Iniciou-se nesse dia a dominação dos Mandingas pelos Fulas. Foi nessa altura que percebi o significado da presença de Mandingas na região de Farim, foi gente que nessa altura fugiu, não aceitou ficar no jugo dos Fulas.

Dou comigo a pensar se o Albano não estava a ser menosprezado por Bissau, por terem havido todos aqueles ataques do aldrabão que ele susteve e denunciou em Teixeira Pinto. Interrogo-me porque é que nos lançaram no Leste, ainda passámos por Bambadinca e Pirada e depois é que fomos para S. Domingos.

A experiência em Bambadinca não foi desagradável. Percorri com Albano a região, cheguei ao Xitole, via pela primeira e última vez os rápidos de Cusselinta, que grande beleza!

O que mais me impressionou foi de a partir do Xime ter subido o Corubal, que tem uma vegetação diferente do Mansoa e do Cacheu. Visitámos várias pontas. Lembro-me de um dia, já perto dos anos 70, o Albano me ter dito no Porto: “Não pode imaginar, Benedita, que os sítios por onde andou no Corubal estão agora todos em guerra. Num comunicado que vem neste jornal fala em Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Mina e Galo Corubal, fomos lá várias vezes, hoje estão a ferro e fogo”.

Vou pedir ao Mário para acabarmos este purgatório das localidades que mal recordo. Se alguma vez vivi a história em directo, uma história que estranhamente não vejo referida em nenhum livro, foi em S. Domingos.


(Continua)

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

(**) Excertos do Cap I: (...) Vim ao mundo ao nascer do dia 24 de Novembro de 1920, em Lisboa. Nasci na Avenida da República, 70, no rés-do-chão de uma moradia que também tinha 1º andar e mansarda. (...)

(...) A casa fora alugada pela minha avó brasileira, a vovó Januária ou vovó Xanoca. No dia em que vim ao mundo, bateu à porta da nossa casa o capitão Edmundo Barreto, um dos fiéis de Sidónio Pais, e que era muito amigo do meu pai, vinha almoçar, isto era muito comum assim, recebíamos informalmente todos os amigos, eram poucos os que se anunciavam. Sabiam que o meu pai acabava as consultas no Curry Cabral pelas 13 horas, e que vinha imediatamente para casa, quem batia à porta almoçava. O meu pai contou-me que o foi receber à entrada, eufórico, estava todo desalinhado, sem plastrão, e lhe dissera: “Olha, desculpa, hoje não pode ser, nasceu-me uma filha, sou pai pela primeira vez, estou radiante, isto está tudo uma desordem mas estamos felizes. A Estrelinha está de boa saúde!”. A Estrelinha era a minha mãe. (...)

(...) Nasci num meio burguês, filha de um clínico geral que trabalhava no Curry Cabral e no banco de S. José e tinha consultório na Praça José Fontana, e de uma brasileira de Santos, menina prendada. Era um casal que se amava muito. À distância destes anos todos, reconheço que tive o privilégio de nascer num meio excepcional, rodeada de pessoas excepcionais. O pai, a quem meio mundo chamava o Catarinho (Catarino Palma d’Abreu Dantas) viera estropiado da Flandres, era um homem de uma curiosidade insaciável, uma grande alma, um grande carácter. (...)

(...) O Catarinho era monárquico por tradição e convicção, mas era um homem verdadeiramente popular, não aceitava injustiças, falava com toda a gente com a mesma elegância de modos. Uma vez, era eu pequena, ele foi abordado nos Restauradores por alguém, eu, a minha mãe e o meu irmão, não percebíamos o entusiasmo daquela conversa. Despediu-se do senhor e depois disse-nos: ”Era um dos meus doentes lá da Penitenciária, creio que era um grande criminoso que se regenerou. Ainda bem que o voltei a ver”. (...)

(...) O meu pai vivia politicamente na oposição à balbúrdia republicana, veio a aderir à Liga 28 de Maio, admirava profundamente Salazar e a sua obra. Fez sempre campanha a seu favor, tudo à sua custa, nunca quis cargos, o que ele queria era ser médico, viver com a família, estudar genealogia, história de arte, até mineralogia, tudo lhe interessava. Não passava uma semana que não fosse investigar na Torre do Tombo. A minha mãe era adorável, acabou por ser a minha filha. Isto é difícil de compreender até se conhecer a relação que estabelecemos, sobretudo nos últimos anos da sua vida, morreu já nos anos 80. Sempre que falo da minha mãe emprego o termo que usei sempre: a Estrelinha (Maria Augusta dos Santos Pimenta), ela era de facto uma estrela reluzente ao pé de nós, delicada no trato e sempre delicada na sua saúde. (...)

