domingo, 31 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5735: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (21): E agora?

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caríssimos Editores
Parou a chuva e veio o frio. Tempo de inverno.
Estava a ler o Expresso, vício de sabado, só que estava enfadonho, aborrecido, reportagens e artigos de opinião confusos e chatos. Sempre o mesmo e não saem disto!

Voltei ao Blog e lembrei-me deste escrito de tempos de confusão. Teclei. E agora? Mando ou não? Ontem foi um em crise de momento. E Agora? Vai! Aí vai então a difícil adaptação... em "português suave"...

Abraços do Torcato


E AGORA?

O carro, um 2 Cv cinzento e velho, rolava, em esforço, estrada acima.

Eu, sem carta de condução, tentava vencer aqueles três ou quatro quilómetros até um cruzamento com estrada secundária.

Dois meses antes, nem tanto, ainda estava na Guiné. Agora, cá estava tentando a difícil adaptação à vida civil, à minha verdadeira vida, interrompida por breves anos plenos de fortes vivências. Anos de mudança, de formação de um outro eu. Seria isso possível? Teria havido essa metamorfose? Ainda hoje, tantos anos depois, não sei. Sabia, nesses tempos de regresso a necessidade de encontrar o outro eu. Estava longe, em parte esquecido e maltratado. Seria possível recuperá-lo? Certamente que sim, mesmo retocado iria aparecer.

Difícil. Sentia ser difícil.

Entretinha-me calmamente a passar o tempo; tirava a carta de condução, passeava ou vagueava por uns dias e voltava mais leve, mais próximo de “eu” de outrora. De quando em vez, talvez vezes demais, deixava-me embalar docemente nos vapores do álcool. Suavizava um pouco em ilusão e, quantas vezes não acabavam em confusão.

Pensava, pensava e não encontrava resposta convincente:

- Que vais fazer agora? Recomeçar os estudos, voltar para a vida militar, encontrar ou aceitar algum dos empregos que me iam prometendo?

O melhor era esperar, somente esperar e ordenar ideias. Estava confuso, com falta de poder de concentração, parte de mim ainda não regressara. Confuso!

Um exemplo, como se fossem necessários, foi um torneio de xadrez. Inscreveram-me e ainda fiz duas ou três partidas. Não conseguia e desisti. Olhavam-me com espanto e pensavam estar em presença de outra pessoa. Não, não estavam. Não conseguia concentrar-me.

Quase sem dar por isso aí estava o cruzamento da estrada secundária. Fui por ali fora, por aqueles quilómetros de rectas, por paisagens conhecidas e revisitadas sempre com alegria. Observava tudo, cantarolava e o vento frio batia-me no rosto depois de entrar pelos buracos daquela “caranguejola”. Podiam ter-me emprestado melhor objecto.

Assim dava-me tempo de ir saboreando a paisagem, as mudanças provocadas pelo regadio, os pinheiros mansos e os estúpidos eucaliptos, tudo numa charneca onde o gado já aparecia. Só que o frio entrava e arrefecia. O frasco de bolso com a “1920” ajudava dele tirando dois ou três goles.

Ronceiro o 2 CV lá ia estrada fora, novo cruzamento, umas curvas suaves e aí estava a povoação e o mar logo a seguir.

Parei no parque e deliciei-me a ver aquela imensidão de mar, tanto mar e que saudade tinha tido dele, estava no meu sangue.

Sempre que necessitava de repousar, pensar para decisão, relaxar simplesmente ali me sentia mais seguro e reconfortado ou protegido. Ainda hoje e dele vivo longe.

Ali estava ele estendido até ao infinito do momento e trazia-me a paz a pensar, ajuda na decisão mas não a resposta à angústia do momento:

- Agora que vais fazer?

Não obtinha resposta e o mar, calmo ou tormentoso, só ia e vinha estendendo-se preguiçosamente na areia ou batendo mais forte nalguma rocha negra e xistosa.

Apareceu um casal de namorados a ver a paisagem. Acenaram e fiz o mesmo. Pus o carro a trabalhar e voltei. Deixava a paisagem só para eles.

No regresso pensei em confusão e, porque não, em revolta no comportamento da maioria das pessoas sobre a guerra no Ultramar. Se tinham familiar lá preocupavam-se. Caso contrário alheavam-se, ou, pior ainda, diziam barbaridades. Estão lá para os militares ganharem dinheiro, não acabam com a guerra porque não querem e outros comentários.

Por vezes perguntavam onde eu tinha estado. Guiné; respondia.

Não se atreviam a dizer coitado. O comentário geralmente era: Azar, se ainda fosse Angola ou Moçambique. Geralmente não respondia, a cara, o sorriso amarelo ou o olhar tudo diziam. Vivíamos em ditadura, tínhamos falta de informação mas, esse desinteresse não justificava tudo. Hoje, dizem que vivemos em democracia e não devia ser diferente a atitude.

