quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5763: Notas de leitura (62): Salgueiro Maia (1): Crónica dos Feitos por Guidage (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
O Vasco Lourenço tinha razão quando me disse que estes textos do Salgueiro Maia são inigualáveis.
São mesmo, o que mais aprecio é a capacidade de ter agido com tanta dor contida, fazendo bem tanto quanto possível, de acordo com o tumulto das circunstâncias.
Não dá para perceber como estes textos não são dados às crianças que vão crescer a ignorar a guerra que fizemos.

Um abraço do
Mário


Salgueiro Maia: Crónica dos feitos por Guidage

Beja Santos

É provável que existam textos ainda mais apocalípticos, brutais e crus do que estes. Pessoalmente, não conheço nada mais violento sobre a guerra, a morte estúpida, a dor incompreensível, a dignidade humana no grau zero, do que o testemunho que Salgueiro Maia nos deixou nos textos que intitulou “Crónica dos feitos por Guidage”. É na secção “depoimentos” que faz parte do livro “Capitão de Abril, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril”, de Salgueiro Maia (Editorial Notícias, 1994). Estamos em Maio de 1973, a comissão militar da companhia de Salgueiro Maia está praticamente no fim. Naquele dia 5 de Maio notou-se uma azáfama anormal de meios aéreos; depois um forte tiroteio, pede-se apoio aéreo, da artilharia, evacuações. Tudo aquilo partia de um destacamento onde Salgueiro Maia tinha um pelotão. Sem hesitar, o capitão avança para o destacamento. Aí, há notícia de um novo contacto com as forças do PAIGC, as nossas tropas tiveram seis mortos, há feridos graves, material abandonado, sobreviventes à deriva. Novo contacto, mais um morto e três feridos graves. Os nossos soldados permanecem no terreno, pedem auxílio. O comandante do batalhão manda avançar uma companhia em reserva para acudir aos camaradas, a companhia recusa-se a avançar. Salgueiro Maia parte em seu auxílio:

“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir uma direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível. Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham um ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não.

Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta, estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel enfermeiro e um cabo maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto por que é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. Começo a sentir raiva”.

O dia tomba, é impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, os feridos são depositados nas caixas dos Unimogs. O PAIGC volta a atacar, desta vez com foguetões de 122 mm. O ferido da perna morre. Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque, em 60 homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros socorros: fazer um garrote”.

É desolação a toda a volta, enquanto se forma a coluna para regressar a Bissau, Salgueiro Maia dá consigo a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, com aspecto de quem não compreende nada do que aconteceu. E escreve: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com a água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhes. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pior vem depois. No dia 22 de Maio de 1973, Salgueiro Maia e a sua companhia estão prontos para seguir para o Cumeré, parece que a comissão terminou. Mas não, têm que partir de urgência para o Norte. O PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, a guarnição estava cercada e, aparentemente, isolada. As flagelações do mês de Maio, na zona de Guidage, eram incontáveis. O PAIGC apostara numa operação de grande envergadura: trouxera mísseis terra-ar para dissuadir os meios aéreos; implantara um campo de minas anti-carro e anti-pessoal na estrada Guidage-Binta. A última coluna de reabastecimento fora atacada durante cerca de 24 horas sem interrupção, as NT retiraram abandonando mortos e viaturas, seguiram para Guidage. O comando-chefe reage com a operação Ametista Real. Uma companhia de pára-quedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário, chegam a pé a Guidage depois do destacamento de fuzileiros ter caído num campo de minas e os pára-quedistas terem sofrido uma emboscada. Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e depois, com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, abrir o cerco para Guidage. O relato que ele faz é uma peça espantosa.

Este livro fica a fazer parte do património do blogue. Precisei de ir à Associação 25 de Abril buscar livros para recensão, em conversa com o Vasco Lourenço veio à baila este texto sofridíssimo e de uma camaradagem sem igual. Ofereceu-me o livro, ele deve ficar em boas mãos.

(Continua)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

8 comentários:

Unknown disse...

Salgueiro Maia, provàvelmente o maior e talvez o unico heroi do 25 de Abril.
Paz à sua alma

Anónimo disse...

Caro Mário Beja Santos,

Ouviste o sr. Cor. Vasco Lourenço, está vivo felizmente!

Eu ouvi ouvi o Cor. Carlos da Costa Campos, do CAOP3, infelizmente já não está entre nós.

Tudo isto faz a diferença.

Por isso me calo.

Mário Fitas

Jorge Narciso disse...

