quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5754: (Ex)citações (56): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 27 de Janeiro de 2010:

Carlos
A uma troca de comentários entre mim e o José Belo, apareceram vários outros comentários, todos eles, felizmente, agradáveis de ler, não porque concordassem a 100% connosco mas porque, mesmo no que discordavam, eram claros e amistosos.
Entre eles, a amiga Filomena enviou o que se segue:

"Para quem pouco ou nada percebe do assunto, torna-se cada vez mais difícil compreender a colonização/descolonização, mas ficamos com algumas ideias (positivas/negativas?) quem sabe um dia, possamos acreditar numa só versão sobre o assunto.
Gosto de ler os seus textos.
Filomena"


Achei por bem enviar-lhe uma mensagem sobre o assunto directamente para o seu endereço porque me pareceu que não deveria estar a massacrar os nossos camaradas e o espaço do blogue com as minhas maluqueiras pessoais.
Já recebi dela resposta agradecida.

No centro do cozido do centro (que bom que estava!) alguns camaradas afirmaram que gostariam de vê-lo publicado porque eu havia falado nele e o José Dinis já o tem e parece que gostou.

Daí que o envio aqui, ficando à tua guarda e decisão, julgando eu que a amiga Filomena não se oporá a que seja editado, sendo que, se for, deve ser antercedido do seu próprio comentário para melhor entendimento geral.

Um abraço
José Bras


Mensagem do camarada José Brás para a nossa amiga tertuliana Filomena Sampaio

Caríssima amiga
Em primeiro lugar uma nota.
Escrevo -lhe directamente porque me parece abusivo da paciência dos camaradas da Tabanca, manter por mais tempo este debate, embora também receie que o seja a utilização do seu endereço, sobretudo porque não tenho a certeza absoluta que seja a amiga, a pessoa que comentou mais que uma vez os meus postes, aliás, o que lhe agradeço.

Tem toda a razão no que diz, sobretudo porque imagino que se refere, não a si, mas a muita outra gente que, infelizmente, não teve nunca acesso a um debate verdadeiro sobre o assunto, e o que teve sempre foram leituras parciais, ora de um grupo, ora de outro, contraditórias entre si muitas vezes, senão mesmo radicalmente opostas, quase sempre incompletas e com inverdades gradas pelo meio, deixando o informado a pão e laranjas na iminência de não crer em nada nem em ninguém.
Se há alguma coisa que não quero, uma é assumir aqui ares professorais de pessoa que tem resposta segura e definitiva, e a outra é impingir-lhe a ideia de que sou eu quem tem razão. De facto, não tenho senão a minha razão, que em muitos pontos não bate certo com a razão de outros.

A minha amiga sabe que razão e verdade não são coisas absolutas, uniformes e definitivas nos seus enunciados, mas o resultado da acumulação de outras e variadas razões e verdades que a vida e a realidade, lidas por um ou por outro, podem não fazer não coincidir.
Vamos lá ver. Então não existem razões e verdades unas e indiscutíveis que sejam factos concretos, com identidade, com tempo, com modo e com lugar certos e que aplicadas às vidas das pessoas produzem os mesmos efeitos e consequências em todos?
Não sei responder-lhe de modo absoluto mas posso dizer-lhe que não acredito, porque as pessoas que sofrem tais razões e verdades são diferentes uns dos outros, sentem de modo diferente porque nasceram, cresceram e consolidaram o seu ser, em movimento e em realidades também diferentes.

Repare!

Um jovem nascido na Cova da Moura não pode ver com o mesmo olhar um polícia na rua com sua pistola à cinta, como o verá o porteiro de um prédio de luxo, para ficarmos apenas entre pobres. No entanto um polícia é uma pessoa concreta, a sua pistola e as suas balas também o são e matam do mesmo modo a porteiro ou a suspeito marginal, podendo dizer-se, então, que os olhos de um e do outro deveriam realizar a mesma leitura. Nem falamos das diferenças de leitura que o polícia faz, olhando para um ou para o outro dos seus observadores do exemplo.
Colonialismo.

Muito brevemente poderá ser dito que é a ocupação de um País ou de um território por outro País com o objectivo de explorar recursos naturais, o solo, o mar ou o sub-solo, tendo para isso que dominar as gentes que já habitavam tais terras e detinham nelas uma história e uma cultura diferentes e modos de vida adaptados a essa história e a essa cultura.

