1. Mensagem de Manuel Moreira* (ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69), com data de 29 de Janeiro de 2011:
Vou tentar explicar a passagem da CART 1746 pela Ponta do Inglês*.
A Companhia saiu de Bissorã no dia 07 de Janeiro de 1968 para Bissau a fim de ser colocada no XIME.
Esteve nos Adidos até dia 10, dia em que embarcou no "BOR ", rio Geba acima até ao XIME, excepto o 4.º GComb, do qual eu fazia parte, sob o comando do ex-Alf Mil Gilberto Madaíl, que seguiu numa LDM directamente para a Ponta do Inglês onde fomos render um GComb da CCAÇ 1550 que estava em fim de Comissão.
Foi muito MAU pois passados poucos dias começou a faltar os alimentos que tinham sobrado do dito GComb ao ponto de ficarmos sem nada para comer e beber. A Ponta do Inglês só era abastecida por rio porque por terra era impossível e demorou MUUUUITO tempo.
O Alf Mil Madaíl, sabendo da minha "veia poética", sugeriu-me a fazer uma canção à fome que estávamos a passar e nessa mesma noite (28 Janeiro 1968) saiu a "Canção da Fome" que me fez passar maus bocados, politicamente, como devem calcular !!!!!!!!!!!!
Faziam-se patrulhas diárias às imediações e itinerários que serviam o Destacamento, recolha de água de um poço "democrático" pois, de manhã era nosso e de tarde era do IN, portanto, sem hipótese de contaminação.
Como eu era Mecânico não saía nas patrulhas, ia apenas buscar água ao poço com o Unimog, daí não saber nada sobre a história da Ponta do Inglês, não sou a pessoa indicada mas talvez o Capitão Vaz, algum dos Alferes ou Furriéis que por lá passaram o possam fazer.
Fomos flagelados diversas vezes com armas ligeiras e pesadas mas sem consequências de maior, graças à nossa experiência e valentia e da Secção do Pelotão de Morteiros 1192 que estava connosco.
Talvez devido às péssimas condições de habitabilidade e impossível acesso por terra, provocando assim o isolamento total com a Companhia, se tenha pensado em terminar com o Destacamento da Ponta do Inglês e assim sendo, deu-se início à evacuação no dia 07 de Outubro de 1968 sendo destruído o Destacamento no dia 09 de Outubro de 1968. É o que me ocorre .
Seguem algumas quadras da época e que fazem parte do meu "Diário de Guerra".
221
Companhia dividida
Quando chegámos ao dia dez
Fui com o 4.º Pelotão
Para a Ponta do Inglês
222
Companhia foi p´ró XIME
Que é Sector de Bambadinca
Ficámos todos a saber
Que nesta Zona ninguém brinca
224
Crocodilos em descanço
Com a cabeça no ar
Todos muito alinhados
Para nos ver passar
225
Deixámos o Geba
P´ró Corubal virou-se o leme
Na Ponta do Inglês
Nos largou a LDM
229
Da farinha que nos deixaram
Pouco Pão comemos dela
Tinha tantos, tantos bichos
Que se tornou amarela
230
Dava nojo, vos garanto
Olhar p´ró pão metia medo
Aproveitava-se tanto
Como a cabeça de um dedo
232
Foi na Ponta do Inglês
Que ficou célebre o meu nome
Quando tive que fazer
Uma canção à fome
São algumas das 326 que fazem o meu Diário
Um Abraço a toda a Tabanca e em especial aos meus Camaradas da CART 1746 e do Pelotão de Morteiros 1192.
Manuel Moreira
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7642: Memória dos lugares (122): Ponta do Inglês e Gã Garneis, dois destacamentos, com tristes recordações, no subsector do Xime (Beja Santos / Manuel Bastos Soares / Manuel Moreira / José Nunes)
Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7691: Memória dos lugares (128): Foto da Antiga Administração de Gabú (ex-Nova Lamego) (Virgínio Briote/Rui Fernandes)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7699: Notas de leitura (196): Lobo... dos Mares, de Joaquim Cortes (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Felizmente que há confrades que ouvem as minhas súplicas, quando aqui escrevo a rogar que me emprestem edições de autor ou outras para que o blogue se possa orgulhar de ter o maior manancial de informações sobre obras publicadas referentes à guerra da Guiné.
Há páginas neste livrinho de uma grande crueza, diria que não poderemos no futuro prescindir de descrições tao brutais sobre as técnicas e a linguagem que se usava na instrução. O que me sensibilizou mais foi este acto de amizade, alguém que não esqueceu o Lobo dos Mares.
Um abraço do
Mário
Lobo dos mares:
Uma história comovente da amizade do Joaquim com o Manuel
Beja Santos
“Lobo… dos Mares” é uma edição de autor assinada por Joaquim Cortes e dedicada ao seu amigo e conterrâneo Manuel Sebastião Guerreiro, um fuzileiro que morreu num acidente no rio Cacine. O Manuel Sebastião Guerreiro desaparecera e a família continuava a ignorar as circunstâncias da sua morte. Para Joaquim Cortes, este livro é uma obra romanceada, onde parte da narrativa é baseada em factos reais mas em que factos, pessoas e situações são apenas ficção. Lê-se o texto de uma ponta à outra e pergunta-se: Será mesmo ficção?
É uma narrativa singela o que temos em mãos: o nascimento em Algodôr, concelho de Mértola, do Manuel, em 1947, ambiente mais humilde não se pode imaginar, com parteira improvisada, cama de ferro e colchão de palha. Os pais são António e Adelaide, existe já um irmão pequenito, de nome José. À espreita de melhores oportunidades, António e família deixam O monte e vão viver na Venda dos Salgueiros. Manuel tem mais 6 irmãos. A vida é tão difícil que em 1965, Manuel, pela mão do seu amigo Joaquim deixa o monte onde vive no Alentejo e vai viver em Cascais, o seu trabalho é o de empregado de balcão. Resta uma fotografia dos adolescentes em Cascais, na loja do Sr. Esteves. É emprego de pouca dura, Manuel vai juntar-se à família que entretanto emigrara para o Samouco. O autor dá-nos um retrato da vida nesta localidade do seu amigo, revela-nos o seu modo de vida e as suas ambições. Aos 21 anos, o Manuel alista-se como voluntário no corpo de fuzileiros, assenta praça em Vale de Zebro em 1968, frequenta depois a Escola de Fuzileiros, irá fazer parte da Companhia de Fuzileiros n.º 10. Em Fevereiro de 1969 parte para a Guiné, ofereceu-se para substituir um camarada que aguardava o nascimento do filho.
A descrição deste período de instrução é um texto inesquecível. Toda a brutalidade e todo o jargão mais alvar da caserna aparecem explícitos, do tipo: “Não há barulhos, seus filhos de uma punheta mal batida. Estão na Escola de Fuzileiros e não na escola primária lá da aldeia. Lá é que os meninos podem ladrar à vontade!”. Mais adiante: “Estás a olhar para mim? Não gosto de cú com cabelo, ficam já a saber! Quando se está em sentido, a cabeça está bem levantada e olha-se para a frente, minhas Amélias! Para que não esqueçam o que vos disse, ficam nessa posição até que eu vá cagar!” Estes são alguns dos mimos do sargento Rato que imprecando, com fúria e autoridade: “À minha ordem, vai toda a gente a correr até àquela lagoa lá ao fundo, cumprindo as minhas instruções. Partiu! Deitou! Rastejou! Continua toda a gente a rastejar! A arma não pode tocar no chão! Não tratem mal a vossa namorada, seus copos de leite!”. São descrições cruas, é impossível fantasiar o que se escreve, o Joaquim ou ouviu do Manuel estes episódios ou deu com o lombo em Vale de Zebro, não há imaginação que consiga captar uma linguagem tão violenta com aquela que era possível usar-se nestes centros de instrução.
Temos depois a partida para a Guiné, o desespero dos pais que já tinham o José em Moçambique. Segue-se a transcrição de alguns aerogramas, fica-se a saber que andou em instrução no Geba e no Corubal e que depois foi colocado em Gadamael e Cacine, a partir de Junho de 1969. É no batelão “Marito” que vai ocorrer a tragédia em que morre Manuel Sebastião Guerreiro e outros fuzileiros. A lancha “Alfange” trazia material de guerra para a região, o batelão aproxima-se da Alfange e começa a operação descarregamento. O Manuel entra num escaler, com mais outros quatro fuzileiros, é nisto que sopra um vento forte, aparecem grandes vagas, o bote atraca ao Alfange e a seguir regressa ao batelão. Mas uma grande vaga faz virar o bote, ninguém leva colete de salvação, está consumada a tragédia, só irá aparecer mais tarde um cadáver. No livrinho juntam-se os diferentes documentos oficiais, a correspondência trocada, as diligências efectuadas pelo autor para apurar a clara certidão da verdade, onde e como desaparecera esse Manuel que era conhecido entre os grumetes fuzileiros como o Lobo dos Mares. Insiste-se que é uma história singela, contada com a ternura de quem foi espoliado de uma amizade e para seu consolo investiga um trágico desaparecimento até chegar à versão plausível. É tocante, que o Lobo dos Mares fique a fazer parte do nosso acervo de testemunhos genuínos e fraternos.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7696: Notas de leitura (195): A Guerra de África, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Felizmente que há confrades que ouvem as minhas súplicas, quando aqui escrevo a rogar que me emprestem edições de autor ou outras para que o blogue se possa orgulhar de ter o maior manancial de informações sobre obras publicadas referentes à guerra da Guiné.