E Agora?

Esperava, ia outra vez a Lisboa? Voltava sempre ao mesmo. Só que Lisboa tinha tanto para ver, tanto para recuperar do tempo perdido. Enfim.

Esperava, ia tratando de assuntos pendentes e tentava encontrar o caminho a seguir. Adaptar-me com calma e recuperar o tempo roubado, procurando não ser boémio mas ir vivendo…calmamente.

E tu Camarada não foi difícil a tua adaptação à vida civil, à tua verdadeira vida?

Não? Então felicito-te.

Desculpa, percebi mal. Foi difícil, foi aos poucos. Então compreendes o que comigo aconteceu. Juventudes interrompidas ou roubadas.

Pergunto ainda: dormias bem, tentavas esquecer e conseguias ou, ou de quando em vez, sentias estar lá?

O tempo foi esbatendo, apagando cada vez mais. Até certamente pensaste, como eu – a guerra acabou para mim. Quando sentias situação de perigo, te diziam frase menos correcta e não só; - diz lá camarada, diz a ti, sentias como eu e voltavas lá. Pois!

Vai connosco, vai connosco vida fora e, para despertar basta o toque do clarim e estamos lá. Contudo algo ficou, algo só nosso, algo que só nós compreendemos e a nós diz respeito e perdurará até ao fim: a camaradagem, a amizade e solidariedade.

Nem tudo foi mau ou tempo perdido.

TM
__________

Notas de CV:

(*) Ver postes de:

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5697: Controvérsias (62): Colonizar versus descolonizar (Torcato Mendonça)

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)

11 comentários:

Anónimo disse...

Como sempre....valeu a pena ler! Um grande abraco.

Juvenal Amado disse...

Meu caro Torcato

Eu regressei num momento histórico diferente do teu.
Quando ainda estava a encher os pulmões de ar fresco e os olhos de verdura cheirosa, vejo-me num furacão de paixões onde por muito tempo me esqueci até de mim.
Mais tarde devagarinho os momentos bem e mal passados, voltaram sem bater à porta.
Também sonhei que estava lá.
Detestei durante muito tempo os foguetes das festas tradicionais.
Não estiveste sozinho nos sonhos que povoaram o teu subconsciente.

É assim o passado de tempos a tempos volta e como o José Belo escreveu.... Valeu a pena ler

Um abraço

Juvenal Amado

Um abraço

Anónimo disse...

Caro Torcato,

Dizes as coisas que julgo todos termos entido, uns mais que outros ou pelo menos de forma diferente, mas resume-se ao mesmo. Gentes, barulho, desinteresse mas interessados...

Estou de acordo com o juvenal, não mais achei piada aos foguetes...

Um abraço
Belarmino Sardinha

Anónimo disse...

Caro Torcato`
É evidente que deve ter sido assim com todos que por lá passaram.
Os sonos muitas vezes agitados e povoados de pesadelos. As reacções aos foguetes e outros ruídos semelhantes...as conversas indiferentes e até inconvenientes, tudo bem verdade.
O ter de retomar o emprego e ter de recuperar a "decalage" dos colegas que tinham ficado, para não ficar para trás ou mesmo ser ultrapassado por mais novos...
por isso o esforço para esquecer e o não desabafar, até pela tal incompreensão dos outros.

Um abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Caro camarada Torcato.

Li e gostei, eu regressei em tempos de euforia colectiva, mas vinha muito azedo com as formas com que se revestiu a despedida ainda na memória.

Depois foi o recomeçar lentamente, de forma algo solitária, ninguém compreendia….

Ainda hoje passados todos estes anos, é o que se vê.

Será que alguém além dos combatentes, se interessa por perceber?

Já agora, as portas batem e eu estremeço, odeio o barulho, prezo o silêncio

Um grande abraço

Manuel Marinho.

Luís Graça disse...

Torcato, José, Mendonça:

Não sei quem foi para a Guiné (o Torcato, o José, o Mendonça ? ), nem sei quem voltou (o Mendonça, o José, o Torcato ?)... Olha, eu deixei lá o Henriques... Acho que o matei... Mas não sei se ficou bem morto...

De qualquer modo, meu amigo e camarada, também eu levei no mínimo 3 a 5 anos, a "fazer o luto", o "coping", a "readaptação"...

Só voltei a estudar, quando vim para Lisboa, em 1975, e a carta de condução só a tirei aos 40 (!)... (Tive diversos acidentes, nas picadas da Guiné, com viaturas, um mina A/C brutal em Nhabijões, outra perto de Mansambo, eu ia na 3ª viatura, num Unimog 404, não a pisei por um triz, rebentou na GMC que ia atrás, em 4º lugar, carregada com várias toneladas de sacos de arroz!... Mais uma vez, fui um sortudo!).