(...) A abundância em que nasci começou a desaparecer quando eu tinha 10 anos. Com a crise de 29, o meu pai perdeu as economias amealhadas que pusera no Banco do Minho e a Estrelinha perdeu muito do que tinha nos negócios de Santos, tudo herança do avô Valentim, que não conheci, ele morreu quando a avó Januária veio com duas filhas até à Europa. É verdade que ele era um nome na medicina mas não era suficiente, houve que cortar nas despesas, desapareceu o chofer e desapareceram criadas. E desapareceram muitas das visitas lá em casa. (...)

(...) Com o desaparecimento do meu pai, tudo mudou, eu ia fazer 21 anos. (...)

(...) Em 1950, soube que havia uma vaga na Embaixada dos Estados Unidos da América, na Duque de Loulé, fiz provas, no Verão, fui aceite. O meu emprego não era propriamente na Embaixada mas sim junto do serviço do adido militar, eu depois explico o que fazia. Por essa altura, o Raimundo pediu à minha tia para ir ter com ele ao Norte. A Ada pediu-me para a acompanhar.  E foi assim que fomos para a Póvoa, de 15 a 30 de Agosto. Na primeira noite, fiquei em casa da Luísa Palma. Fui com ela ao Casino (...).

(...)  Nisto chegou o meu primo Manuel Dantas Amorim que vinha a falar com um outro senhor e apresentou-me o Albano da Graça Toscano. Pouco depois, fui dançar com este senhor que era funcionário colonial, tinha ido quase adolescente para a Guiné, vivia lá há muitos anos, mais de 16, estava agora de férias. Ia começar o meu romance. No Casino da Póvoa, mal sabia eu, tinha o meu destino traçado para ir para a Guiné, onde vivi momentos tão belos mas também tão dramáticos. Ao longo destes anos, digo-lhe agora sem ironia, eu achava que era exótico falar da Guiné, quando eu falava os outros ouviam com atenção, ninguém sabia onde é que era a Guiné e como é que lá se vivia. Dou comigo agora a pensar que ir contar tudo quanto eu vivi tem aspectos melindrosos, ainda há algumas pessoas vivas, nem sei se vou contar tudo.

(...) E foi assim que ficámos noivos. Mas o Albano tinha que partir em Setembro, tinham acabado as férias, só poderia voltar dentro de 4 anos, encarou-se logo a hipótese de casarmos por procuração. É bom não esquecer que eu ia trabalhar para a Embaixada, em Outubro assinei contrato como operadora telefonista. Eu vivia uma situação de grande dilema, nem ele nem eu tínhamos idade para perdermos mais tempo, naquela época só havia cartas uma vez por semana, não me estava a ver num namoro como se fosse uma adolescente.



Era um dilema: pela primeira vez na vida eu estava a ter um emprego que me interessava, que me entusiasmava verdadeiramente, mas também a Guiné estava no horizonte, eu queria casar com o Albano. (...)
 
Casei na Igreja do Campo Grande, fui de braço dado com o maninho, fizemos a festa em nossa casa. E naquele mês de Setembro, com a Estrelinha e a Ada a chorar, emocionadas, parti da Portela, de madrugada. Eu saía pela primeira vez de Portugal.  (...).

Guiné 63/74 - P5746: Convívios (182): 1.º Encontro da Tertúlia do Centro 2 (José Eduardo Oliveira/JERO)


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), a propósito do 1º Encontro da Tertúlia do Centro, que decorreu em Monte Real, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 16 de Janeiro de 2010:

A TABANCA DO CENTRO

Volto ao dia 27 de Janeiro último para alguns considerandos que me pesam na consciência por ainda os não ter feito.

Entrei na Pensão Montanha, em Monte Real, com 8,3. Pode parecer um valor negativo mas não era.