Há páginas neste livrinho de uma grande crueza, diria que não poderemos no futuro prescindir de descrições tao brutais sobre as técnicas e a linguagem que se usava na instrução. O que me sensibilizou mais foi este acto de amizade, alguém que não esqueceu o Lobo dos Mares.
Um abraço do
Mário
Lobo dos mares:
Uma história comovente da amizade do Joaquim com o Manuel
Beja Santos
“Lobo… dos Mares” é uma edição de autor assinada por Joaquim Cortes e dedicada ao seu amigo e conterrâneo Manuel Sebastião Guerreiro, um fuzileiro que morreu num acidente no rio Cacine. O Manuel Sebastião Guerreiro desaparecera e a família continuava a ignorar as circunstâncias da sua morte. Para Joaquim Cortes, este livro é uma obra romanceada, onde parte da narrativa é baseada em factos reais mas em que factos, pessoas e situações são apenas ficção. Lê-se o texto de uma ponta à outra e pergunta-se: Será mesmo ficção?
É uma narrativa singela o que temos em mãos: o nascimento em Algodôr, concelho de Mértola, do Manuel, em 1947, ambiente mais humilde não se pode imaginar, com parteira improvisada, cama de ferro e colchão de palha. Os pais são António e Adelaide, existe já um irmão pequenito, de nome José. À espreita de melhores oportunidades, António e família deixam O monte e vão viver na Venda dos Salgueiros. Manuel tem mais 6 irmãos. A vida é tão difícil que em 1965, Manuel, pela mão do seu amigo Joaquim deixa o monte onde vive no Alentejo e vai viver em Cascais, o seu trabalho é o de empregado de balcão. Resta uma fotografia dos adolescentes em Cascais, na loja do Sr. Esteves. É emprego de pouca dura, Manuel vai juntar-se à família que entretanto emigrara para o Samouco. O autor dá-nos um retrato da vida nesta localidade do seu amigo, revela-nos o seu modo de vida e as suas ambições. Aos 21 anos, o Manuel alista-se como voluntário no corpo de fuzileiros, assenta praça em Vale de Zebro em 1968, frequenta depois a Escola de Fuzileiros, irá fazer parte da Companhia de Fuzileiros n.º 10. Em Fevereiro de 1969 parte para a Guiné, ofereceu-se para substituir um camarada que aguardava o nascimento do filho.
A descrição deste período de instrução é um texto inesquecível. Toda a brutalidade e todo o jargão mais alvar da caserna aparecem explícitos, do tipo: “Não há barulhos, seus filhos de uma punheta mal batida. Estão na Escola de Fuzileiros e não na escola primária lá da aldeia. Lá é que os meninos podem ladrar à vontade!”. Mais adiante: “Estás a olhar para mim? Não gosto de cú com cabelo, ficam já a saber! Quando se está em sentido, a cabeça está bem levantada e olha-se para a frente, minhas Amélias! Para que não esqueçam o que vos disse, ficam nessa posição até que eu vá cagar!” Estes são alguns dos mimos do sargento Rato que imprecando, com fúria e autoridade: “À minha ordem, vai toda a gente a correr até àquela lagoa lá ao fundo, cumprindo as minhas instruções. Partiu! Deitou! Rastejou! Continua toda a gente a rastejar! A arma não pode tocar no chão! Não tratem mal a vossa namorada, seus copos de leite!”. São descrições cruas, é impossível fantasiar o que se escreve, o Joaquim ou ouviu do Manuel estes episódios ou deu com o lombo em Vale de Zebro, não há imaginação que consiga captar uma linguagem tão violenta com aquela que era possível usar-se nestes centros de instrução.
Temos depois a partida para a Guiné, o desespero dos pais que já tinham o José em Moçambique. Segue-se a transcrição de alguns aerogramas, fica-se a saber que andou em instrução no Geba e no Corubal e que depois foi colocado em Gadamael e Cacine, a partir de Junho de 1969. É no batelão “Marito” que vai ocorrer a tragédia em que morre Manuel Sebastião Guerreiro e outros fuzileiros. A lancha “Alfange” trazia material de guerra para a região, o batelão aproxima-se da Alfange e começa a operação descarregamento. O Manuel entra num escaler, com mais outros quatro fuzileiros, é nisto que sopra um vento forte, aparecem grandes vagas, o bote atraca ao Alfange e a seguir regressa ao batelão. Mas uma grande vaga faz virar o bote, ninguém leva colete de salvação, está consumada a tragédia, só irá aparecer mais tarde um cadáver. No livrinho juntam-se os diferentes documentos oficiais, a correspondência trocada, as diligências efectuadas pelo autor para apurar a clara certidão da verdade, onde e como desaparecera esse Manuel que era conhecido entre os grumetes fuzileiros como o Lobo dos Mares. Insiste-se que é uma história singela, contada com a ternura de quem foi espoliado de uma amizade e para seu consolo investiga um trágico desaparecimento até chegar à versão plausível. É tocante, que o Lobo dos Mares fique a fazer parte do nosso acervo de testemunhos genuínos e fraternos.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7696: Notas de leitura (195): A Guerra de África, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P7698: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (52): Na Kontra Ka Kontra: 16.º episódio
1. Décimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
16º EPISÓDIO
Depois de uma pequena sesta o Alferes faz o que o João Sanhá lhe tinha feito no dia da sua chegada: Vai mostrar os recantos da tabanca ao Furriel. Fala-lhe nas sentinelas metidas na mata para os lados de Padada, mostra-lhe o fornilho detrás do poilão, os abrigos e vão à fonte. Pelo caminho o Alferes vai dizendo:
- Nosso Furriel, foi a época seca, passaram uns seis meses sem chover e poucos lugares haverá na Guiné que tenham nesta altura uma nascente de água a correr e com a qualidade que já vai apreciar.
Estavam a chegar ao fim da zona desmatada e iam entrar na zona ensombrada da mata onde se situa a fonte, quando o Furriel pára olhando fixamente para o grupo de mulheres que estavam a lavar roupa. Fica estático. Mudo por instantes, talvez a pensar no que iria dizer ao Alferes.
- Se aquela é a tal Asmau, o meu Alferes tem todo o meu apoio. Ainda sem se mexer continua: Pode crer que nunca vi uma bajuda que se assemelhasse a esta. Sempre pensei não ser possível nesta terra existir uma mulher assim. Que tom de pele. Que olhar. E o sorriso dela. Até o colorido do pano condiz com o tom da sua pele.
- Aí tem a minha Asmau.
- Muita branca lá da metrópole gostaria de ter o corpo desta bajuda. Agora é que o compreendo perfeitamente.
Como, duma maneira geral, as mulheres não falam português o Alferes, com dupla intenção, aproveita para apresentar o novo elemento através da Asmau.
- Asmau, explica às “mulheres grandes” que este camarada é um Furriel que chegou hoje à tabanca.
Asmau falou com as mulheres no seu dialecto, o fula, e logo de seguida o Alferes, como que para continuar a conversa com a sua bajuda, pergunta:
- Asmau, como se diz obrigado em fula?
- Djarama. E muito obrigado, djarama bui.
- Então, Asmau, djarama bui.
Um rasgado sorriso dela perturba o nosso Alferes e até o Furriel. Assim, a título de despedida, Magalhães Faria ainda diz:
- Asmau ainda me hás-de ensinar mais coisas em fula.
Ambos se dirigem à nascente onde o Furriel prova a água. Depois seguem carreiro acima tendo o Furriel parado, aproveitando a sombra de uma árvore, não porque precisasse de descansar pois a distância da fonte à tabanca era de uns duzentos metros. De frente para o Alferes diz-lhe:
- Como já lhe disse, compreendo-o perfeitamente e pelo que já vi quero lhe dizer que se não fosse a guerra não me importava de trazer para aqui a minha mulher e viver neste paraíso para sempre.
- Eu não chegaria a tanto mas que se está muito bem, isso está. O nosso Furriel acabou de chegar mas eu posso-lhe adiantar mais: A pureza e ingenuidade desta gente, contagia uma pessoa. E a maneira simples de viverem, cultivando só aquilo de que precisam… Claro que plantam alguma mancarra para vender e depois poderem comprar roupas e alguns utensílios. As moranças, ou não têm porta ou, se a têm, não tem fechadura. E a inter-ajuda? Existem alguns procedimentos que a nós nos parecem estranhos e até aberrantes como o fanado feminino, mas são os costumes desta gente.
Continuaram a subir, ainda estiveram os dois a olhar para a abertura da passagem para a fonte e chegaram à mesma conclusão: Era necessário torná-la mais segura, de forma a que à noite não fosse possível entrar por ali alguém, tanto mais que era uma zona baixa e sombria.
