1. O nosso Camarada Belmiro Tavares, ex-Alf Mil da CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem.
Um oficial... endiabrado
A C.Caç. 675 “nasceu em Évora em princípios de Janeiro de 1964; os aspirantes e cabos milicianos desta unidade tinham acabado os seus cursos de COM e CSM, respectivamente, cerca do dia 18 de Dezembro do ano anterior; os soldados tinham recebido a primeira parte de recruta noutras unidades.
Cento e tantos mancebos das origens mais díspares reuniram-se, formando o esqueleto da companhia; outros (os das especialidades) se nos foram juntando com o andar do tempo.
Comandava esta companhia o então Cap. Alípio Tomé Pinto, homem que desde logo se nos impôs quer pelas suas elevadas qualidades morais e humanas quer pelos distintos conhecimentos das artes bélicas quer ainda pelo modo simples claro, humano, justo e firme como lidava com os seus subordinados.
Ele era o capitão que nunca deixou de ser humano e o homem que nunca esqueceu os seus deveres de militar além de ser um exímio, um extraordinário condutor de homens. Era um fora de série!
Cedo a C.Caç.675 começou a dar exemplos de disciplina e de comportamento comprovando que estávamos a assimilar as superiores ideias do nosso chefe. Os nossos soldados eram exemplares, “diferentes” dentro e fora do quartel. Assim começou a formar-se uma unidade muito especial que viria a celebrizar-se na Guiné onde ganhou jus a dois louvores colectivos entre muitas outras distinções e citações honrosas.
Dos subalternos da companhia, um distinguia-se claramente pela sua maneira de ser descomplexado e desinibido quer em serviço quer fora dele; era divertido, brincalhão mesmo nos assuntos mais sérios, bem-humorado, bom conversador sobre tudo e sobre nada; era um pândego!
Esse aspirante, de seu nome completo Artur Alexandre Tavares Mendonça era natural de Felgueiras e oriundo de família badalada na Jurisprudência e na Medicina: o pai era estomatologista... o avô fora Juiz.
Conheci o Mendonça na EPI em Mafra. Com ajuda do Sampaio e um outro cadete, ele organizava excursões todos os fins-de-semana para Lisboa, Coimbra e Porto.
Depois das zero horas de segunda-feira o Mendonça, acabado de chegar da excursão do Norte, entrava na Caserna 15 onde dormiam mais de 200 cadetes e gritava acordando meio mundo:
- Eh malta! Lisboa, Porto, Coimbra! É pra já! Logo poderá ser tarde!
Esta cena repetia-se na madrugada de todas as segundas feiras, sempre no mesmo tom e com as mesmas palavras. Uns tempos mais tarde o Mendonça comentava, garboso:
- Nunca mais ganharei tanto dinheiro como em Mafra! Mesmo sem contar com os cerca de 600$00 do pré!
Num intervalo da instrução o Mendonça perguntou ao instrutor, um oficial do quadro, o “penico” do curso:
- Meu alferes! Qual é mais inteligentes: um aspirante do quadro ou um aspirante miliciano?
O alferes pensou um pouco (a espreitar o furo) e logo respondeu:
- Claro que há oficiais do quadro inteligentes, como há milicianos igualmente inteligentes.
- Os milicianos são sempre mais inteligente... retorquiu o Mendonça: - em 4 meses tiram um curso que os do quadro tiram em 3 anos!
Saímos de Mafra em Dezembro de 1963 e no início de Janeiro reencontrámo-nos como aspirantes em Évora e já mobilizados.
O Mendonça tinha um verbo fácil, fluente. Falando com os soldados usava uma linguagem que eles entendiam perfeitamente o que nem sempre é fácil.
- “Sempre que detectarmos o inimigo perseguimo-lo corajosamente e vamos acossá-lo nos seus covis: se ele estiver perto, estocada curta – uh-uh”, se estiver longe, estocada longa “uhuh”-“uhuh”. Sempre que um soldado fazia algo mais do que aquilo a que era estritamente obrigado ou simplesmente dava nas vistas, o Mendonça chamava-o, elogiava-o e acrescentava sempre nos mesmos termos: - “pelo que fizeste mereces ser louvado... e é o que vou fazer agora mesmo... mas só posso louvar-te verbalmente porque em O.S... só os chefes o podem fazer”.