A expectativa era grande à mistura com algum desconforto por conhecer tão pouca gente da multidão que invadia a “Montanha”… Conhecia apenas o meu "Irmão" MR(Eduardo Magalhães Ribeiro), a Antonieta e o Belarmino Sardinha e o meu conterrâneo Juvenal Amado, que já não via desde a última vez. Ah, já me esquecia, também conhecia a minha mulher. Maria Helena de seu nome.


Está claro que havia as “caras conhecidas” do blogue do “nosso” Luís Graça. Como impõe a disciplina militar comecei as minhas apresentações pelo Alto Comandante Interino - Joaquim Mexia Alves.

Descobri de imediato uma coisa em comum.Tinha o peso correspondente à sua altura… Conversámos por diversas vezes durante o repasto e a minha estima e consideração por este homem das Termas cresceu altamente.

Tem desde já o meu voto para as eleições da Tabanca do Centro(oportunamente enviarei o meu NIB para aquele assunto que falámos já na altura das despedidas).

Depois o Vasco da Gama que era para mim já um mito… Confirmou tudo o que eu já pensava. Levei-o a conhecer a minha mulher, que foi professora durante 36 anos, para ele contar aquela deliciosa história da “pequena pressão “sobre o Furriel Professor que examinava (esmiuçava talvez seja a expressão mais correcta) alguns militares da sua Companhia. A tal salva dos obuses que “salvou” os militares atrapalhados no exame…


O Zé Belo, o representante da Suécia (ou da NATO), que confirmou ser o gentleman que transparece dos seus escritos do blogue.

Perturbante a conversa que tivemos sobre a luz de algumas meses na Suécia, que correspondia aquela que o tinha acordado nesse dia à 07h00 .

E depois os 40 graus negativos…


O Zé Dinis que é uma força da natureza com tem tive grande empatia.

Se as “Finanças” o tributassem pelo que come este homem”Especial” não ganharia para comer…

Na foto o Capitão Vasco da Gama nem quer acreditar!

O Zé Teixeira, o homem da água, leader convicto desse extraordinário movimento de solidariedade com as gentes da Guiné.


O “homem de Coimbra” com o seu comovido discurso sobre outro movimento de apoio e solidariedade para com a Guiné descrevendo entusiasticamente o recente envio de um contentor de 40 ‘(carregado até à porta). Parabéns.

A Giselda, minha “colega” – sem ofensa – do Serviço de Saúde a quem prestei a minha homenagem e reconhecimento de ex-combatente.

O António Graça de Abreu cuja figura esguia eu conhecia do seu livro ”Diário da Guiné”.

Livro que já tinha e de que gostei muito, como tive oportunidade de lhe dizer.

Está agora um escritor de peso (oitenta e tal… como diria o Magnuson!?)


Deixei para o fim o Zé Brás. Este homem parece um santo. A minha homenagem com a transcrição da sua poesia: “O Centro e o Nada”.

Aparentemente/o nada é… nada/quer dizer/não existe não tem densidade não tem massa/não tem peso nem espaço nem volume/ não tem cor nem cheiro

Insisto/aparentemente nada é nada/ com nada é impossível construir casas semear trigo/colher cerejas fazer um filho ir á lua/ com o nada ninguém ri ninguém chora ninguém grita/de dor ou de prazer

O nada não é pão nem espada nem ternura/ nada em absoluto não existe/nada é um ponto/nada é o centro imaterial arbitrariamente ocupado/pelo espaço em redor

O nada é o centro/um território tão vasto como o infinito/um território tão vasto como o sonho/ cientistas e poetas que me expliquem o nada e o centro/ que me expliquem aquilo que em vão buscarás/ até ao último folgo

(À Tabanca do Centro e aos seus fundadores iluminados, Monte Real, 27.01.10 – José Brás).

Ah, já me esquecia de um pormenor.

Os 8,3 que referi no princípio desta “memória do centro” tinham a ver com uma recente análise ao ácido úrico. Depois do “cozido” de Monte Real duvido um bocado que “eles” se mantenham. Mas… não iremos baixar os braços. Teremos é que os ocupar menos vezes... quando agarramos faca e garfo… Digo eu… que tenho 1,76 (um metro e setenta e seis) e o peso correspondente à altura do Joaquim Mexia Alves… que é alto para caramba!