Retomam a subida, passam a rede de arame farpado e o Alferes num relance vê, ao longe, um qualquer elemento nativo acocorado à porta da sua morança. Achou um pouco estranho mas como já estava a escurecer não reconheceu a pessoa.
Prosseguiram, passando pelo mangueiro onde havia o estrado para o pessoal se sentar à conversa, principalmente à noite. Estava lá o João e conversaram um pouco, tendo este chamado a atenção para uma nuvem negra ao longe. Queria dizer com isso que provavelmente se aproximava um tornado com a consequente chuvada torrencial. Era necessário ir jantar rapidamente para ainda se poder comer à mesa.
No fim do jantar já se tinha levantado o vendaval que precedia o aguaceiro pelo que todos se dirigiram para as suas palhotas. O nosso Alferes ainda tem que correr para se livrar das primeiras pingas. Próximo da sua morança, repara que o vulto do qual já se tinha esquecido, continua à sua porta.
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7687: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (51): Na Kontra Ka Kontra: 15.º episódio
domingo, 30 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7697: O Spínola que eu conheci (23): No serviço de estomatologia, no HM 241, e eu a segurar-lhe o monóculo (Mário Bravo)
Guiné > Bissau > 1972 > A "Casa dos Médicos"...
Guiné > Bissau > 1972 > A Messe de Oficiais...
Guiné > Bissau > 1972 > O "Biafra", o local de instalações dos oficiais recém-chegados...
Fotos: © Mário Bravo (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Bom Dia
Luis Graça
Reatando a descrição da minha estadia na Guiné [, aonde cheguei em 20 Novembro de 1971, tendo ficado cerca de 15 dias em Bissau], lá vão mais umas notícias e informações que poderão servir para encontrar algum camarigo esquecido ou perdido neste País.
Após saída de Bedanda [, onde estive entre Dezembro de 1971 e Março de 1972, com visitas a Guileje, Gadamael e Cacine, ], fui colocado em Bissau, [ no HM 241,] no serviço de Estomatologia (Medicina Dentária), para aprender a tirar dentes, pois era essa a nossa função.
Nesse estágio, que foi orientado por um colega, médico, de Coimbra - Negrão - com o posto de capitão miliciano. O outro colega nesse estágio, também de Coimbra, chama-se João Barata Isaac.
Aproveito para contar um episódio ocorrido com o Marechal Spínola [, na altura general]. Como todos sabemos, o Marechal usava de modo constante um monóculo que era a sua imagem de marca. Um dia teve necessidade de consulta de Estomatologia e lá foi ao Hospital Militar. Era sempre um momento de alguma confusão e eu lá estava a tentar aprender a tirar dentes.
É evidente que quem o tratou foi o Chefe, mas havia necessidade que alguém tomasse conta do monóculo e logo me tocou a mim. É engraçado que senti aquele receio de ser o fiel depositário de tão solene objecto. Mas consegui não o deixar cair !!!
O Hospital Militar de Bissau, era na época um exemplo fantástico de modernidade e eficácia.
Vou enumerar alguns médicos, colegas com quem convivi nesse periodo de tempo e até pode acontecer que algum venha a terreiro.
Começo por recordar com saudade um já falecido, o [Henrique] Bicha Castelo, cirurgião de Lisboa, e que operou o escritor António Lobo Antunes [que lhe dedicou o seu livro O Meu Nome É Legião, 2007].
Na Cirurgia estavam o Dr. Rodrigues Gomes (hoje fazendo parte da Fundação Gulbenkian), bem como o Dr. Calheiros Lobo, do Porto, e também falecido.
Na Ortopedia estava o Dr. Asdrúbal Mendes, do Porto e com quem trabalhei mais tarde nessa área.
Muitos outros conheci, mas já não me recordo dos seus nomes.
Para ilustrar minha passagem por Bissau, junto umas poucas fotos, referidas a essa terra, de luxo, pois aí havia a possibilidade de viver um pouco mais sossegado e com algum conforto, inexistente no mato.
Quem é que não recorda aquelas deliciosas ostras do Café Bento - a chamada 5ª. REP - , bem regadas com umas bazucas !
As fotos vão em separado.
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Nota de L.G.:
Vd. postes anteriores da série >
7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6332: O Spínola que eu conheci (18): O COMCHEFE de visita a Galomaro (António Tavares)
6 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6327: O Spínola que eu conheci (17): A visita de inspecção ao Xitole e às tabancas em autodefesa de Sinchã Madiu, Cambesse e Tangali em 16 de Novembro de 1970 (Benjamim Durães / Jorge Cabral / Luís Graça)
6 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6326: O Spínola que eu conheci (16): A visita de inspecção ao BART 2917 e suas subunidades, Sector L1, Bambadinca, de 16 de Novembro a 19 de Dezembro de 1970 (Benjamim Durães / Jorge Cabral / Luís Graça)
29 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6277: O Spínola que eu conheci (15): Muito obrigado pelas palavras que proferiu em S. Domingos (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)
17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6168: O Spínola que eu conheci (14): Sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho do que eu, o Chefe Militar (Torcato Mendonça)
16 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6164: O Spínola que eu conheci (13): Os ananases que não chegaram à mesa do Palácio do Governador-Geral (Jorge Félix)
15 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6160: O Spínola que eu conheci (12): Missirá, Dezembro de 1970, vésperas de Natal: Quando Sexa, o Caco, ia perdendo o dito... (Jorge Cabral)~
15 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6159: O Spínola que eu conheci (11): Visitas inesperadas... ou o humor do Cá Olho Baldé!
15 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6157: O Spínola que eu conheci (10): A reocupação do Cantanhez, Dez 1972 / Jan 1973 (Carlos Matos Gomes, Cor Comando na Reserva)
14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6152: O Spínola que eu conheci (9): Dia da inauguração da placa toponímica da Av. Marechal António de Spínola (Luís Dias)
13 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6150: O Spínola que eu conheci (8): O Militar que foi meu Comandante-Chefe (Paulo Santiago)
12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6147: O Spínola que eu conheci (7): Spínola na Guiné: Histórias que se contam, Cor Carlos Alexandre de Morais (Mário Beja Santos)
12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6144: O Spínola que eu conheci (6): Depoimentos de Paulo Raposo e Luís Graça
10 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6138: O Spínola que eu conheci (5): Os depoimentos de Joaquim Mexias Alves e José Manuel Matos Diniz
17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4041: O Spínola que eu conheci (4): Mansoa, 17 de Março de 1970, com o Ministro do Ultramar (Jorge Picado)
1 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3953: O Spínola que eu conheci (3): Um homem de carácter (Jorge Félix)
24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3935: O Spínola que eu conheci (2): O artigo da Visão e o meu direito à indignação (Vasco da Gama)
24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3929: O Spínola que eu conheci (1): Antes que me chamem spinolista... (Vasco da Gama)
Guiné 63/74 - P7696: Notas de leitura (195): A Guerra de África, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Sem discutir a importância deste livro no que toca ao acervo dos depoimentos, intriga-me ter-se perdido a oportunidade de actualizar uma história que tem mais de 15 anos, quando toda a gente sabe que se dispõe hoje de muito mais informação e rasgaram-se os olhares sobre a génese, o desenvolvimento e o epílogo da guerra de África. Seja como for, este documento é um dos poucos pilares a que nos podemos agarrar para uma visão de conjunto e, no que toca à Guiné, recolheram-se testemunhos de valor inultrapassável.
Um abraço do
Mário
A guerra de África, por José Freire Antunes:
Edição comemorativa do cinquentenário do início da guerra em Angola
Beja Santos
O Círculo de Leitores acaba de reeditar (a primeira edição ocorreu em 1995), no âmbito do cinquentenário do início da guerra em Angola o primeiro de quatro volumes de “A Guerra de África, 1961 – 1974”, considerado o mais exaustivo levantamento de testemunhos fundamentais de personalidades que tiveram uma acção relevante em Portugal e em África. Neste primeiro volume, o leitor encontra uma sinopse dos treze anos da guerra, detalhando por dia e mês eventos de índole nacional e internacional com impacto nos três teatros de operações. Neste âmbito, e de acordo com o calendário, aparecem estratos de depoimentos ou documentos de inúmeras proveniências, e a partir de 1962 a Guiné aparece regularmente: Tite, logo em 1962, o início da guerrilha, em 1963, a chegada de Schultz em 1964, e por aí adiante. Aparecem vários extractos da documentação classificada como secreta do consolado de Spínola, entre outras curiosidades.
Como o autor se revela fascinado pela história oral, nessa altura ainda na moda, deu voz a diferentes protagonistas com Champalimaud, Savimbi, Caçorino Dias e alguns particularmente interessantes para a guerra da Guiné como os de Bettencourt Rodrigues, Costa Gomes e Ricardo Durão. Recorde-se que no conjunto destes depoimentos apareceram em 1995 revelações polémicas como as de Silva Cunha e Rui Patrício a revelar as conversações secretas com o PAIGC, em Março de 1974 ou as de Almeida Bruno criticando a postura das tropas em quadrícula, afirmando que, regra geral, mal saiam do arame farpado.