Grosseiramente se diz ainda hoje que potência colonial eram todos os países que ocuparam terras distantes das suas originais, sobretudo na África e na América, e que durante anos subjugaram os povos naturais, tratando-os, primeiro como escravos, mais tarde como mão d'obra barata, sempre apartados de qualquer ideia de igualdade e mesmo de desenvolvimento civilizacional.

De facto, o avanço científico e tecnológico que chegou na Europa com a revolução industrial e o advento do capitalismo, separou entre si tais potências, uma vez que o uso da ciência e da tecnologia permitia a quem as detinha uma exploração mais rápida e mais funda em menos tempo e com menos meios.

Foi assim que vimos ingleses, por exemplo, enviar para a Rodésia máquinas, engenheiros, arquitectos, médicos, técnicos de toda a ordem e fazer dos negros locais os operários a quem ensinavam a desempenhar tarefas e profissões mais desenvolvidas, pedreiros e carpinteiros, condutores de maquinaria, serralheiros e mecânicos, operadores de máquinas várias.

Portugal, País onde a primeira máquina a vapor chegou 100 anos após o início da sua utilização na indústria inglesa, enviava para Angola carros de bois, pedreiros, carpinteiros, sapateiros, tasqueiros e, na sua maioria agricultores pobres de uma pobre agricultura braçal portuguesa, analfabetos quase todos.
As relações entre brancos e pretos na Rodésia, apesar do ensino e da formação, era muito mais evidentemente racista do que a dos portugueses em Angola, pobre gente, ela também já colonizada no seu país, habituada a grandes sacrifícios, e misérias e a modos de vida não muito diferentes dos que tiveram de suportar lá, convivendo com negros, amancebando-se com as mulheres, fazendo filhos mulatos e exercendo todas as profissões humildes que os ingleses deixavam aos locais na Rodésia.

Quer dizer que a Inglaterra foi um verdadeiro colonizador, sacou muito mais dos recursos existentes e para o fazer desenvolveu muito mais a Rodésia e os rodesianos do que Portugal fez em Angola. Do ponto de vista estrito da ciência económica e cultural a Inglaterra era uma potência colonial e nós uns pobres diabos.
Não quer isto dizer que é menos legítimo ou mais ilegítimo o colonialismo de um e de outro e que um era mais repressivo e racista que o outro, apenas porque na Rodésia ingleses viviam numa sociedade completamente apartada dos negros e em Angola os portugueses se misturavam com os negros e, por vezes, viviam em condições de vida não muito melhores.

Aquando das descobertas e logo que se começou a explorar os territórios, a realeza europeia tratou de imediato de fazer leis que proibiam a implantação de oficinas e fábricas de transformação dos recursos, obrigando a que estes viajassem aos países dominadores para aí serem transformados e muitas vezes re-enviados por preços mil vezes superiores. Com tais medidas proibiram sempre qualquer tipo de desenvolvimento, fosse ele industrial ou cultural e obstaram à acumulação dos capitais indispensáveis para garantir as transformações económicas e sociais.
Como os povos locais não se submetiam com facilidade, eram tratados à chibata, pela espada e pelas espingardas e, nisso, se igualaram sempre colonizadores ricos e pobres.

Durante os quinhentos anos de domínio português em Angola, nunca houve cinco anos seguidos sem alguma forma de resistência dos povos locais, e de guerra, ao contrário do que a história oficial sempre nos fez crer.
Esta é uma interpretação individual e minha, naturalmente não inventada por mim mas bebida no tal caldo cultural em que cresci. Não faltará quem desdiga isto, ainda que sejam factos históricos assumidos, aparentemente sem hipóteses de contestação.

Dirão que portugueses não batiam nos negros e eu vi muitos portugueses baterem nos seus empregados; dirão que portugueses pagavam bem aos trabalhadores e eu sei e toda a gente sabe que os exploravam com fúria; dirão até que os negros nos queriam lá e eu sei que não é verdade e que estavam cheios de raiva contra nós, independentemente de casos particulares em que havia de facto tratamento mais humanizado; dirão que aquela terra era também sua porque nela tinham crescido e construído família, explorações agrícolas, comerciais e industriais e eu não direi que não há aí muita verdade e que não é deplorável a forma violenta como foram despojados de tudo e expulsos.