Um grande abraço para todos (e façam dieta... )
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5745: José Corceiro na CCAÇ 5 (2): A primeira saída para o mato (1ª parte)

1. O nosso Camarada José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a sua 2ª mensagem, em 30 de Janeiro de 2010:

Camaradas,

Grato, pela atenção que possa ser dispensada a esta minha divagação, da incursão, que me foi imposta, nas terras da Guiné.

Dividi a narração, em duas partes, sendo esta primeira como que o aperitivo para ganhar folgo e coragem para partir à aventura e acção.

A todos, os tertulianos, o meu agradecimento por me permitirem invadir, uma nesga da vossa privacidade e darem-me um pouco de atenção e companhia. Para todos, o meu humilde Bem-haja, saúde para todos.

A PRIMEIRA SAÍDA PARA O MATO (1ª PARTE)

Cheguei a Canjadude, dia 13 de Junho, de 1969, na parte de tarde. Após a refeição do jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07.00h, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de Companhia, ao Cheche. De transmissões iam o Silva, o Carvalho (que era o mais velho de transmissões), e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia sempre o Carvalho.

Era a minha primeira noite, passada no abrigo de transmissões, onde fiquei instalado e a dormir. Confesso que, para mim, se veio a tornar incomodativo, dormir lá. Além da luz sempre acesa, eu tenho a particularidade de muitas vezes dormir de olhos abertos, por isso, tornava-se duplamente perturbador.

Havia o expediente normal dum posto de transmissões em funcionamento 24.00h/dia, com os barulhos inerentes à execução das tarefas próprias das comunicações.Estava permanentemente um operador de serviço, em turnos rotativos de 3 ou 4 horas, para dar cobertura às necessidades de emissão, ou recepção de mensagens, e a respectiva manutenção do equipamento. Também os Q.T.Rs., eram desconcertantes para poder dormir, pois, de hora a hora, o posto principal (no caso Nova Lamego), fazia um varrimento a todos os postos do grupo, a perguntar quem tinha mensagens a transmitir e informava quem tinha a receber.

Dormia-se num ambiente demasiado agitado e hostil, visto o sossego não ser possível, devido a esta laboração, que era necessário desenvolver. Desta forma o sono não era reparador, para mim, e havia ainda outro inconveniente, pois quando se estava de serviço de noite precisava descansar de dia, que era a falta de silêncio. Além de tudo isto, o espaço era exíguo para as necessidades, as camas estavam amontoadas e mal dava par respirar. Mudei, do abrigo de transmissões para o abrigo Norte, dia 7 de Julho de 1969, uma segunda-feira.Nesta, primeira noite, fizemos um serão prolongado.

Era norma, o periquito chegado, pagar umas cervejas aos camaradas da secção e eu não fugi à regra. Os meus colegas estavam ávidos de notícias da civilização e eu estava sequioso do conhecimento deles, para melhor me proteger da guerra. As palavras são como as cerejas, só custa é comer a primeira, atrás de uma vem outra e assim foi, falou-se de tudo, da Metrópole; das novidades musicais, dos discos de vinil e do gira-discos que eu levava (tinha tido o primeiro haviam passado 10 anos e ninguém me ensinara a passar sem ele).

Falamos das namoradas, dos cuidados na Tabanca, das lavadeiras (logo que me quiseram arranjar uma). Muitas perguntas: Como tinha eu ido parar ali? Se tinha sido algum castigo? Cavaqueamos das aventuras e desventuras de cada um, do tipo de conversas de soalheiro e caserna!

Eles estavam concertados e queriam, amigavelmente, infernizaram-me a vida, mais parecia que me queriam praxar. Eu era uma novidade, um periquito e estava muito verde… um novato. Eles diziam: “Nós já somos velhinhos!”. O que queriam era “folia” e atormentar-me.Às tantas, um deles, causticamente, sai-se com esta:

- Tu chegaste hoje, dia 13 sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares (47), isto não é, convém que se diga, uma colónia de férias, para vires com discos e gira-discos na bagagem. Isto aqui é a guerra amigo e não vais ter propriamente vida facilitada, até porque os nossos graduados não são flor que se cheire, as surpresas, não vão ser glico-doces para o teu lado.