É curioso como nenhum dos investigadores da guerra colonial da Guiné desenvolveu ou explicou a estratégia que Costa Gomes pretendia ver aplicada na Guiné, com Bettencourt Rodrigues. Depois de explicar como é que a situação na Guiné era muito má, no final de 1973, não havendo reservas para fazer face a duas acções de grande envergadura, depois de revelar que o PAIGC tinha 40 indivíduos a serem treinados para pilotos na União Soviética, ele declara: “Na minha opinião, todas as forças que lutavam contra a guerrilha tinham uma desvantagem moral e militar extraordinária e deviam recuar da fronteira, pelo menos para uma distância em que não fossem atingidas pelos morteiros. Eu preconizava esta alteração do dispositivo que nos permitiria reunir e ter à disposição do comando forças que pudessem ser empregues em caso de ataque e de uma forma que as tropas preferem: combater não para a sua retaguarda mas para a sua frente”. Um general prestigiado, ainda por cima Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas profere uma declaração destas e passados estes anos todos continuamos sem saber em que consistia a retracção desse dispositivo e nem se especula sobre as suas incidências.
O depoimento de Ricardo Durão tem momentos de grande emotividade, não esconde as suas admirações. Ele termina assim o seu depoimento: “O caso mais heróico que vivi durante a guerra foi na minha segunda comissão. Passou-se com um alferes miliciano e um furriel miliciano, os dois brancos, que comandavam um pelotão de artilharia de negros em Guilege, uma zona ocupada por nós junto à fronteira com a República da Guiné. Era uma zona altamente flagelada, de dia e de noite, pelas forças do PAIGC, e era a capacidade de fogo que se opunha ou que confortava de certo modo o homem da espingarda porque, quando eles atacavam Guilege, muitas vezes atacavam do lado de lá da fronteira e nós também atirávamos para o lado de lá. O alferes era, portanto, uma peça importante ali. Uma noite houve um ataque muito forte e começaram a cair morteiros de grande calibre. Os homens das espingardas estavam metidos em fossos, mas a artilharia estava a descoberto. O furriel verificou que a situação era insustentável e deu ordem ao pelotão para se abrigar. Os soldados largaram as peças e foram abrigar-se. Mas o furriel, quando estava no abrigo, verificou que havia uma peça que continuava a fazer fogo e ficou surpreendido quando viu o alferes sozinho a disparar.
O furriel, por uma questão de camaradagem, saiu do seu buraco e foi ajudar o alferes. Ficaram os dois a manter o fogo com a boca-de-fogo. É evidente que esta foi atingida e morreram os dois. Isto é um exemplo de tudo o que se pode contar em combate. Primeiro, a obrigação perante os seus homens, pois o alferes viu que a missão era impossível e protege-os. Mas depois havia uma missão a cumprir e o sacrificado devia ser ele, porque era o comandante. E ficou. O furriel teve um acto de camaradagem enorme e foi ajudar o seu alferes. Morreram os dois em perfeita consciência do perigo no cumprimento da sua missão”.
Ao sabor da publicação de novos volumes, dar-se-á notícia de outros depoimentos relacionados com a Guiné.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7689: Notas de leitura (194): Ordem Para Matar, de Queba Sambu (1) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Sem discutir a importância deste livro no que toca ao acervo dos depoimentos, intriga-me ter-se perdido a oportunidade de actualizar uma história que tem mais de 15 anos, quando toda a gente sabe que se dispõe hoje de muito mais informação e rasgaram-se os olhares sobre a génese, o desenvolvimento e o epílogo da guerra de África. Seja como for, este documento é um dos poucos pilares a que nos podemos agarrar para uma visão de conjunto e, no que toca à Guiné, recolheram-se testemunhos de valor inultrapassável.
Um abraço do
Mário
A guerra de África, por José Freire Antunes:
Edição comemorativa do cinquentenário do início da guerra em Angola
Beja Santos
O Círculo de Leitores acaba de reeditar (a primeira edição ocorreu em 1995), no âmbito do cinquentenário do início da guerra em Angola o primeiro de quatro volumes de “A Guerra de África, 1961 – 1974”, considerado o mais exaustivo levantamento de testemunhos fundamentais de personalidades que tiveram uma acção relevante em Portugal e em África. Neste primeiro volume, o leitor encontra uma sinopse dos treze anos da guerra, detalhando por dia e mês eventos de índole nacional e internacional com impacto nos três teatros de operações. Neste âmbito, e de acordo com o calendário, aparecem estratos de depoimentos ou documentos de inúmeras proveniências, e a partir de 1962 a Guiné aparece regularmente: Tite, logo em 1962, o início da guerrilha, em 1963, a chegada de Schultz em 1964, e por aí adiante. Aparecem vários extractos da documentação classificada como secreta do consolado de Spínola, entre outras curiosidades.
Como o autor se revela fascinado pela história oral, nessa altura ainda na moda, deu voz a diferentes protagonistas com Champalimaud, Savimbi, Caçorino Dias e alguns particularmente interessantes para a guerra da Guiné como os de Bettencourt Rodrigues, Costa Gomes e Ricardo Durão. Recorde-se que no conjunto destes depoimentos apareceram em 1995 revelações polémicas como as de Silva Cunha e Rui Patrício a revelar as conversações secretas com o PAIGC, em Março de 1974 ou as de Almeida Bruno criticando a postura das tropas em quadrícula, afirmando que, regra geral, mal saiam do arame farpado.
É curioso como nenhum dos investigadores da guerra colonial da Guiné desenvolveu ou explicou a estratégia que Costa Gomes pretendia ver aplicada na Guiné, com Bettencourt Rodrigues. Depois de explicar como é que a situação na Guiné era muito má, no final de 1973, não havendo reservas para fazer face a duas acções de grande envergadura, depois de revelar que o PAIGC tinha 40 indivíduos a serem treinados para pilotos na União Soviética, ele declara: “Na minha opinião, todas as forças que lutavam contra a guerrilha tinham uma desvantagem moral e militar extraordinária e deviam recuar da fronteira, pelo menos para uma distância em que não fossem atingidas pelos morteiros. Eu preconizava esta alteração do dispositivo que nos permitiria reunir e ter à disposição do comando forças que pudessem ser empregues em caso de ataque e de uma forma que as tropas preferem: combater não para a sua retaguarda mas para a sua frente”. Um general prestigiado, ainda por cima Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas profere uma declaração destas e passados estes anos todos continuamos sem saber em que consistia a retracção desse dispositivo e nem se especula sobre as suas incidências.
O depoimento de Ricardo Durão tem momentos de grande emotividade, não esconde as suas admirações. Ele termina assim o seu depoimento: “O caso mais heróico que vivi durante a guerra foi na minha segunda comissão. Passou-se com um alferes miliciano e um furriel miliciano, os dois brancos, que comandavam um pelotão de artilharia de negros em Guilege, uma zona ocupada por nós junto à fronteira com a República da Guiné. Era uma zona altamente flagelada, de dia e de noite, pelas forças do PAIGC, e era a capacidade de fogo que se opunha ou que confortava de certo modo o homem da espingarda porque, quando eles atacavam Guilege, muitas vezes atacavam do lado de lá da fronteira e nós também atirávamos para o lado de lá. O alferes era, portanto, uma peça importante ali. Uma noite houve um ataque muito forte e começaram a cair morteiros de grande calibre. Os homens das espingardas estavam metidos em fossos, mas a artilharia estava a descoberto. O furriel verificou que a situação era insustentável e deu ordem ao pelotão para se abrigar. Os soldados largaram as peças e foram abrigar-se. Mas o furriel, quando estava no abrigo, verificou que havia uma peça que continuava a fazer fogo e ficou surpreendido quando viu o alferes sozinho a disparar.
O furriel, por uma questão de camaradagem, saiu do seu buraco e foi ajudar o alferes. Ficaram os dois a manter o fogo com a boca-de-fogo. É evidente que esta foi atingida e morreram os dois. Isto é um exemplo de tudo o que se pode contar em combate. Primeiro, a obrigação perante os seus homens, pois o alferes viu que a missão era impossível e protege-os. Mas depois havia uma missão a cumprir e o sacrificado devia ser ele, porque era o comandante. E ficou. O furriel teve um acto de camaradagem enorme e foi ajudar o seu alferes. Morreram os dois em perfeita consciência do perigo no cumprimento da sua missão”.
Ao sabor da publicação de novos volumes, dar-se-á notícia de outros depoimentos relacionados com a Guiné.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7689: Notas de leitura (194): Ordem Para Matar, de Queba Sambu (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P7695: Convívios (289): 8.º Encontro da Tabanca do Centro - A Poda (Vítor Junqueira)
1. Mais um belíssimo texto do nosso camarada Vítor Junqueira, a propósito da sua participação no 8º. Encontro da Tabanca do Centro em Monte Real, no passado dia 26 de Janeiro.
Qualquer pretexto serve para uma escrita simples, direta, agradável e percetível, com a marca VJ.
2. Mensagem de Vítor Junqueira (ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), com data de 28 de Janeiro de 2011:
Caros amigos,
Tive o privilégio de ser convidado a participar no 8º encontro da Tabanca do Centro que decorreu no passado dia 26/01.
A propósito, envio este texto que gostaria de ver publicado se e quando assim o entenderem.
