Ao meio-dia de 24.04.70 e após o terceiro apito arrastado, o mais longo dos anteriores, zarpou o “paquete” Carvalho de Araújo, adornado a estibordo, com o BCaç 2912 e alguns tropas individuais a bordo, num total de 500/600 militares.
À medida que o barco se aproximava da barra os choros e gritos lancinantes dos familiares, na Gare Marítima de Alcântara, iam sendo inaudíveis.
Fomos almoçar, a comida era razoável… nunca tinha comido tanta marmelada e queijo à sobremesa como naqueles dias... ainda era a doçura do mel… o fel viria dias depois!
Foi nesse dia que o IN matou os três Majores, um Alferes Miliciano e três Nativos em Teixeira Pinto… ia a bordo quando soube do Massacre do Chão Manjaco… o efeito psicológico que teve nas nossas tropas… o nosso moral ficou muito abatido!
Naquela manhã senti-me só! … Ninguém soube do meu embarque! … Já a bordo é que enviei um telegrama a meus pais… recordo uma cabine telefónica no cais e a Tapada da Ajuda, onde tinha familiares… seriam o pressuposto laço de ligação… mas resisti! Segui só para o desconhecido!
O navio era tão antigo - de 1930 -, que já há muito tempo se dizia que ao fim de cada viagem ia ser abatido ao efectivo… mas só terminou a sua odisseia - transporte de tropas - em 1973… já não honrava o nome do grande capitão tenente Carvalho de Araújo!
Em cada trajecto contava-se uma história diferente passada na anterior viagem… um incêndio... uma avaria… um encalhe… um adornamento maior do que o habitual… a dificuldade em vencer as alterosas vagas… a falta de combustível devido a consumos excessivos… felizmente nunca havia feridos!
Camarote de 1.ª classe do Carvalho Araújo
Sala de jantar do Carvalho Araújo
As histórias fariam parte da nossa preparação psicológica?
Ao segundo dia da viagem, 26-04-70, vimos à nossa ré o “Vera Cruz”, que após as habituais saudações depressa nos ultrapassou… levava outras tropas e destino… nós seguimos a ronceira viagem de 7 dias… continuávamos a ver o azul do céu e do mar!
Passagem do Vera Cruz, (CCN; 1952-1973;), com dois Batalhões a bordo, pelo Carvalho de Araújo em alto mar
Certo dia apareceram à ré uns golfinhos a fazer-nos companhia… o Golfinho, símbolo do conhecimento… a popa era o local onde se lançava ao mar restos de comida!
E mais umas milhas percorridas - (equivalências: - milha marítima = 6080 pés ou = 1852 m) - tivemos a visita de peixes voadores… alguns destes com as suas curiosidades/fantasias acabaram os dias no convés do navio.
Já Santo António dizia no “Sermão aos Peixes” que nem eram peixes nem pássaros… digo eu, são criaturas de Deus!
Na Guiné havia peixes voadores, segundo o livro Missão na Guiné, do E.M. Exército, conquanto nunca por lá os ter visto.
O mar foi nosso amigo embora assustasse quando o barco ondulava e as ondas batiam nas vigias dos camarotes. Houve camaradas que devido aos enjoos nunca saíram das suas execráveis camaratas nos porões adaptados - (?) - ao pessoal!
Os dias eram passados a dormir, jogar cartas, conversar, escrever, ler… Encafuados nos porões iam as Praças em condições deploráveis! Os Oficiais e Sargentos da CCS viajaram em camarotes de 1.ª classe… Foram elementos da CCS que fizeram o reconhecimento do navio.
A tripulação do barco levava duas enfermeiras, que de trabalho específico nada vi. Vi-as jogar cartas, passear, conversar… Uma era especialista em jogar crapô! O que queria era jogar as cartas! Tinha a sua “tabanca” na coberta do navio… a outra, mais jovem, andava lá por baixo nos camarotes! Tinham de fazer algo no meio de tanta juventude.
Contrabando também o havia… vendiam tabaco e relógios CAUNY PRIMA a 500$00… o meu CAUNYMATIC ainda funciona!
Já nas águas da Guiné tivemos a escolta da Lancha patrulha P351… era o começo da guerra!
Lancha P351 a escoltar o Carvalho de Araújo nas águas da Guiné
No cais do Pidjiguiti começaram os nossos trabalhos em 01-05-70…
No convés do navio, já fundeado em 30-04-1970, mostrava um furriel, de caneta e bloco em punho, a sua 1.ª picadela de mosquito na Guiné!
Esta é uma história de um entre muitos milhares de jovens… infelizmente muitos não puderam contar as suas histórias de uma guerra injusta para todos os intervenientes… uma guerra de guerrilha que nos era imposta por cobiças exteriores, segundo o governo… uma luta pelas populações…
Quarenta anos decorridos é a imagem que guardo da partida - Lisboa - e da dolorosa viagem de longo curso - 3000 Kms - até à Guiné!
Um abraço
António Tavares
Ex-Fur Mil SAM
Foz do Douro
24 de Abril de 2010
__________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)
Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5703: O cruzeiro das nossas vidas (15): O dia do embarque (José Marques Ferreira)
8 comentários:
Antonio Tavares
Tambem eu embarquei a 19 Set 1970 no C Araujo,"Paquete de luxo que adornava para bombordo".
Os meus Pais e irmãos(à excepçao de um-inevitável pelo acaso)só souberam que tinha embarcado por Postal enviado dos Açores .
Curiosamente tambem me lembro bem do queijo e da marmelada!! Lembro-me tambem muito bem da Carne aasada que sempre me soube a nafta.Esse cheiro a nafta mantive-o durante toda a santa viagem e já não conseguia comer carne!!!