Eu respondi:

- Que respeito e sentido de hospitalidade vocês têm para com um colega, que se encontra aqui encabulado e pávido…! Não há necessidade de serem capciosos comigo, não nos conhecemos é certo, mas, neste caso particular, estar a utilizar a astúcia não é cordial, comigo não pega! Estamos todos no mesmo barco e aqui não reconheço barões. Quanto ao dia ser 13 e sexta-feira, para mim, são meros acasos, nada mais! Eu tenho a abonação do primeiro banho que me deram à nascença, que foi de humildade, regado com água benta, para ficar escudado e céptico, contra o mau-olhado e vacinado para imunização da superstição!

Sobre o Cheche é um facto, não tinha argumentos, mas, estava interessado em saciar a minha curiosidade. Sabia algo mas muito pouco, para a consistência e afirmação do meu ego e satisfação do meu desejo. Já ouvira falar qualquer coisa na Metrópole, mas, despreocupadamente, pouco me dizia. Só em Nova Lamego, em diálogo com o cabo Amaro, me elucidei e tomei consciência da localização geográfica de Canjadude. Fiquei a saber que, para lá deste, não haviam mais aquartelamentos.

Estava o Cheche, numa das margens do rio Corobal, de onde foram retiradas as N/T e, atravessando para a outra margem, estava a zona de Medina de Boé.Embora não fosse o momento adequado, sobretudo para mim, o diálogo descambou para a tragédia do Cheche e percebi, que haviam alguns, que me queriam supliciar com “velhaquices”. Compreendi e aceitei, pois era o meu primeiro baptismo de poluição psicológica guerreira. Eu estava ali puro, tinha chegado há meia dúzia de horas e era ainda um estranho.

Estava a aprender, a ganhar a confiança deles, achei que era aconselhável ser humilde e submisso e foi essa a minha conduta. A prudência nunca é demais, pois alguns deles já tinham a sua dose exagerada de mato e guerra e não admitiam contraditórios, sentiam-se conhecedores absolutos da verdade, como se uma só houvesse (a deles como é óbvio).

Pensei que lhes assistia o direito de me estarem a malhar e amedrontar. Eu pus em prática o ensinamento do meu professor de Filosofia, que dizia assiduamente: “Em casa de letrado, tanto se paga de pé como sentado.”.

Com todos os camaradas de armas tive relacionamento cordial e a todos lembro como amigos. Houve dois ou três “casinhos”, em que estive envolvido (só um em transmissões) sem importância nenhuma, que eu não esqueci, e provavelmente nunca ninguém mais se lembrou, e que a seu tempo aqui aflorarei.No delongo serão, falou-se da tragédia no Cheche e, alguns que a viveram, como que se recolheram em meditação. Foi um momento delicado, evidentemente que havia vozes embargadas e trémulas, a falar do assunto.

Era recente e estava fresco ainda nas memórias, mas, notei disponibilidade e ansiedade, para relatar o acontecido e estavam desejosos que alguém os ouvisse.Era notório que os alguns dos mais velhos estavam marcados, pois foram testemunhas impotentes da tragédia que a seus pés se desenrolou.

Tinham necessidade de falar e havia história para contar, sobretudo o Nora, o Graça, o Dionísio, o Loupa, o Rogério, o Carvalho e o Alex (estes dois últimos eram mais reservados). Em tempo passado na Guiné, o Carvalho era o mais velho e a seguir ao Dionísio (que eu estava a substituir).Pelo que percepcionei e registei, fiquei com a convicção que houve muito compromisso, empenho e envolvimento da CCAÇ 5, na retirada de Medina de Boé. Não tanto na acção operacional, mas sim na logística, recepção, hospitalidade, aquartelamento e esperança.

Não podendo esquecer também, que era o desejo da concretização dum sonho a unificação da companhia, que andou uns anos dispersa, por Cabuca, Nova Lamego, Cheche e Canjadude. Toda a CCAÇ 5, viria a aglutinar-se, em Canjadude.Os camaradas atrás citados, andaram em rotatividade, pelos locais onde os pelotões estavam sediados e era desconfortante esta dispersão, mais que não fosse em termos de segurança, pois havia menos coesão e entrosamento que os debilitava e tornava alvos mais indefesos.

Isto, quer para os metropolitanos, quer para os nativos, até porque, estes últimos, tinham as suas famílias estruturadas e domiciliadas, e preferiam receber os seus prés como desarranchados, sendo má política desfavorecê-los.