Desde já, o meu agradecimento acompanhado de forte abraço do
VJ
Pose descontraída de Vítor Junqueira (à esquerda da foto) durante o III Encontro da Tabanca Grande em Ortigosa, no ano de 2008. À direita, outro notável da nossa Tertúlia, o camarada Jorge Cabral e o seu inseparável cachimbo.
Foto de José Armando F. Almeida
A Poda
O mail chegou atempadamente. Numa escrita bonita, perfumada de amizade, intimava-me o nosso amigo Joaquim Mexia a comparecer na simpática localidade de Monte Real no dia 26/01 a fim de participar no oitavo encontro dos Tabanqueiros do Centro. Imprimi para não esquecer e, como o Benjamim do Sérgio Godinho, respondi dobrando o canto do sim.
De Pombal, onde tenho o meu tugúrio, até Monte Real, vai o salto de uma pulga. Avancei pela Bajouca até Monte Redondo onde tomei a 109 no sentido de Leiria e, em menos de nada, apreciava a modernidade das novas rotundas e variante que permitem o acesso fácil e rápido à vila termalista. Assim pensava eu! Ao contornar a segunda daquelas obras de engenharia urbana, deparo com um sinal a proibir o trânsito através da principal via de acesso ao centro do burgo. Num posto de abastecimento ali à mão, indaguei das razões do desaforo. Fiquei a saber que, por determinação da senhora Câmara, ninguém passava, pois estava em curso a poda das árvores que ladeiam aquela via. Que grande poda, pensei! Mal podia imaginar que me estava reservada uma poda idêntica ao deixar a localidade. Não fosse o aconselhamento paciente de alguns indígenas, e por lá teria pernoitado. Segui então o caminho alternativo que me indicaram e dei comigo a pastar numa série de vielas, becos e quelhas até “dar com eles”. Na verdade, não foi difícil. Qual logotipo de ultra sexagenários que somos, avistei um grupo de senhores envergando o fatinho domingueiro, grande prevalência de cãs pontuadas aqui e além por algumas carolas completamente desabitadas. Frente ao café Central, conversavam em pequenos grupos congregados pela intimidade de um conhecimento mais antigo.
Apertei mãos, dei e recebi palmadas de simpatia nas costas até chegar ao maior (na estatura e na função!), que me recebeu com um caloroso abraço. A partir desse momento passei a jogar em casa dado que, às primeiras impressões, o terreno me parecia estranho visto muitos dos presentes serem camaradas com os quais ainda não havia privado e daí, um certo acanhamento da minha parte.
Julgava eu, mal, que iria encontrar no máximo para aí uma dúzia de pessoas, atendendo ao qualificativo da Tabanca que é do “Centro”. Afinal, deviam estar para cima de três dezenas, incluindo muitas que vieram do norte e da região de Lisboa. Como seria de esperar o Mexia estava como peixe na água e não seria de esperar outra coisa já que esta é, definitivamente, a sua praia. Uma organização irrepreensível não tardou a convidar-nos a abancar no restaurante da Preciosa, praticamente do outro lado da rua. Com garbo (e garfo!), atacámos o seu afamado cozido à portuguesa onde impera a couve lombarda cozida no caldo das carnes e uma morcela de arroz, cuja confecção só pode ter sido conseguida através da usurpação de receita da minha terra, porque a legítima, de arroz, é nossa. Para que conste, só em Pombal e suas freguesias!
O almoço decorreu em clima muito animado, de tal modo animado que, o anfitrião teve de mandar dois berros à militar para se fazer ouvir quando quis comunicar aos presentes, a oferta de um mapa da Guiné primorosamente emoldurado que depois de assinado por todos passou a fazer parte do espólio da galeria de obras pendentes nas paredes do Preciosa’s. Curiosamente, na minha “mesa” não se falou de guerras, fossem elas passadas ou destas mais literárias! Nem sequer houve qualquer comentário acerca do sucesso do Algarvio ou da vã expectativa do Homem de Argel. Falou-se de passeios, das recentes promoções a avô de alguns camaradas e da saúde que já vai claudicando.
Aproximava-se o término do nosso encontro. Eu sou como o Zezito, não gosto de finais de festa e as despedidas são sempre penosas. O fim de tarde de um dia esplendoroso parecia-me toldado por uma nuvenzita de angústia. Como o sol de Inverno, não tenho calor, diz a Simone. Acompanho-a. Tomado pela melancolia, apertei algumas mãos e, com um genérico “até à próxima, camaradas”, remeti-me à minha individualidade algo solitária, de regresso a casa. Enquanto conduzia, não pude evitar certa reflexão.
Para trás acabava de deixar amigos, alguns que nunca tinha visto, mas que agora já eram “família”. Como é possível ligarmo-nos assim a pessoas que mal conhecemos? Será este mais um sortilégio do nosso passado comum? E como se compreende que vivências que partilhámos na juventude possam cimentar amizades de hoje, mesmo as mais recentes? Porque nos juntamos e o que é que verdadeiramente buscamos nestes convívios que não almejamos noutras tertúlias? Porque nos despedimos sempre com um certo “amargo de boca” e na mente, aquela dúvida existencial: Até quando? Tudo quanto posso alvitrar é que continua bem vivo dentro de cada um de nós o básico instinto de grupo decorado com umas pinceladas de civilização, que nos leva, em momentos de grande stress, a reconhecer, amar e proteger “os nossos”.
Desde pixote, venho assistindo (pela televisão) àquela cerimónia em que uns velhinhos depositam flores nas campas de distintos republicanos. A coisa deve ser importante e digna de celebração porque se mantém, passados tantos anos. Para mim, que já nasci republicano, diz-me niente e, não fosse o cinco de Outubro ser feriado, bem podia passar-me de todo ao lado.
Também tenho presente a homenagem que sempre se prestou em locais públicos como na Batalha, aos caídos nas pelejas de 1914/1918. Daqueles heróis altamente medalhados, não resta um, e tenho dúvidas se os seus netos e bisnetos sabem que tiveram um avô ex-combatente ou se a esse facto atribuem algum valor.
E nós? Que pensarão as novas gerações, nascidas em paz e democracia, destes velhotes que se encontram de vez em quando para, julgam eles, nada mais do que uma almoçarada? Quais as memórias e valores que conseguimos deixar-lhes? Parece que os ouço dizer: Ora, não há pachorra! Oxalá possam dizê-lo sempre ao longo das suas vidas, e que a dura realidade não lhes mostre da forma mais cruel, porque é que em certos momentos, não existe alternativa às armas nem ao derramamento de sangue. Que me perdoem os mais pacifistas.
Tal como as árvores da rua principal de Monte Real, a minha geração está a sofrer a poda que a lei da vida a todos impõe. Começou a acelerar o passo, e a que ritmo! Mas ainda somos muitos. Recusamos mordomias, exigimos reconhecimento e respeito. E num momento muito complicado para milhares dos nossos concidadãos, queremos com o nosso exemplo e dignidade mostrar-lhes que antes deles, outros suplantaram tempos muito difíceis em que estava em causa, não o salário ao fim do mês, mas a vida ao fim do dia.
Fazendo um apanhado muito sumário deste encontro de “camarigos” (esta é para polir um pouco o ego do Mexia já que foi ele quem inventou o termo, se não estou em erro!), tenho a dizer o seguinte:
- Quanto aos costumes: É para manter.
- Quanto ao local: O “Centro” do país, como todos sabem é Pombal.
- Quanto aos participantes: E venham mais cinco.
- Quanto à ementa: Não está mal, mas nada tenho contra os regionalismos. Não me incomoda trocar o patriótico cozido à portuguesa pelo leitão à Bairrada, por exemplo.
- Quanto às libações: Sugiro que sejam consumidos apenas dois tipos de bebidas, nacionais e importadas.
- Relativamente à frequência, apenas duas vezes ao dia, às refeições e nos intervalos.
E com estas ressalvas que venha o nono e o décimo e todos quantos a estaleca nos for permitindo.
A todos os presentes, quero deixar o meu muito obrigado pelos agradabilíssimos momentos de convívio e camaradagem que neste dia pudemos compartilhar.
VJ
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7526: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (27): Votos de Feliz Ano Novo... e mais umas coisitas (Vítor Junqueira)
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7572: Convívios (204): 8º Encontro da Tabanca do Centro - Encontro de Ano Novo (Joaquim Mexia Alves)
Qualquer pretexto serve para uma escrita simples, direta, agradável e percetível, com a marca VJ.
2. Mensagem de Vítor Junqueira (ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), com data de 28 de Janeiro de 2011:
Caros amigos,
Tive o privilégio de ser convidado a participar no 8º encontro da Tabanca do Centro que decorreu no passado dia 26/01.
A propósito, envio este texto que gostaria de ver publicado se e quando assim o entenderem.
Desde já, o meu agradecimento acompanhado de forte abraço do
VJ
Pose descontraída de Vítor Junqueira (à esquerda da foto) durante o III Encontro da Tabanca Grande em Ortigosa, no ano de 2008. À direita, outro notável da nossa Tertúlia, o camarada Jorge Cabral e o seu inseparável cachimbo.