Lido o Post, induzido um comentário, clico no espaço próprio e quem está já cá ?
O Jorge Teixeira.

Coincidencia ou não, o motivo desta minha intervenção é fazer um contraponto a outra que uma foto sua me suscitou e que foi:

...Há imagens que nem mil palavras conseguem descrever tudo o que ela pode encerrar...

É que agora venho aqui para, relativamente a um asunto diverso afirmar o inverso.
Passo a explicar:
Depois de lida a introdução do Mário, que duma forma diria perfeita interpreta as palavras do autor do texto que analisa:

...É provável que existam textos ainda mais apocalípticos, brutais e crus do que estes. Pessoalmente, não conheço nada mais violento sobre a guerra, a morte estúpida, a dor incompreensível, a dignidade humana no grau zero, do que o testemunho que Salgueiro Maia nos deixou...

Afirmo então, que de facto nem mil imagens conseguiriam reproduzir a intensidade e amplitude que ele (Salgueiro Maia) conseguiu encerrar na "meia dúzis" de palavras deste seu espantoso relato.

E não estou a por-me em bicos de pés, digo-o com a "autoridade" que me concede o desempenho duma das infaustas tarefas que me foram "cometidas" naquela guerra (perdoe-se-me também a crueza):
TRANSPORTADOR DE "CARNE" QUE OS CANHÕES "ABOCANHARAM"

Evidencia ainda o seu texto, não ter sido por mero acaso que Salgueiro Mais e tantos outros, fazendo embora a guerra o melhor que souberam e puderam, recolheram nas suas genese e realidade os anti-corpos com que acabaram por determinar o fim da mesma.

Um abraço

Jorge Narciso

paulo santiago disse...

Camarada Mário Fitas

Fiquei com duas dúvidas ao ler o teu comentário
1ª o Cor. Costa Campos também esteve em Guidaje,em Maio de 73?
Faço a pergunta,porque,até agora,
apenas ouvira falar do Cor.Correia de Campos.
2ª era CAOP 3, ou COP 3 ?

Sei que os dois Coronéis Campos,o Costa e o Correia,eram do melhor que havia no Exército,um Infante e
um Cavaleiro,não sei desse pormenor
de ambos terem estado na batalha de
Guidaje.

Um abraço de Águeda até ao Estoril

P.Santiago

Anónimo disse...

Caro Paulo,

Só uma confirmação.

Julgo terem estado os dois.

O de Cavalaria por conhecimento aqui no Bolg. O de Infantaria comandou sete anos antes a minha C.CAÇ. 763 em Cufar. Este Costa Campos acompanhei nos ultimos anos e meses da sua vida.Por ordem do Spinola saiu da Amura para substituir o malogrado major Mariz no comando,do CAOP ou COP e agora sinceramente pôes-me também uma dúvida, pois não sei dizer se era CAOP se COP. Mas que esteve lá esteve.

O Costa Campos dos "cães" como era conhecido, já cá não está, mas pelo que conheci do homem e militar, possivelmente se cá estivesse, até era homem para estar aqui na Tabanca escrevendo sobre a Guiné, (o que ele fez sendo pena não estar editado).



O velho abraço, do Estoril até Águeda, acrescentando também o tamanho do lindo Cumbijã,

Mário Fitas

José Marcelino Martins disse...

Info resumida:

COP 3
Inicio em 26Ago68 # Termo 21Jul74

Comandantes;
Maj Cav Correia de Campos
Cap Ten Alpoim Calvão
Maj Cav Sequeira Marcelino
Maj Inf Chorão Vinhas
Maj Inf Alves Martins
TCor Cav Correia de Campos
Maj Inf Correia de Campos
TCor Art Esteves Virtuoso
Cap Inf Castro Rodrigues

Abraço

José Martins

José Marcelino Martins disse...

Corrijo comentário anterior:


Info resumida:

COP 3
Inicio em 26Ago68 # Termo 21Jul74

Comandantes;
Maj Cav Correia de Campos
Cap Ten Alpoim Calvão
Maj Cav Sequeira Marcelino
Maj Inf Chorão Vinhas
Maj Inf Alves Martins
TCor Cav Correia de Campos
Maj Inf Costa Campos
TCor Art Esteves Virtuoso
Cap Inf Castro Rodrigues

Abraço

José Martins

Anónimo disse...

Informação referente ao sr. Maj.de
Inf. Alves Martins.

De seu nome: Frederico Mariz Alves Martins.

Ver P5300 Assédio a Guidage de José Manuel Pechorro.

Um abraço,

Mário Fitas