O Loupa e o Dionísio estiveram cerca de meio ano deslocados em Cabuca. No meu tempo dois homens da secção de transmissões foram feridos (um por acidente com uma G3 em Canjadude e outro numa deslocação a Bruntuma, num ataque aquando da operação Mar Verde, tendo-lhe sido atribuído um determinado grau de deficiência física).

O Graça dizia com orgulho que em tempos veio só e a pé (mais de 15Km), do Cheche a Canjadude, buscar o correio, algum expediente e mais alguma coisa, numa aventura arriscadíssima (autêntica roleta Russa). Faço esta afirmação, porque nesta picada que ele teve que percorrer, eu vi destroços de algumas viaturas devido ao efeito das minas, que por ali tiveram que ficar, e, pelo menos uma, incendiou-se numa das emboscadas (posteriormente, estive presente na recuperação de duas destas viaturas, em datas distintas).

O Cheche não tinha civis, o que o tornava muito isolado, representando assim sofrimento acrescido para os aquartelados, que ficavam confinados, dum lado pela água do rio Corobal, e do outro lado, em forma de meia-lua, por mata e floresta. Para poderem tomar banho no rio tinham que lançar previamente duas granadas para a água, de modo a afugentar os crocodilos e só depois se banhavam, o que, mesmo assim, não deixava de continuar a ser arriscado.

A margem do rio fazia uma ligeira encosta e estava dentro do aquartelamento, por isso, até pescar se aparentava perigoso (por duas vezes em operações em que eu estava presente, foram mortos crocodilos nos riachos afluentes, que presumo deviam ir desovar).

Houve, inclusivamente, empenho festivo para receber com a dignidade possível e agradecimento merecido, os martirizados heróis que deixavam Medina de Boé. Eu sou testemunha ocular que passados 4 meses após a infausta tragédia, existirem ainda a cerca de 1km de Canjadude, na picada que liga ao Cheche, fachas de pano passadas de árvore a árvore, por cima da picada, onde se podiam ler coisas como: “Canjadude saúda-vos”.

Pelo menos 1 ou 2 dessas fachas estavam por lá e só a acção do tempo as destruiu. Assim como haviam algumas folhas de palmeiras atadas nas árvores, ao longo da picada, como que a saudar e louvar os heróis. É lógico que os indícios preliminares de festividade deixaram de ter sentido após a aziaga tragédia.

Creio que ainda há história para contar, sobre a martirizada companhia que esteve e fechou Medina de Boé. Aqui não me alongo mais porque não fui testemunha.

Presto a minha homenagem pessoal a estes heróis, os que ficaram e os que partiram.

(CONTINUA)

FOTO 1 - Na frente – à direita: João Monteiro (tomava conta da cantina bebidas) e, a seu lado, estou Eu e o Nora. Atrás - à direita: Silva, Rogério e Dionísio (que eu substitui)

FOTO 2 - O Dionísio (lado esquerdo) a ensinar a arte ao periquito (Eu) que não aprendeu

FOTO 3 – Eu, sentado em cima do abrigo numa cadeira feita com aduelas das pipas do vinho, a ouvir música no meu gira-discos

FOTO 4 - Eu na Celebração de Missa em Canjadude (8 de Julho 1969). Não sei o nome do Padre.

FOTO 5 - Eu, do lado direito, e um Furriel junto à imagem da Senhora do Cheche, cuja história da Senhora do Cheche já não lembro.

FOTO 6 - Uma das máquinas que levei da Metrópole para a Guiné e me ajudou a passar o tempo. Guardo-a como uma relíquia. A conservação é a que se pode ver, está a funcionar, sempre a fotografar e tive sorte com ela porque nunca apanhou fungos, nem nas ópticas, nem nas lentes (Foto tirada em 30/01/2010)

Um abraço para todos,
José Corceiro
1º Cabo Trms da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P5744: Notas de leitura (60): Armor Pires Mota (5): Estranha Noiva de Guerra (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Que grande romance, que beleza, que grande homenagem à Guiné! É urgente encontrar um editor para um texto colossal. No mínimo, este romance do Armor Pires Mota está na lista das obras-primas.
O João de Melo escreveu que aquelas guerras não produziram uma obra-prima.
Desafio a que classifiquem “Estranha Noiva de Guerra”. Leiam-no e depois digam-me.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (5)
Estranha Noiva de Guerra: Um romance notável