A meu ver, o verdadeiro culpado de tudo isso foi o regime que não soube ler a história, não segui o caminho das outras potências coloniais, não previu a inevitabilidade das alterações nem as conveniências políticas, mantendo uma guerra violenta e prolongada e aumentando raivas que poderiam ter sido atenuadas atempadamente.

Muito concretamente, sobre cada coisa ou ideia, pode perguntar-se em jeito curto.
Foi bom ou foi mau que portugueses tivessem daqui partido em caravelas e sofrido o que sofreram, descobrindo os caminhos para outras paragens e outras gentes?

- uns dirão que sim porque foi um magnífico contributo que Portugal deu para alargar a ideia de mundo, e mesmo o mundo geográfico e concreto, conhecer outras gentes com seus costumes e culturas, descobrindo que não estávamos sós e que havia outras fés e outros deuses, outros recursos essenciais à humanidade para dar um salto e sair dos restos de feudalismo para uma sociedade moderna e que isso justifica sofrimentos e crimes:

- outros dirão logo que não porque a nossa matriz era a Europa e não a África ou a América, e era com a Europa que deveríamos ter crescido e não de costas viradas para ela, indo ocupar terras habitadas por outros povos com culturas e recursos que não tínhamos o direito de ocupar e suprimir, e menos ainda subjugando, matando, saqueando.

Entre estes dois extremos terá de ser a amiga que pensa e escolhe, incluindo, se quiser, talhando pelo meio, isto é, nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

E o que serve para este exemplo servirá para todas as outras questões, incluindo as verdades e as razões que cada um exibe na discussão da guerra colonial e da descolonização

Peço-lhe desculpa pelo tempo e pelo tom meio petulante da minha resposta, senão petulante de todo, aconselhando a leitura de alguns livros como "As veias abertas da América Latina" de Eduardo Galeano, ou, por exemplo, uma obra mais pequena e simples, agora mesmo saída da mão de uma portuguesa nascida em Moçambique, por sinal parente do camarada tabanqueiro Juvenal Amado, com o título "Caderno de Memórias Coloniais" de Isabela Figueiredo, retrato de um colonialismo que se diz diferente, sem abordagens a grandes temas filosóficos ou históricos, mas utilizando as cenas simples do quotidiano nas relações entre brancos, e entre brancos e negros na antiga Lourenço Marques.
São livros que, por vias diferentes nos dão retratos muito vivos sobre o que foi a colonização/descolonização e o racismo.

Cumprimentos amistosos e à família
José Brás
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5702: (Ex) citações (51): Falando de descolonização com António Rosinha (José Brás)

5 comentários:

Anónimo disse...

Conseguis-te de forma abrangedora quase explicar o que para muitos é,"imbuìdamente",difícil de compreender (ou será aceitar?). E escrevo"quase explicar"pelo que sei dos que podem mas nao querem entender.Porquê? Caro Camarada e Amigo...aquele abraco!

Anónimo disse...

Li e compreendi. Quase tudo. Apenas uma dúvida me fica. Inquietante.
Os caucasianos, em África eram intrusos, mesmo os que tinham nascido ali, naquelas terras.
Certo.
Mas então onde devem viver as centenas de milhares de negros, nascidos em África, ou nascidos em Portugal, mas de pais nascidos em África e que hoje residem em Portugal?
Mutatis mutandis!!!...
Eu creio que isto tem a ver com os caldos culturais.
E com as várias formas de encarar a verdade.
Porque esta, A VERDADE, é só uma...
E eu não faço a mínima ideia por onde anda essa tal de Verdade...

Manuel Amaro

Anónimo disse...

Poderia dizer simplesmente que o comentário do José Belo ficaria aqui muito bem.
Contudo, o respeito e a consideração que me merece qualquer companheiro dest aventura que é a vida, e em especial os que não calam o que sentem, diria simplesmente que eu não disse em nenhum lugar do meu texto que caucasiano era intruso em África. Acho mesmo que, assumida uma escolha de desenvolvimento, eram essenciais.
A questãso aqui está é na pergunta "quem é que estragou a possibilidade?".
De resto, sabemos qiue é hoje crescente o numero de europeus a caminhar para África, espero que agora para caminhar lado a lado, mesmo que não de mãos dadas.
Em relação aos negros que vivem na Europa?
Bem! comparar a fuga ao atraso, à guerra e à fome que resulta da delapidação avassaladora dos europeus nos recursos de África, com a espantosa odisseia dos portugueses, a ocupação das terras e das gentes (leia-se culturas, eo aproveitamento que outros povos fizeram das descobertas portuguesas, amigo, com todo o respeito, não sei como fazer.
Um abraço
José Brás

Torcato Mendonca disse...