No mínimo, a guerra (que eu comecei a viver desde os meus 14 anos!...), levou-me 1/5 da minha vida (o antes, o durante e o depois)... É uma factura pesada... A adaptação à vida civil foi difícil, como a tua, como a de todos os nós...

Sabes como eu aprecio o teu registo intimista... Tens de continuar a escrever... É mais mentalmente saudável do que ler o "Espesso"... (Eu agora só leio os títulos de caixa alta!).

Um Alfa Bravo. Luís

Anónimo disse...

Concordo com o melhor comentário "na minha opinião" Como sempre...valeu a pena ler!
Filomena

Torcato Mendonca disse...

Vim ler o Blogue. Li os comentários ao meu escrito.
Meu Amigo e Camarada Luís Graça:
Para meu descanso ficou lá o Da Silva ou, não ficou esse e todos os outros regressaram "empalamados". Até, lembras-te quando te "conheci"? Por causa do C. M. S. e do Malan Mané?- A guerra acabou para mim...tanto tempo. No Blogue tocaram o clarim. Por cá fiquei até hoje...não me arrependo e conheci gente, não, Camaradas e Amigos que merecem o meu respeito e toda a amizade.Era uma breve nota. Sabes como eu sou...mas as minhas guerras, as minhas guerras e este feitio "palrrador". Tens aí 2 e mais 5 escritos meus.Queria ter tempo para escrever,ler e paz.
Ainda: em cima dessa GMC ia pelo menos um africano, três toneladas de arroz, foi pertinho de Mansambo e nós juntos no "mesmo barco" e não nos conhecíamos. Guerras...vidas...
Abraço para ti e para todos do T

Hélder Valério disse...

Caro Torcato

Já foi dito e redito que um dos muitos traços comuns a todos quantos de nós demandaram terras de África em 'cumprimento do dever' é essa espécie de auto-silenciamento, essa interiorização de sentimentos, aqui e ali manifestados, conforme as situações vividas e as particulares sensibilidades de cada um, por medos, angústias, azedumes.
Isto para não referir os traumas daqueles que sofreram na pele as contingências de se estar no sítio X no momento Y.

Essa opção pelos silêncios, pela reflexão em locais onde a procura do EU exige a observação de largos horizontes, em contacto com a pujança da Natureza, seja num promontório olhando a vastidão do mar seja no alto duma serra contemplando o horizonte e a força que da Terra brota, essa busca de sentido não foi só tua...

Também disse, para mim, 'a Guiné acabou', vou esquecer tudo... como se isso fosse possível!

Durante muito tempo, de vez em quando, dava por mim a interrogar-me 'como estará aquilo? ainda gostava de lá voltar...' mas a verdade, verdade, é que falar daqueles tempos nem com a família!
Para quê? Como podiam compreender?
Quando às vezes me questionavam 'então como foi aquilo?' eu invariavelmente cortava a conversa como um seco 'já passou!'

Se calhar também estas atitudes contribuiram para esta espécie de alheamento a que, como colectivo, temos estado remetidos. Pelo menos até, através de Blogue e não só, termos começado a desatar os nossos nós.

Ainda há esperança!

Um abraço e continua a escrever, quer dizer, 'a reflectir em voz alta'.
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Torcato,

Não sei o que lá ficou?... Mentira! Sei... e muito bem. O furriel Mamadu o chefe dos "Vagabundos".

Os problemas não diferem muito.

Regressei!

Primeiro troquei o quarto, que partilhava com o velhote meu avô, que continuava já quase no seu nonagégimo a tratarme por (doce companheiro).Mas... quem sofreu mais foi Francisca!

Espreitando a porta do quardo com a angustiante dúvida... acordo? Não acordo?... O melhor que fizesse dentro do seu coração, era sempre mal tratado e mal feito, por aquela extranha criatura tão diferente de seu filho, quão diferente do menino que partira.

Foram muito duros aqueles dois meses para a paciente mãe Francisca, interrogando-se ao seu Deus se seria aquele o seu filho?

Venceu! Ajudou muito. Porque o "Pedro Domeque" e as "ninhas" não resolviam a questão, antes pelo contrário afundavam.

Todos ou quase todos, passámos pelo mesmo.

Felizmente que houve muitas Franciscas neste pequenino jardim,
que souberam tratar das suas plantinhas atrufiadas pela guerra.

Obrigado amigo! De tempos maus, recordaste-me as coisas boas e belas, que me devolveram muito do que era e do que sou.

O velho abraço do tamanho da Planície com o Cumbijã.

Mário Fitas

Joaquim Mexia Alves disse...

Pleno de sentimento e verdade!

Tão dificil a adaptação que aceitei de braços abertos voltar a África para trabalhar em Angola.

Precisava daquele calor, daquela terra, para me ir adaptando e sair dela devagarinho.

Tinha sido muito rápida a saída da Guiné!


Um dia conto!

Abraço camarigo para ti Torcato e para todos