quinta-feira, 29 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6277: O Spínola que eu conheci (15): Muito obrigado pelas palavras que proferiu em S. Domingos (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)

Guiné > Algures > O Alf Mil Pil Heli Al III (BA 12, Bissalanca, 1968/70) e o Spínola (Com-Chefe e Governador Geral, CTIG, 1968/73)
Foto: © Jorge Félix (2010). Direitos reservados


1. Mensagem de Bernardino Parreira (ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846, S. Domingos e Bachile), com data de 12 de Abril de 2010:

Caro camarada Luis Graça, autor e editor deste Blogue e caros camaradas co-editores.
Começo por apresentar-vos a minha saudação e os meus parabéns pelo trabalho extraordinário que realizam diariamente, neste digníssimo Blogue.

Apesar de não pertencer a esta Tabanca, acompanho diariamente a mesma e tudo que se relaciona com a Guiné, e até já me concederam a oportunidade de comentar alguns posts.

A propósito da homenagem ao Sr. Marechal Spínola, tenho a dizer que tive a honra de o conhecer pessoalmente no dia da minha chegada à Guiné em 09/04/1971 quando apresentou os cumprimentos de "boas vindas" ao BCAV 3846, e no dia do meu regresso à Metrópole em 17/03/1973, quando o mesmo se deslocou ao Aeroporto de Bissau para apresentar os cumprimentos de despedida à CCAV 3365 a que eu pertencia.

Com já referi em anteriores comentários, fiz parte da minha Comissão Militar como Furriel Miliciano em S. Domingos e outra parte no Bachile. Em todos os destacamentos que estive e no contacto com as populações que convivi testemunhei a grande admiração e respeito que a população nativa manifestava pelo Sr. General Spínola.

Enquanto estive em S. Domingos testemunhei muitos ataques ao Quartel e posso dizer que quando de lá saí, em 1972, a situação começava a estar insustentável. Os ataques do PAIGC, vindos do Senegal intensificavam-se.

Há algum tempo, o meu camarada e amigo Plácido Teixeira, que reside nos EUA, e que também pertenceu à CCAV 3365, que esteve sempre colocado em S. Domingos de 1971 a 1973, escreveu sobre o "Inferno" que viveu em S. Domingos, e sobre o General Spínola, o seguinte texto, que vos envio com a devida permissão desse meu amigo, para publicarem se assim o entenderem.

Bem Hajam!

Abraços
Bernardino Parreira


2. Texto escrito por Plácido Teixeira, da CCAV 3365, colocado em S. Domingos,1971/1973:

"Senhor Spínola... sim, Senhor, porque outros tempos vão longe! Mas Senhor Spínola com muito respeito eu digo e escrevo o seguinte:

Muito obrigado pelas palavras que proferiu uma vez em S. Domingos, para uma Companhia abusada, e maltratada e deitada ao abandono. Lembro-me que uma vez, num horrível mês, do ano de 1972, a nossa Companhia foi um alvo, uma carreira de tiro. Sim, uma carreira de tiro e nós o alvo!!! Era bombardeamento diário. Não havia comida, não havia bebida ou até luz.

Lembro-me que andava a passar uma ronda e fomos apanhados no meio do campo de futebol. Todos saltámos do Jeep, uns para a direita, outros para a esquerda. Como fomos apanhados no meio do campo de futebol, a vala e os abrigos estava muito longe. Corri e cheguei finalmente a vala, sem arma, sem sapatos e sem oculos! Bonito para a minha defesa. Mais uma vez a ideia era sobreviver. Havia fumo por todo o lado. Como tinha chovido, na vala era só lama. Não havia luz e com o fumo nada se via para fora da vala. Era até impossível por a cabeça de fora. O tiroteio do outro lado do arame era intenso. Constou que estávamos a ser atacados com bombas de fumo e que até já tinham entrado para dentro do "quartel".

Ficámos toda a noite nos abrigos. Mesmo após o tiroteio ter parado, estava tudo cansado e desmoralizado, sabe-se lá até com que ideias... Sabíamos que do lado de fora do arame, o ataque estava bem organizado e como tal para sobreviver não havia que dar chances ou oportunidades.

Na manhã seguinte com a luz do dia só se via destruição. Poucos foram os que se aventuraram para fora dos abrigos. No entanto como era normal principiaram os boatos... o Jeep está destruído... o bar está acabado... ha dois mortos... há inúmeros feridos... na enfermaria só há sangue etc. etc.

Foi bombardeamento diário durante muitos dias. Era afinal S. Domingos. Era a razão pela qual a sede do Batalhão foi para lugar seguro. Foi assim o nosso pesadelo!

Durante os ataques e certas vezes podia-se ouvir o outro lado, sabiamos portanto que eles não estavam longe, e que afinal eram seres humanos como nós, só que defendiam a sua terra a qual não nos pertencia. Eles tinham razão. Nós éramos invasores, éramos seres humanos como eles, com pais e irmãos, alguns casados e com filhos. Ficámos esgotados e sem energia para sobreviver, água não havia a não ser a da chuva, comer não havia, e munições também estavam a esgotar rápido.

A lama acabou por secar e as pernas foram ficando presas como no cimento. As armas, muitas não trabalhavam de sujidade. Estávamos deitados ao abandono e à mercê da sorte ou do destino.