Caro José Brás
Ainda não te respondi. Então porque escreves agora?
Porque senti necessidade de dizer uma ou duas; porque me devo ausentar por largos dias; porque, por razões pessoais, estou atarefado demais. Há sempre uma Net á nossa espera….já se espalhou por todo o lado, felizmente.
Serei breve:
Revejo-me em praticamente tudo o que escreveste á Amiga Filomena. Pessoa interessada e merecedora dessa informação, segundo a tua maneira de ver o assunto.
Há dias escrevi, como sabes, uma pequena “estória” do Joanito…Colonialismo…jamais e se não for só ficção? E se o Joanito existiu efectivamente, com outro nome claro? Os “Joanitos” existiram e foi isso que eu quis dizer. Eles e o Colonialismo governado por outros mais acima, muitas vezes de fora e longe e, quantas vezes sem conhecerem Africas, Américas ou outros Continentes a subjugar ou explorar. Feito á inglesa, á portuguesa ou por outro qualquer. Foi sempre Colonialismo, sinónimo de opressão de um povo, dito mais desenvolvido, sobre outro.
Aceito e compreendo os comentários feitos ao “Joanito”. Este espaço é plural. Se o não fosse que faria eu aqui? Aceito pois a opinião diferente desde que fundamentada e na busca da verdade. Posso não aceitar bem o 25/4. Será o que eu penso? Será erro, gralha, ou pressa de escrita…é! Tudo bem.
De quantas mentiras é feita uma verdade? Diz o escritor Angolano Águalusa.
Sem querer ser petulante (palavra empregue por ti), o que eu sei de África, colonialismo e outros saberes, são fruto de minha vida, vida minha fechada ou mal fechada. Escrevo em alinhamento despretensioso de letras em “bicha de pirilau”. Pode até parecer que não fui além e a custo da 3ª classe (antiga) das Aulas Regimentais. Tudo bem, assim seja e a mais não sou obrigado. O Mundo, o meu, é pertença não partilhada. Se o fosse poderia parecer petulante ou vaidoso. Que interessa isso?
O José Belo diz: deves estar a sorrir com alguns resultados: Pois! E mais não digo.
O colonialismo existiu. Muitos o sabem, muitos, mesmo aqui deste espaço, podem, certamente que sim, não o terem praticado. Certamente trabalharam lá como o fazem cá. Certamente conheceram figuras menores, Joanitos, meros “peões de brega” de Senhores e verdadeiros Colonos ou representantes de outros, acima deles que, nem esses Continentes, essas gentes naturais de lá conheceram. Gentes acima de e em cima de, na exploração de tudo e todos. Gente que humilhou e ofendeu povos mundo fora.
Talvez Colonialismo e Descolonização não tenham aqui lugar. Só que existiu e existe. Talvez racismo não tenham aqui lugar só que existiu e existe. È de ambos os lados? É!

Ai Camarada onde vou encaixar isto? Serei breve...

Um abraço para ti, outros para homens e mulheres deste blogue. Felizmente a terem forma diversa de pensar e, com essas diferenças se encontrará a verdade, se transmitirá, de forma despretensiosa a passagem pela Guiné.

Abraços do, Torcato

Anónimo disse...

José Brás,

omo já sabes quase tudo o que penso, como retornado, sobre a colonização que nunca devia existir, mas que tambem a descolonização (não só a portuguesa)foi em geral toda mal feita, quero deixar aqui uma observação tipo piada que ouvi recentemente:

"Se foi o Salazar que montou a máquina de guerra do ultramar, porque é que os capitães de Abril não fizeram a revolução, quando o botas caíu da cadeira? 1968."

Resposta:" É que nessa data ainda eram apenas alferes e não capitães".

Alferes de Abril talvez não ficasse tão bem.

José Bras, explicar não é difícil, difícil é as pessoas compreenderem porque foi tudo tão mau. Não é só na Guiné e em Portugal que os jovens se questionam. Porquê?

Na França já se pergunta: Burka? Porquê?

A Espanha, já há muitos anos paga indemnizções ao governo da guiné para aceitar devoluções de guineenses.

Abraço,

Antº Rosinha