Dos golfinhos e dos voadores tambem recordo. E do jogo de atirar garrafas e vasilhame borda fora ...tambem!!! e as "corridas de cavalos"!!!!
Enfermeiras , se as havia não as cheirei!!!!???
Talvez por isso é que o "vomitório" do Pessoal nao tinha fimm!!!!
Um abraço
Luis Faria
Caro António Tavares,
A tua viagem no Carvalho Araújo a única coisa que teve de bom foi teres deixado ali o barquinho bem à mão para me trazer a mim e aos outros no dia 5 de Maio de l970 de regresso ao continente como se dizia na altura, sem nos querermos referir a qualquer supermercado.
Devo-te dizer que no regresso a Lisboa continuou a navegar inclinado e demorou uns execráveis 10 dias a chegar, depois de ter passado e aportado na ilha de S. Vicente, sem nos permitirem saír do barco.
Trazíamos como companheiros de viagem para além dos vivos as urnas dos malogrados majores e alferes de Teixeira Pinto.
E assim acabou a comissão de serviço da Cart. 2412 "SEMPRE DIFERENTES" em terra da GUINÉ.
Adriano Moreira - Ex.Fur.Enf.
Desculpa voltar outra vez, mas esqueci-me de finalizar com um grande abraço do camarada e amigo, portanto aqui está ele.
Caro António Tavares
O Carvalho de Araújo estava com pressa de chegar á Guiné, para ter demorado só 7 dias, o habitual eram 9!
Mas ainda bem que chegou e bem, senão a esta hora ainda
estavamos "na paragem" á espera do "barquito" para regressar a casa. Pois foi na volta dessa que a minha Compª a CART 2412 regressou, a 5 de Maio 1970, chegando a 14 de Maio, demorou looongos 9 dias, e também se contava que seria a sua última.
Mas foi boa a viagem ou não fosse a do regresso, infelizmente não o foi para os malogrados três Majores e o Alferes que regressaram connosco em condições trágicas.
Um abraço
cumprim/jteix-veterano de guerra
ex-Furriel Milº Art.
CART 2412-68/70 Bigene-Guidage-Barro
Também tive o previlégio de navegar no Carvalho Araújo, justamente a 19 Setembro de 1970.A viagem se bém me recordo demorou cerca de 15 dias, uma vez que paramos nos Açores e em Cabo Verde, para deixar tropas em fim de comissão e dar boleia a outras.
Não me posso queixar muito pois o cruzeiro correu-me de feição.Primeiro, coube ao Luis Faria fazer o reconhecimento ao barco e reservar os camarotes e restantes instalações para o pessoal.Ao que me recordo, havia X camarotes de 1ª Y de 2º Z de 3ª e os porões.Destinado aos oficiais os de 1ª.Sobrou um para os sargentos, que naturalmente o Luis se abetuou com um de 3 camas e por exclusão de partes, para além dele próprio, os outros compinchas fui eu próprio e o Almaida.Acho que ao 1º Sargento Guerreiro e o 2º, Bastos, lhes foi reservado um de 2ª.
Segundo, como em 15 dias de viagem, só calhou 1 ou 2 dias de Sargento Dia ao barco e como a "antiguidade era um posto", só me calhou 1 dia e em pleno mar alto, logo nas paragens nos Açores e em Cabo Verde, tive sempre folga.Nesses dias era terrível descer aos porões e verificar o que nos competia.As condições dos soldados.Eu até já tinha percorrido os esgotos de Lamego, mas não tive estômago para aquilo.Valeu-me o Cabo Dia, o Romão que fez o serviço por mim e desceu lá ao fundo.Um abraço para ele.Só quando cheguei a Bolama é que me apercebi que tinha terminado o cruzeiro.
Aquele abraço.
JORGE FONTINHA
Também viajei no n/v "Carvalho Araújo". Foi em Janeiro de 68 entre Ponta Delgada (Açores) e Lisboa, aquando da incorporação militar. Serviço impecável numa viagem "civil". 4 dias de viagem, com paragem no Funchal. Em Abril de 69, novamente a viagem Ponta Delgada/Lisboa, agora mobilizado para Angola.
Durante cerca de 4 décadas o "CA" e o "Lima" fizeram viagens mensais entre Lisboa e os Açores, tocando (quando o tempo o permitia) todas as ilhas, sendo certo que só atracavam em Ponta Delgada e na Horta. Talvez a partir de 69 ou 70 o "CA" passou então a fazer o transporte de tropas para a Guiné. Nunca o conheci "adornado" (mas são elucidativas diversas fotos publicadas no blogue), como sempre conheci o "Lima". O Paquete "Carvalho Araújo" nunca será esquecido - geralmente por bons motivos - pelos açorianos da minha geração.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
Fontinha,grande Amigo
Essa do Luis Faria se "abotoar" com um camarote de luxo, é verdade e de direito !?.Então eu nao comandava o 4º GRCOMB ? Essa é que é,donde o Srg "era inferior"!!!!
Já agora, que puseste a boca no trombone ,vê lá se acrescentas que desenrasquei camarotes para alguns dos soldados do "MEU" 4ºGR,que por "coincidencia e só",tambem era teu e que os Alferes ficaram "quilhados"por não terem conseguido "abichar nada"!!!!!
Um abraço para ti Fontinha e vê lá se mandas umas coisitas que sabes para publicação. Vê se dás um pouco de trabalho ao Vinhal que está fartinho de descanço!!!
Tavares desculpa lá esta converseta com o Fontinha no teu espaço
Abraço
Luis Faria
"O Paquete "Carvalho Araújo" nunca será esquecido - geralmente por bons motivos - pelos açorianos da minha geração."
Nem mais nem menos!
Um abraço,
José Câmara
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