Beja Santos

Cabo Donato, Pastor de Raparigas” é um livro de contos editado em 1991. Surpreendentemente, em 1995, Armor Pires Mota volta à Guiné e escreve o livro da sua consagração: “Estranha Noiva de Guerra”. Se procurarmos os seus mestres literários, não é difícil encontrar simpatias por grandes agentes literários da ruralidade, caso dos mais antigos como Raul Brandão ou posteriores como Araújo Correia ou Tomás de Figueiredo. É a riqueza vocabular, o recurso à mais genuína imagem telúrica, interceptam-se simpatias pelo neo-realismo, naturalismo e, paradoxalmente, a narrativa à Hemingway ou Norman Mailer.

Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão, vamos sumariar onde está a singularidade e a notabilidade deste romance. A metáfora é a da via-sacra, isto é, o herói, no cumprimento do seu dever, arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações: o confronto com o inimigo, os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se torna delirante e dilacerante, dando azo a que o herói solte as recordações para embates ainda mais imprevistos. A estrutura é a da narrativa na primeira pessoa, e aliás assim que abre o romance: “Eu, Bravo Elias – de nome completo José Joaquim Bravo Elias –, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo mas generoso das suas velhas recitando o seu hamedulilai, a heróica rapariga, ah a rapariga e, como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo, da esquerda para a direita, todo o campo de tiro, aliás, como costumava fazer sempre”. O herói combate em território que é familiar ao escritor, o Morés, um dos santuários míticos do PAIGC. Com ele segue Júlio Perdiz, o mártir que não será abandonado em campo de batalha. Estamos longe de Mansabá, ali é necessário regressar. Inicia-se a operação, à primeira refrega. O pobre Garcês levou um tiro no peito, só houve tempo de lhe rezar pela alma. O assalto nas imediações do Morés é bem sucedido: várias pistolas, carabinas, livro de anedotas em português, o primeiro livro de leitura do PAIGC, material escolar, folhas de um livro de conta corrente da firma viúva Campos e Grácio, Ldª, cargas prismáticas TNT, medicamentos, etc. E escreveu-se no relatório, na ausência de corpos: várias baixas prováveis.

A operação prossegue, desta feita um guerrilheiro ferido prontifica-se a colaborar. Na aproximação junto ao caminho que de Malimorés conduzia a Talicó, o IN voltou a atacar em força, vive-se uma hora de inferno sem a salvação à vista: “No primeiro grupo de combate havia feridos graves, um na retaguarda, outro no meio da coluna. O primeiro cabo Cerejo estava gravemente ferido. Apanhara um tiro quando se movimentava a socorrer uns e outros. Acabava de enrolar panos no braço de um camarada, quando sentiu um calor no braço, depois o gorgolejar do sangue. Havia necessidade de evacuar para a retaguarda todos os feridos. Ele não parava. Só parou com aquele tiro esgalhado. Os T6 ainda não haviam chegado. Nem os Fiat. Aquele era o duelo mais temido de toda a Guiné. A boca a saber a cortiça. Os nervos em farripas”.