Foto de José Armando F. Almeida
A Poda
O mail chegou atempadamente. Numa escrita bonita, perfumada de amizade, intimava-me o nosso amigo Joaquim Mexia a comparecer na simpática localidade de Monte Real no dia 26/01 a fim de participar no oitavo encontro dos Tabanqueiros do Centro. Imprimi para não esquecer e, como o Benjamim do Sérgio Godinho, respondi dobrando o canto do sim.
De Pombal, onde tenho o meu tugúrio, até Monte Real, vai o salto de uma pulga. Avancei pela Bajouca até Monte Redondo onde tomei a 109 no sentido de Leiria e, em menos de nada, apreciava a modernidade das novas rotundas e variante que permitem o acesso fácil e rápido à vila termalista. Assim pensava eu! Ao contornar a segunda daquelas obras de engenharia urbana, deparo com um sinal a proibir o trânsito através da principal via de acesso ao centro do burgo. Num posto de abastecimento ali à mão, indaguei das razões do desaforo. Fiquei a saber que, por determinação da senhora Câmara, ninguém passava, pois estava em curso a poda das árvores que ladeiam aquela via. Que grande poda, pensei! Mal podia imaginar que me estava reservada uma poda idêntica ao deixar a localidade. Não fosse o aconselhamento paciente de alguns indígenas, e por lá teria pernoitado. Segui então o caminho alternativo que me indicaram e dei comigo a pastar numa série de vielas, becos e quelhas até “dar com eles”. Na verdade, não foi difícil. Qual logotipo de ultra sexagenários que somos, avistei um grupo de senhores envergando o fatinho domingueiro, grande prevalência de cãs pontuadas aqui e além por algumas carolas completamente desabitadas. Frente ao café Central, conversavam em pequenos grupos congregados pela intimidade de um conhecimento mais antigo.
Apertei mãos, dei e recebi palmadas de simpatia nas costas até chegar ao maior (na estatura e na função!), que me recebeu com um caloroso abraço. A partir desse momento passei a jogar em casa dado que, às primeiras impressões, o terreno me parecia estranho visto muitos dos presentes serem camaradas com os quais ainda não havia privado e daí, um certo acanhamento da minha parte.
Julgava eu, mal, que iria encontrar no máximo para aí uma dúzia de pessoas, atendendo ao qualificativo da Tabanca que é do “Centro”. Afinal, deviam estar para cima de três dezenas, incluindo muitas que vieram do norte e da região de Lisboa. Como seria de esperar o Mexia estava como peixe na água e não seria de esperar outra coisa já que esta é, definitivamente, a sua praia. Uma organização irrepreensível não tardou a convidar-nos a abancar no restaurante da Preciosa, praticamente do outro lado da rua. Com garbo (e garfo!), atacámos o seu afamado cozido à portuguesa onde impera a couve lombarda cozida no caldo das carnes e uma morcela de arroz, cuja confecção só pode ter sido conseguida através da usurpação de receita da minha terra, porque a legítima, de arroz, é nossa. Para que conste, só em Pombal e suas freguesias!
O almoço decorreu em clima muito animado, de tal modo animado que, o anfitrião teve de mandar dois berros à militar para se fazer ouvir quando quis comunicar aos presentes, a oferta de um mapa da Guiné primorosamente emoldurado que depois de assinado por todos passou a fazer parte do espólio da galeria de obras pendentes nas paredes do Preciosa’s. Curiosamente, na minha “mesa” não se falou de guerras, fossem elas passadas ou destas mais literárias! Nem sequer houve qualquer comentário acerca do sucesso do Algarvio ou da vã expectativa do Homem de Argel. Falou-se de passeios, das recentes promoções a avô de alguns camaradas e da saúde que já vai claudicando.
Aproximava-se o término do nosso encontro. Eu sou como o Zezito, não gosto de finais de festa e as despedidas são sempre penosas. O fim de tarde de um dia esplendoroso parecia-me toldado por uma nuvenzita de angústia. Como o sol de Inverno, não tenho calor, diz a Simone. Acompanho-a. Tomado pela melancolia, apertei algumas mãos e, com um genérico “até à próxima, camaradas”, remeti-me à minha individualidade algo solitária, de regresso a casa. Enquanto conduzia, não pude evitar certa reflexão.
Para trás acabava de deixar amigos, alguns que nunca tinha visto, mas que agora já eram “família”. Como é possível ligarmo-nos assim a pessoas que mal conhecemos? Será este mais um sortilégio do nosso passado comum? E como se compreende que vivências que partilhámos na juventude possam cimentar amizades de hoje, mesmo as mais recentes? Porque nos juntamos e o que é que verdadeiramente buscamos nestes convívios que não almejamos noutras tertúlias? Porque nos despedimos sempre com um certo “amargo de boca” e na mente, aquela dúvida existencial: Até quando? Tudo quanto posso alvitrar é que continua bem vivo dentro de cada um de nós o básico instinto de grupo decorado com umas pinceladas de civilização, que nos leva, em momentos de grande stress, a reconhecer, amar e proteger “os nossos”.
Desde pixote, venho assistindo (pela televisão) àquela cerimónia em que uns velhinhos depositam flores nas campas de distintos republicanos. A coisa deve ser importante e digna de celebração porque se mantém, passados tantos anos. Para mim, que já nasci republicano, diz-me niente e, não fosse o cinco de Outubro ser feriado, bem podia passar-me de todo ao lado.
Também tenho presente a homenagem que sempre se prestou em locais públicos como na Batalha, aos caídos nas pelejas de 1914/1918. Daqueles heróis altamente medalhados, não resta um, e tenho dúvidas se os seus netos e bisnetos sabem que tiveram um avô ex-combatente ou se a esse facto atribuem algum valor.
E nós? Que pensarão as novas gerações, nascidas em paz e democracia, destes velhotes que se encontram de vez em quando para, julgam eles, nada mais do que uma almoçarada? Quais as memórias e valores que conseguimos deixar-lhes? Parece que os ouço dizer: Ora, não há pachorra! Oxalá possam dizê-lo sempre ao longo das suas vidas, e que a dura realidade não lhes mostre da forma mais cruel, porque é que em certos momentos, não existe alternativa às armas nem ao derramamento de sangue. Que me perdoem os mais pacifistas.
Tal como as árvores da rua principal de Monte Real, a minha geração está a sofrer a poda que a lei da vida a todos impõe. Começou a acelerar o passo, e a que ritmo! Mas ainda somos muitos. Recusamos mordomias, exigimos reconhecimento e respeito. E num momento muito complicado para milhares dos nossos concidadãos, queremos com o nosso exemplo e dignidade mostrar-lhes que antes deles, outros suplantaram tempos muito difíceis em que estava em causa, não o salário ao fim do mês, mas a vida ao fim do dia.
Fazendo um apanhado muito sumário deste encontro de “camarigos” (esta é para polir um pouco o ego do Mexia já que foi ele quem inventou o termo, se não estou em erro!), tenho a dizer o seguinte:
- Quanto aos costumes: É para manter.
- Quanto ao local: O “Centro” do país, como todos sabem é Pombal.
- Quanto aos participantes: E venham mais cinco.
- Quanto à ementa: Não está mal, mas nada tenho contra os regionalismos. Não me incomoda trocar o patriótico cozido à portuguesa pelo leitão à Bairrada, por exemplo.
- Quanto às libações: Sugiro que sejam consumidos apenas dois tipos de bebidas, nacionais e importadas.
- Relativamente à frequência, apenas duas vezes ao dia, às refeições e nos intervalos.
E com estas ressalvas que venha o nono e o décimo e todos quantos a estaleca nos for permitindo.
A todos os presentes, quero deixar o meu muito obrigado pelos agradabilíssimos momentos de convívio e camaradagem que neste dia pudemos compartilhar.
VJ
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7526: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (27): Votos de Feliz Ano Novo... e mais umas coisitas (Vítor Junqueira)
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7572: Convívios (204): 8º Encontro da Tabanca do Centro - Encontro de Ano Novo (Joaquim Mexia Alves)
sábado, 29 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7694: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (9): O último
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2011:
Queridos Amigos,
Muito obrigado pela boa companhia que me deram nesta viagem.
Acabaram-se as imagens, começou o vago rumor, mal localizado, que precede a nova viagem.
Agora, anuncia-se a batalha verbal, os jogos de cintura a construir um livro, aparentemente enorme. Fosse eu disciplinado e teríamos livro até ao Outono.
Vamos ver, tenho muita Guiné pela frente.