Não veio ajuda... nem do ar, nem por terra, nem tão pouco por água. Esperávamos somente ajuda, mas do Céu. Mais um dia e seríamos todos mortos ou prisioneiros tal foi essa semana maldita.

Os aviões não podiam vir, pois eles estavam tão perto, corriam o risco de ser também feridos ou mortos. Helicópteros não vinham mandar mantimentos, medicamentos e o necessário, pois seriam alvejados... estes foram os boatos!.

Finalmente ao fim de uma semana, fomos ajudados. Talvez tenha sido por Deus... Como ratos saímos das valas. A cara estava amarela, a barba enorme as roupas rasgadas, e havia lama por todo o lado e até ao cabelo.

O choque final foi saber quem ficou ferido, quem morreu etc.

Ficou tudo destruído. Gerador, frigoríficos, fogões até as panelas ficaram como um assador de castanhas! Água não havia. Passamos a beber água amarela dos "poços" da tabanca. Estávamos portanto sujeitos a malária etc.

Era uma Companhia desmoralizada, sem energia sem sono! Uns choravam com o stress de Guerra, outros não falavam, outros ficaram sem o sorriso da juventude.

Finalmente um dia um helicóptero!

Foi tudo reunido para ouvir o Governador da Guiné. Senhor Spínola eu agradeço imenso e esteja onde estiver, esteja em paz, como em paz nos deixou!
Agradeço as palavras, não de um General mas palavras de um amigo, palavras de reconhecimento.
Agradeço ter compreendido estes jovens que foram deixados a mercê das armas e da sorte.

Senhor Spínola... muito e muito obrigado por ter dito a todos nós, em frente do Comandante da Companhia que... a culpa não foi nossa... que: "a culpa foi do vosso Comandante que deixou que o vosso quartel fosse uma carreira de tiro..."!

Resta-me portanto dizer que fomos bombardeados diariamente, que sofremos porque gente sem escrúpulos, sem dignidade, gente agarrada as ideias fascistas e de poder, orgulhosos de uma farda e de peso nos ombros famintos por medalhas ao peito, nunca pediu ajuda! Esse Comandante não teve dignidade humana...

Senhor Spínola, muito obrigado é verdade... aquele senhor desumano, realmente deixou fazer do nosso quartel uma carreira de tiro, onde todos nós fomos o alvo.

Bem-haja.
Plácido Teixeira"

__________

Nota de CV:

[...]
Bernardino, não tenho ninguém da tua CCAV 3365. Obrigado pelos teus elogios ao nosso blogue (nosso, meu, teu, de todos nós). Está na altura de saltares os muros da parada e apresentares-te ao serviço... Sob pena de eu te considerar "desertor"... A Tabanca é Grande e é Nossa. Conheces as regras da casa. Manda as duas fotos da praxe. E conta-nos uma história de São Domingos. Um Alfa Bravo. Luís
[...]

Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6168: O Spínola que eu conheci (14): Sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho do que eu, o Chefe Militar (Torcato Mendonça)

4 comentários:

JOSE CASIMIRO CARVALHO disse...

Camarada:
Li e respeito os encómios ao "Caco"
Infelizmente não partilho da tua efuziva alegria, pois a minha companhia tão vilipendiada foi apelidada pelo seu "cão de guerra" de cobardes e ratos em Gadamael e deu ordens á Força aerea para nos indicar o caminho de regresso (aos que em pánico,pelo holocausto) fugiam pelas margens, ou eram pura e simplesmente abatidos...e á Marinha para não nos recolher das garras da morte, Marinha que muito bem...não obedeceu...
Um abraço

J Carvalho
Gadamael

Manuel Joaquim disse...

Impressionante! Este texto do Placido Teixeira é "um murro no estômago" que talvez possa vir a abrir os olhos aos "poetas"que ainda hoje encenam vitórias (im)possíveis.

Que dizer mais?: Medo, angústia, horror, desespero, abandono...

"Nave de Loucos" à deriva!


Um abraço

Manuel Joaquim
(CCaç1419-Bissorã/Mansabá)

Anónimo disse...

Bernardino:


Não te esqueças do que prometeste há tempos... Agora faltam só as as 2 fotos da praxe:

"Obrigada Camarada Luis Graça, com fotografias e tudo o post tem mais notoriedade. Agradeço também o convite para contar algumas histórias da minha vida na C.CAV. 3365, em S. Domingos. Agora que passei a ter mais tempo disponível vou passar para o papel aquilo que a memória ainda retém, passados 38 anos, e prometo revelar alguns episódios daquele tempo.
Para já, vamos todos comprar água VIVA ao LIDL, para ajudar o povo de S. Domingos. Um abraço,
B. Parreira - Faro"...

Um abração. Até Breve. Luís Graça

JD disse...

Camaradas.
Este texto parece uma imensa ironia, um agradecimento ao ComChefe pelas agruras daquela vida,e, para culminar, a pretexto de ambições e promoções.
O ComChefe pode ter punido o Capitão, mas disso não temos notícia, nem podemos avaliar a justiça.
O Capitão podia ser incompetente, pois podia, mas sofreu com os outros.
E o Comanfante de Batalhão, e a falta de controle que, afinal, não havia sobre a actidvidade operacional, sobre os abastecimentos, sobre a intervenção rápida, sobre a solidariedade na guerra?
Estas são questões que denunciam algumas incapacidades do General.
Abraços
JD