segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5744: Notas de leitura (60): Armor Pires Mota (5): Estranha Noiva de Guerra (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Que grande romance, que beleza, que grande homenagem à Guiné! É urgente encontrar um editor para um texto colossal. No mínimo, este romance do Armor Pires Mota está na lista das obras-primas.
O João de Melo escreveu que aquelas guerras não produziram uma obra-prima.
Desafio a que classifiquem “Estranha Noiva de Guerra”. Leiam-no e depois digam-me.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (5)
Estranha Noiva de Guerra: Um romance notável


Beja Santos

Cabo Donato, Pastor de Raparigas” é um livro de contos editado em 1991. Surpreendentemente, em 1995, Armor Pires Mota volta à Guiné e escreve o livro da sua consagração: “Estranha Noiva de Guerra”. Se procurarmos os seus mestres literários, não é difícil encontrar simpatias por grandes agentes literários da ruralidade, caso dos mais antigos como Raul Brandão ou posteriores como Araújo Correia ou Tomás de Figueiredo. É a riqueza vocabular, o recurso à mais genuína imagem telúrica, interceptam-se simpatias pelo neo-realismo, naturalismo e, paradoxalmente, a narrativa à Hemingway ou Norman Mailer.

Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão, vamos sumariar onde está a singularidade e a notabilidade deste romance. A metáfora é a da via-sacra, isto é, o herói, no cumprimento do seu dever, arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações: o confronto com o inimigo, os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se torna delirante e dilacerante, dando azo a que o herói solte as recordações para embates ainda mais imprevistos. A estrutura é a da narrativa na primeira pessoa, e aliás assim que abre o romance: “Eu, Bravo Elias – de nome completo José Joaquim Bravo Elias –, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo mas generoso das suas velhas recitando o seu hamedulilai, a heróica rapariga, ah a rapariga e, como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo, da esquerda para a direita, todo o campo de tiro, aliás, como costumava fazer sempre”. O herói combate em território que é familiar ao escritor, o Morés, um dos santuários míticos do PAIGC. Com ele segue Júlio Perdiz, o mártir que não será abandonado em campo de batalha. Estamos longe de Mansabá, ali é necessário regressar. Inicia-se a operação, à primeira refrega. O pobre Garcês levou um tiro no peito, só houve tempo de lhe rezar pela alma. O assalto nas imediações do Morés é bem sucedido: várias pistolas, carabinas, livro de anedotas em português, o primeiro livro de leitura do PAIGC, material escolar, folhas de um livro de conta corrente da firma viúva Campos e Grácio, Ldª, cargas prismáticas TNT, medicamentos, etc. E escreveu-se no relatório, na ausência de corpos: várias baixas prováveis.

A operação prossegue, desta feita um guerrilheiro ferido prontifica-se a colaborar. Na aproximação junto ao caminho que de Malimorés conduzia a Talicó, o IN voltou a atacar em força, vive-se uma hora de inferno sem a salvação à vista: “No primeiro grupo de combate havia feridos graves, um na retaguarda, outro no meio da coluna. O primeiro cabo Cerejo estava gravemente ferido. Apanhara um tiro quando se movimentava a socorrer uns e outros. Acabava de enrolar panos no braço de um camarada, quando sentiu um calor no braço, depois o gorgolejar do sangue. Havia necessidade de evacuar para a retaguarda todos os feridos. Ele não parava. Só parou com aquele tiro esgalhado. Os T6 ainda não haviam chegado. Nem os Fiat. Aquele era o duelo mais temido de toda a Guiné. A boca a saber a cortiça. Os nervos em farripas”.

Estacionou-se ali perto, numa noite comprida de séculos, a angústia anavalhando os nervos. A memória de Bravo Elias recorda nomes, situações cómicas ou destemperadas, há recordações de Bissau, da esplanada do Tropical, do café Bento, há o espírito de solidariedade. Apareceu um cão rafeiro, juntou-se àquela tropa em apuros, sabe-se lá se muito cercada, com uma força inimiga pronta para a emboscada. O herói descobre que ali ao pé jaz Júlio Perdiz agonizante: “tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”. Perdiz distinguira-se um dia por se ter lançado, montado num burro contra uma força do PAIGC emboscada na mata densa. Os helicópteros sobem e descem, largam munições e água, transportam os feridos para Bissau. O sol trepava no horizonte. “Cambaleando ligeiramente as pernas, depois de carregado com o mínimo, arremessei para os ombros o corpo do meu camarada. O rapaz deu um urro, que não havia de ser o último, abafado e soturno, do tamanho da sua angústia. E quebrando-se todo, as mãos de um lado, os pés do outro, dançando, dançando e a boca largando uma babugem suja, uma aguadilha sanguinolenta, as pernas tropeçando nas minhas, - parti a caminho de Tabassai, não deixando de dizer-lhe que tínhamos que nos safar depressa, que ele não pesava nada como uma perdiz, antes como um burro, que, que”. Era necessário afastar os jagudis que vinham ao cheiro do sangue, o cão acompanhava o princípio da via-sacra. E eis que chega uma rapariga dizendo “Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco”. A rapariga promete levá-los a Mansabá. O herói interroga-se se ela não é Ansaro, a sua lavadeira. Não é, chama-se Mariama. “Mariama fora uma adorável noiva de guerra, embora esquiva e envergonhada, o que a fazia, depois, mais generosa. Ou parecia. À falta de João Embaló que, depois de apertados interrogatórios, de faca de mato em cima da mesa da messe e onde o capitão exibia toda a sua truculência e cinismo para uma duvidosa operacionalidade, capitão que, mais tarde, lhe havia de comprar uma bicicleta, voltava assim a andar no mato topando de guia, mas não vendendo a alma, como se havia de comprovar mais tarde, também Mariama serviu, pelo menos uma vez, de guia, mas quem não ficou satisfeito foi o capitão, porque efectivamente ela não nos levou a acampamento nenhum, apenas a meia dúzia de casamatas há muito abandonadas”. Assim aparece Mariama a noiva de guerra de Bravo Elias, tem ele dezoito meses de guerra. Ela é uma bonita rapariga, bamboleando-se, olhos penetrantes e fundos, sabe manejar as armas, fora apanhada no mato, era guerrilheira.

Esta é uma das tónicas dominantes da obra de Armor Pires Mota: é a convulsão da guerra que atrai os pólos opostos, leva-os da conciliação à reconciliação. É a metáfora da paz, o mistério do amor cristão, depois da provação (ou com ela) nasce a confiança, pode despertar a paixão, os seres encontram-se. Aquela batalha é muito estranha, não se percebe como é que Bravo Elias se separou da força militar e se lança, confiante, atrás de Mariama, no interior da mata. Faz-se uma padiola, e é então que se inicia a via-sacra em terra incógnita.

Aqui nos detemos. É um romance fecundo de mensagens, o autor regressa trinta anos depois às mesmas situações, aos mesmos desfechos, o seu estado de espírito é de grande luminosidade e respeito por todos aqueles que combateram, mas também de grande respeito pelo guerrilheiro indefectível, aqui a metáfora é o combate até à chegada do perdão. Porque nós perdoamos o calvário imposto pelos homens mas jamais o esquecemos. É essa, penso eu, a mensagem principal desta obra-prima que me apanhou completamente de surpresa.

(continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5708: Notas de leitura (59): Armor Pires Mota (4): Cabo Donato Pastor de Raparigas (Beja Santos)

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