Um abraço e até ao meu regresso,
Mário
Foi a última imagem que captei na Guiné, anoitecia em 1 de Dezembro de 2010. Estava na Pensão Central, a bagagem arrumada, eu muito feliz com as compras, sobretudo o Ninte Kamatchol e a escultura bijagó usada na dança do tubarão martelo. Lá em baixo, é aquele espectáculo fantástico dos veículos a fugirem das covas e do alcatrão carcomido. Ao longe, à esquerda, ainda uma nesga do ilhéu do Rei, ao fundo, à direita, vestígios do Pidjiquiti e ao fundo o canal do Geba e a extensão de Bissau. O dia apaga-se, é impossível fugir da atracção daquela bola de fogo que desce meteoricamente sobre o mar vegetal e o mar salgado. É a recordação obsidiante, a imagem fixa, acompanha-me em todas as recordações que me puxam até à Guiné. A partir daqui, só as recordações da cabeça, que nalguns casos possuem uma impressão muito próximo da fotografia. Consigo ver-me no restaurante Jordani, a comer bifinhos de sereia, enquanto via imagens da neve em Portugal; parece que estou a tomar um táxi que me leva para Bissalanca onde os seguranças me remexem desavergonhadamente toda a roupa, sempre sussurrando “dá qualquer coisa para o mata bicho!”; as horas em que me entretenho a ler, o voo só parte às três da manhã; o roncar do Airbus, uns saem outros sobem numa atmosfera de estufa; o último abraço do embaixador de Portugal e depois uma viagem com um jovem bijagó ao lado que vai aterrado, é o seu primeiro voo, procuro desanuviar a tensão pedindo-lhe informações sobre a dança do tubarão martelo; e o raiar do dia quando chegamos a Lisboa, trago a Guiné em todos os poros, em todos os átomos da emoção, venho desvanecido pelos reencontros, pelas descobertas.
Foi o cabo dos trabalhos despedir-me da Maria Fausta, a mulher do Abudu. Visitara-a mal chegara a Bissau, no dia 18 de Novembro à tarde, na companhia do Sr. Sabino, o motorista da embaixada. Estes bairros populares nada tem a ver com o que me lembrava de há 40 anos: Santa Luzia cresceu desmesuradamente, o Bairro Militar, Quelele, o Bairro Missirá, transformaram-se em autênticas favelas, impressionam pelo lixo, as irregularidades do solo, a guerra perdida em prol do saneamento básico. Esta fotografia foi tirada depois do nosso encontro. É muito duro conhecer alguém a quem se vai dizer, sem ambiguidades, que o marido não tem condições físicas para viver na Guiné, precisa de acompanhamento constante e medicamentos, há a esperança da naturalização, é o menos que Portugal pode fazer para este homem que se atirou ao trabalho mais humilde durante 15 anos, que foi explorado por falsos empresários que não entregaram o que ele descontou na Segurança Social. E mais não se diz, toda a pessoa tem direito à privacidade. Esta mulher olha-me com firmeza, já tínhamos conversado sobre a saúde do Abudu, um ser humano não é de ferro, expressa o sofrimento, lacrimeja. Pois a fotografia que me estás a tirar, branco, irmão do meu marido, pode espelhar mágoa e tristeza, mas só o quanto basta. O resto é dignidade africana. Para que conste.
A Ponta do Inglês provoca ao visitante (por sinal, antigo combatente) sentimentos contraditórios. Ele sabe que esta estrada enorme está regada de sangue e sofrimento. Ele sabe que quem aqui viveu, na segunda metade dos anos 60, viveu em extrema inquietação. E, no entanto, há sempre este cenário idílico, por aqui passa o Corubal estuante, é uma foz ampla, com a Península de Quinara ao fundo e em frente. À esquerda, era o Corubal de todos os perigos, os barcos da Armada penavam e eram frequentemente flagelados, ali o PAIGC tinha o domínio do solo, em ambas as margens. O viajante teve sorte com a altura do sol e os reflexos de prata. Naquela lama, na berma, disseram-lhe, houve uma instalação portuária, tudo desapareceu, pode-se percorrer a Ponta do Inglês e até supor que nunca ali houve metralha, sentinelas angustiados, soldados expectantes naquele ermo, injustificável em termos militares. Para que se saiba, quem vê paisagens não vê emoções. Aqui o passado morreu, ele só existe na memória de quem não o esqueceu.
Foi a primeira fotografia que se tirou, na concelebração de 28 de Novembro. Não gostei, há aqui muita tristeza estampada, imprópria para o evento. Tínhamos estado todos ruidosos, de línguas soltas, à volta do passado. Há aqui poses formais, de quem receia ficar descomposto para a posteridade. Nas fotografias subsequentes, deu-se o degelo, transparece a alegria africana. O único dissidente dos formalismos é o Príncipe Samba, exibe o livro que lhe foi oferecido, terá as suas razões, pode mesmo estar a pensar: “Quando voltares a ver esta fotografia lembra-te que este livro é meu, por direito próprio, durante a manhã falámos da mina anticarro em que fiquei sinistrado, contei-te as provações por que passei nos últimos anos da guerra, ao menos que nestas páginas alguém me tire do anonimato e me exalte pelo meu bem servir”. Estes, parte dos meus bravos que vieram de candonga, a pé e de bicicleta, aqui se confraternizou, neste local alguém se despediu dizendo: “Não acredito que seja a última viagem, nós merecemos mais amizade, volta”.
Parece bailado contemporâneo mas é um acto religioso. Não podendo participar, orei à distância, jaculatórias para todos aqueles que se finaram ou não puderam vir. Enquanto decorre a oração, lembrei fidelidades, comportamentos exemplares, actos de heroísmo, primores de carácter. Nada me custou olhar para um acto religioso indecifrável. Esta postura curvada, parece-me, é de fácil compreensão: Deus misericordioso, prostro-me e peço-te perdão, dá-me alento para continuar e cumprir os teus ensinamentos. Estes homens purificaram-se antes da oração. E mesmo antes da purificação pela água tinham-se purificado pela estima que me devotam. É a minha de me prostrar diante de Deus.
Vim à procura deste amigo, não encontrei, ele vive em Farim, não é fácil chegar a Bambadinca. Felizmente, goza de saúde. Aqui muito perto, onde concelebramos, Quebá Sissé, conhecido pelo Doutor, meteu o dedo ao gatilho quando subia para o Unimog, desfechou uma curta rajada, mortal, sobre Uam Sambu, que me caiu nos braços. Foi testemunha de Quebá Sissé no seu julgamento, a punição foi mínima, para bem de todos nós. Esta imagem tem pelo menos 42 anos. O Doutor tinha uma verticalidade estranha, parece que o tronco lhe pesava, ajoujava a carga para diante e para trás, balançava os braços e as pernas, no seu jeito peculiar. Temo-lo aqui à porta da cozinha, cercado dos seus ajudantes, os meninos que cobiçavam as sobras do rancho. Ao fundo, o indescritível balneário de Missirá, meses depois substituído por uma estrutura mais apropriada. Honra seja feita ao Doutor, e nesta memória dirijo um olhar terno para todos os ausentes da nossa concelebração.
Afinal, eles são o futuro. A imagem vem do Bairro Joli, Mio e os seus dois filhos. Mio procura pôr de pé a granja que esteve muito tempo abandonada, mudou profissionalmente de rumo para se dedicar a esta empreitada. Os meninos, é a minha esperança, colherão o fruto, dilatarão os sonhos do Bairro Joli. Porque o que parece impossível em muitos casos torna-se viável, praticável. O que está em ruinas levanta-se, o que desfalece anima-se. Haja confiança neste futuro. Com gente determinada no presente.
Estamos prestes a terminar por onde se começou. Quando desembarquei em 29 de Julho de 1968, na noite escura, fui conduzido para o QG, o tal quartel general de onde parti, do cais do Pidjiquiti, para Missirá. Quando aqui regressei, mais de 42 anos depois, pretendi captar a imagem desse QG, hoje fantasmagoria. É um edifício que explodiu à bomba, nele morreu um chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Impedido de fotografar o escombro, coisa surrealista, vinguei-me fotografando um vestígio do passado, hoje completamente inócuo, sem qualquer préstimo, a não ser proteger pessoas em dia de temporal: uma guarita. Mas do que gosto verdadeiramente é da terra afogueada, parece que passou por aqui um cometa incandescente e esquentou o solo, para todo o sempre. O contraste é o verde, só falta um rio da Guiné, o resto é o que chancela esta paisagem: o verde ambiente e a laterite que pisamos.
De todas as imagens em arquivo que possuo, é desta a que mais gosto, foi-me oferecida pelo João Crisóstomo, da Companhia 1439, do Enxalé, foi tirada quando iam a caminho do Xime, quase em frente. É o símbolo de todas as viagens, está ali o Geba, soldados como nós, viaja-se de uma berma para outra. É a metáfora da Operação Tangomau. Provisoriamente, interrompe-se aqui a viagem. Muito obrigado pela vossa atenção.
__________
Notas de CV:
Vd. postes da série de:
5 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7384: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (1): Dias 18 e 19 de Novembro de 2010
9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010
12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010
16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7445: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (4): Dia 22 de Novembro de 2010
20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010
28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010
1 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010
e
4 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7552: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (8): Dia 26 de Novembro de 2010
Queridos Amigos,
Muito obrigado pela boa companhia que me deram nesta viagem.
Acabaram-se as imagens, começou o vago rumor, mal localizado, que precede a nova viagem.
Agora, anuncia-se a batalha verbal, os jogos de cintura a construir um livro, aparentemente enorme. Fosse eu disciplinado e teríamos livro até ao Outono.
Vamos ver, tenho muita Guiné pela frente.