Estacionou-se ali perto, numa noite comprida de séculos, a angústia anavalhando os nervos. A memória de Bravo Elias recorda nomes, situações cómicas ou destemperadas, há recordações de Bissau, da esplanada do Tropical, do café Bento, há o espírito de solidariedade. Apareceu um cão rafeiro, juntou-se àquela tropa em apuros, sabe-se lá se muito cercada, com uma força inimiga pronta para a emboscada. O herói descobre que ali ao pé jaz Júlio Perdiz agonizante: “tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”. Perdiz distinguira-se um dia por se ter lançado, montado num burro contra uma força do PAIGC emboscada na mata densa. Os helicópteros sobem e descem, largam munições e água, transportam os feridos para Bissau. O sol trepava no horizonte. “Cambaleando ligeiramente as pernas, depois de carregado com o mínimo, arremessei para os ombros o corpo do meu camarada. O rapaz deu um urro, que não havia de ser o último, abafado e soturno, do tamanho da sua angústia. E quebrando-se todo, as mãos de um lado, os pés do outro, dançando, dançando e a boca largando uma babugem suja, uma aguadilha sanguinolenta, as pernas tropeçando nas minhas, - parti a caminho de Tabassai, não deixando de dizer-lhe que tínhamos que nos safar depressa, que ele não pesava nada como uma perdiz, antes como um burro, que, que”. Era necessário afastar os jagudis que vinham ao cheiro do sangue, o cão acompanhava o princípio da via-sacra. E eis que chega uma rapariga dizendo “Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco”. A rapariga promete levá-los a Mansabá. O herói interroga-se se ela não é Ansaro, a sua lavadeira. Não é, chama-se Mariama. “Mariama fora uma adorável noiva de guerra, embora esquiva e envergonhada, o que a fazia, depois, mais generosa. Ou parecia. À falta de João Embaló que, depois de apertados interrogatórios, de faca de mato em cima da mesa da messe e onde o capitão exibia toda a sua truculência e cinismo para uma duvidosa operacionalidade, capitão que, mais tarde, lhe havia de comprar uma bicicleta, voltava assim a andar no mato topando de guia, mas não vendendo a alma, como se havia de comprovar mais tarde, também Mariama serviu, pelo menos uma vez, de guia, mas quem não ficou satisfeito foi o capitão, porque efectivamente ela não nos levou a acampamento nenhum, apenas a meia dúzia de casamatas há muito abandonadas”. Assim aparece Mariama a noiva de guerra de Bravo Elias, tem ele dezoito meses de guerra. Ela é uma bonita rapariga, bamboleando-se, olhos penetrantes e fundos, sabe manejar as armas, fora apanhada no mato, era guerrilheira.

Esta é uma das tónicas dominantes da obra de Armor Pires Mota: é a convulsão da guerra que atrai os pólos opostos, leva-os da conciliação à reconciliação. É a metáfora da paz, o mistério do amor cristão, depois da provação (ou com ela) nasce a confiança, pode despertar a paixão, os seres encontram-se. Aquela batalha é muito estranha, não se percebe como é que Bravo Elias se separou da força militar e se lança, confiante, atrás de Mariama, no interior da mata. Faz-se uma padiola, e é então que se inicia a via-sacra em terra incógnita.

Aqui nos detemos. É um romance fecundo de mensagens, o autor regressa trinta anos depois às mesmas situações, aos mesmos desfechos, o seu estado de espírito é de grande luminosidade e respeito por todos aqueles que combateram, mas também de grande respeito pelo guerrilheiro indefectível, aqui a metáfora é o combate até à chegada do perdão. Porque nós perdoamos o calvário imposto pelos homens mas jamais o esquecemos. É essa, penso eu, a mensagem principal desta obra-prima que me apanhou completamente de surpresa.

(continua)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5708: Notas de leitura (59): Armor Pires Mota (4): Cabo Donato Pastor de Raparigas (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5743: Em busca de ... (116): O Ruiguila procura ex-Condutores da CCAV 2749 do Abrigo Os Volantes, Piche, 1970/72

1. Mensagem de Francisco Palma (ex-Condutor Auto Rodas na CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), com data de 18 de Janeiro de 2010:

Carlos Vinhal
Poderemos ajudar este "amigo dos velhos tempos" atraves da nossa Tabanca?

Um Guineense a viver na zona de Amadora , "moço de recados" naquele altura e que os Condutores apelidaram de o Riguila, procura contactar com antigos ex-Combatentes do Abrigo "os Volantes" de PICHE 1970-1972/3. Não disse o nome da companhia ou Batalhão, mas nessa altura estava lá o BCAV 2922 e a CCAV 2749.

Francisco Palma


2. Comentário de CV:

Encontrei na Página do Jorge Santos um pedido de contacto de um camarada da CCAV 2749, o Lopes, com o telemóvel 917 633 249. Talvez não fosse descabido contactá-lo para início de pesquisa.

Fica no entanto aqui registado o apelo do Riguila para ajudar a encontrar os Condutores da CCAV 2749(?), Abrigo dos Volantes que esteve em Piche no início dos anos 70.

Quem tiver notícias poderá encaminhá-las para o contacto móvel do Riguila ou para o Francisco Palma, email fapalmaster@gmail.com

Quem poderá também ajudar é o nosso camarada e tertuliano Luís Borrega que foi Fur Mil da CCAV 2749.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5742: Em busca de ... (115): Camaradas de meu pai, Júlio Marques Tavares, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) (Marisa Tavares)