Um abraço e até ao meu regresso,
Mário
OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (9)
O ÚLTIMO ÁLBUM
Foi a última imagem que captei na Guiné, anoitecia em 1 de Dezembro de 2010. Estava na Pensão Central, a bagagem arrumada, eu muito feliz com as compras, sobretudo o Ninte Kamatchol e a escultura bijagó usada na dança do tubarão martelo. Lá em baixo, é aquele espectáculo fantástico dos veículos a fugirem das covas e do alcatrão carcomido. Ao longe, à esquerda, ainda uma nesga do ilhéu do Rei, ao fundo, à direita, vestígios do Pidjiquiti e ao fundo o canal do Geba e a extensão de Bissau. O dia apaga-se, é impossível fugir da atracção daquela bola de fogo que desce meteoricamente sobre o mar vegetal e o mar salgado. É a recordação obsidiante, a imagem fixa, acompanha-me em todas as recordações que me puxam até à Guiné. A partir daqui, só as recordações da cabeça, que nalguns casos possuem uma impressão muito próximo da fotografia. Consigo ver-me no restaurante Jordani, a comer bifinhos de sereia, enquanto via imagens da neve em Portugal; parece que estou a tomar um táxi que me leva para Bissalanca onde os seguranças me remexem desavergonhadamente toda a roupa, sempre sussurrando “dá qualquer coisa para o mata bicho!”; as horas em que me entretenho a ler, o voo só parte às três da manhã; o roncar do Airbus, uns saem outros sobem numa atmosfera de estufa; o último abraço do embaixador de Portugal e depois uma viagem com um jovem bijagó ao lado que vai aterrado, é o seu primeiro voo, procuro desanuviar a tensão pedindo-lhe informações sobre a dança do tubarão martelo; e o raiar do dia quando chegamos a Lisboa, trago a Guiné em todos os poros, em todos os átomos da emoção, venho desvanecido pelos reencontros, pelas descobertas.
Foi o cabo dos trabalhos despedir-me da Maria Fausta, a mulher do Abudu. Visitara-a mal chegara a Bissau, no dia 18 de Novembro à tarde, na companhia do Sr. Sabino, o motorista da embaixada. Estes bairros populares nada tem a ver com o que me lembrava de há 40 anos: Santa Luzia cresceu desmesuradamente, o Bairro Militar, Quelele, o Bairro Missirá, transformaram-se em autênticas favelas, impressionam pelo lixo, as irregularidades do solo, a guerra perdida em prol do saneamento básico. Esta fotografia foi tirada depois do nosso encontro. É muito duro conhecer alguém a quem se vai dizer, sem ambiguidades, que o marido não tem condições físicas para viver na Guiné, precisa de acompanhamento constante e medicamentos, há a esperança da naturalização, é o menos que Portugal pode fazer para este homem que se atirou ao trabalho mais humilde durante 15 anos, que foi explorado por falsos empresários que não entregaram o que ele descontou na Segurança Social. E mais não se diz, toda a pessoa tem direito à privacidade. Esta mulher olha-me com firmeza, já tínhamos conversado sobre a saúde do Abudu, um ser humano não é de ferro, expressa o sofrimento, lacrimeja. Pois a fotografia que me estás a tirar, branco, irmão do meu marido, pode espelhar mágoa e tristeza, mas só o quanto basta. O resto é dignidade africana. Para que conste.
A Ponta do Inglês provoca ao visitante (por sinal, antigo combatente) sentimentos contraditórios. Ele sabe que esta estrada enorme está regada de sangue e sofrimento. Ele sabe que quem aqui viveu, na segunda metade dos anos 60, viveu em extrema inquietação. E, no entanto, há sempre este cenário idílico, por aqui passa o Corubal estuante, é uma foz ampla, com a Península de Quinara ao fundo e em frente. À esquerda, era o Corubal de todos os perigos, os barcos da Armada penavam e eram frequentemente flagelados, ali o PAIGC tinha o domínio do solo, em ambas as margens. O viajante teve sorte com a altura do sol e os reflexos de prata. Naquela lama, na berma, disseram-lhe, houve uma instalação portuária, tudo desapareceu, pode-se percorrer a Ponta do Inglês e até supor que nunca ali houve metralha, sentinelas angustiados, soldados expectantes naquele ermo, injustificável em termos militares. Para que se saiba, quem vê paisagens não vê emoções. Aqui o passado morreu, ele só existe na memória de quem não o esqueceu.
Foi a primeira fotografia que se tirou, na concelebração de 28 de Novembro. Não gostei, há aqui muita tristeza estampada, imprópria para o evento. Tínhamos estado todos ruidosos, de línguas soltas, à volta do passado. Há aqui poses formais, de quem receia ficar descomposto para a posteridade. Nas fotografias subsequentes, deu-se o degelo, transparece a alegria africana. O único dissidente dos formalismos é o Príncipe Samba, exibe o livro que lhe foi oferecido, terá as suas razões, pode mesmo estar a pensar: “Quando voltares a ver esta fotografia lembra-te que este livro é meu, por direito próprio, durante a manhã falámos da mina anticarro em que fiquei sinistrado, contei-te as provações por que passei nos últimos anos da guerra, ao menos que nestas páginas alguém me tire do anonimato e me exalte pelo meu bem servir”. Estes, parte dos meus bravos que vieram de candonga, a pé e de bicicleta, aqui se confraternizou, neste local alguém se despediu dizendo: “Não acredito que seja a última viagem, nós merecemos mais amizade, volta”.
Parece bailado contemporâneo mas é um acto religioso. Não podendo participar, orei à distância, jaculatórias para todos aqueles que se finaram ou não puderam vir. Enquanto decorre a oração, lembrei fidelidades, comportamentos exemplares, actos de heroísmo, primores de carácter. Nada me custou olhar para um acto religioso indecifrável. Esta postura curvada, parece-me, é de fácil compreensão: Deus misericordioso, prostro-me e peço-te perdão, dá-me alento para continuar e cumprir os teus ensinamentos. Estes homens purificaram-se antes da oração. E mesmo antes da purificação pela água tinham-se purificado pela estima que me devotam. É a minha de me prostrar diante de Deus.
Vim à procura deste amigo, não encontrei, ele vive em Farim, não é fácil chegar a Bambadinca. Felizmente, goza de saúde. Aqui muito perto, onde concelebramos, Quebá Sissé, conhecido pelo Doutor, meteu o dedo ao gatilho quando subia para o Unimog, desfechou uma curta rajada, mortal, sobre Uam Sambu, que me caiu nos braços. Foi testemunha de Quebá Sissé no seu julgamento, a punição foi mínima, para bem de todos nós. Esta imagem tem pelo menos 42 anos. O Doutor tinha uma verticalidade estranha, parece que o tronco lhe pesava, ajoujava a carga para diante e para trás, balançava os braços e as pernas, no seu jeito peculiar. Temo-lo aqui à porta da cozinha, cercado dos seus ajudantes, os meninos que cobiçavam as sobras do rancho. Ao fundo, o indescritível balneário de Missirá, meses depois substituído por uma estrutura mais apropriada. Honra seja feita ao Doutor, e nesta memória dirijo um olhar terno para todos os ausentes da nossa concelebração.
Afinal, eles são o futuro. A imagem vem do Bairro Joli, Mio e os seus dois filhos. Mio procura pôr de pé a granja que esteve muito tempo abandonada, mudou profissionalmente de rumo para se dedicar a esta empreitada. Os meninos, é a minha esperança, colherão o fruto, dilatarão os sonhos do Bairro Joli. Porque o que parece impossível em muitos casos torna-se viável, praticável. O que está em ruinas levanta-se, o que desfalece anima-se. Haja confiança neste futuro. Com gente determinada no presente.
Estamos prestes a terminar por onde se começou. Quando desembarquei em 29 de Julho de 1968, na noite escura, fui conduzido para o QG, o tal quartel general de onde parti, do cais do Pidjiquiti, para Missirá. Quando aqui regressei, mais de 42 anos depois, pretendi captar a imagem desse QG, hoje fantasmagoria. É um edifício que explodiu à bomba, nele morreu um chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Impedido de fotografar o escombro, coisa surrealista, vinguei-me fotografando um vestígio do passado, hoje completamente inócuo, sem qualquer préstimo, a não ser proteger pessoas em dia de temporal: uma guarita. Mas do que gosto verdadeiramente é da terra afogueada, parece que passou por aqui um cometa incandescente e esquentou o solo, para todo o sempre. O contraste é o verde, só falta um rio da Guiné, o resto é o que chancela esta paisagem: o verde ambiente e a laterite que pisamos.
De todas as imagens em arquivo que possuo, é desta a que mais gosto, foi-me oferecida pelo João Crisóstomo, da Companhia 1439, do Enxalé, foi tirada quando iam a caminho do Xime, quase em frente. É o símbolo de todas as viagens, está ali o Geba, soldados como nós, viaja-se de uma berma para outra. É a metáfora da Operação Tangomau. Provisoriamente, interrompe-se aqui a viagem. Muito obrigado pela vossa atenção.
__________
Notas de CV:
Vd. postes da série de:
5 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7384: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (1): Dias 18 e 19 de Novembro de 2010
9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010
12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010
16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7445: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (4): Dia 22 de Novembro de 2010
20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010
28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010
1 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010
e
4 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7552: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (8): Dia 26 de Novembro de 2010
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