A conversa do “louvor verbal” pegou de estaca entre os nossos soldados.
Em Évora havia um bar – bowling bar – muito badalado na época onde várias moças exerciam “a segunda profissão mais antiga do mundo”.
Um alferes, - não citarei o nome – combinou com uma das garotas que, quando ele chegasse, ela largaria o que tivesse “entre mãos” para o atender imediatamente e em local reservado. Constava que o tal alferes lhe ofereceu um frigorífico para que ela fosse “só dele”... desde que ele entrasse na sala.
O Alferes Mendonça entrou no bar e abeirou-se da tal moça, desconhecendo o compromisso dela; como ele falava bem com os dedos, começou a passar-lhe a mão no pêlo. Tudo corria bem mas... eis que entra o outro alferes! Ela quis “libertar-se” imediatamente mas o Mendonça não a soltava. Ela deu-lhe uma “dentada” no braço (fez sangue) e rasgou a sua T-shirt de estimação – uma T-shirt de listas estreitas verticais e de cores berrantes.
Houve início de “sururu” entre os dois oficiais mas não chegaram a “vias de facto”. Aparentemente tudo acabou ali... o certo, porém, é que a paz entre eles foi sempre um tanto ou quanto podre.
Qualquer motivo por mais fútil ou insignificante era suficiente para exaltar os ânimos. Um dia em Bissau só não se digladiaram porque os soldados não o permitiram.
Nos anos sessenta os oficiais ainda faziam ronda à cidade, para vigiar o comportamento dos militares fora das quatro paredes do quartel. O oficial usava pistola e espada e era acompanhado por um soldado. Este serviço de escala iniciava-se no fim da instrução e prolongava-se até à meia-noite. Podíamos entrar em estabelecimentos públicos onde pudesse encontrar-se algum militar.
O Mendonça, quando estava de ronda calçava botas altas... para impressionar.
Próximo do QG da então Região Militar Sul havia um pequeno café-bar cujo nome já não recordo: uma entrada estreita, um balcão relativamente comprido ao longo dum “corredor” apertado por onde se passava para uma pequena sala com “talvez” meia dúzia de mesas.
O Alferes Mendonça estava de ronda e, claro, de botas altas; entrou no bar; como habitualmente, os soldados levantaram-se e ficaram em “sentido” aguardando que o oficial os mandasse sentar.
Nisto ouve-se alguém exclamar (sussurrar): - “os soldadinhos estão à vontade e vêm para aqui estes filhos da... e eles são obrigados a levantar o cu da cadeira!”
O Alferes Mendonça não foi de “meias medidas; pegou na espada e deu com ela no costado do “tal” (?) indivíduo; gerou-se grande confusão; um soldado dos “velhos” gritou: - Oh meu aspirante, isto é muito apertado; vamos prá rua!
Os militares “alinharam” no passeio do lado oposto ao tal bar; os civis tomaram posição frente à porta.
Percebia-se que aquela artéria iria ser campo de batalha!
À medida que outros soldados “recolhiam” ao QG ou simplesmente passavam por ali, juntavam-se aos belicosos camaradas; o Alf. Mendonça de pistola (certamente descarregada) em punho, brandia a espada no ar; os soldados “armaram-se” com os cintos; o grupo dos militares era cada vez maior.
Os civis começaram a debandar um tanto desordenadamente; os últimos... nitidamente, fugiram antes que fosse tarde.
Os militares cantaram vitória depois da luta... que afinal não existiu... por abandono da outra parte.
Soube-se logo que o Alf. Mendonça deu a espadeirada na pessoa errada; quem vociferou... afinal era outro.
Aquele grupo de soldados recebeu logo, ali, um louvor verbal e colectivo!
Estivemos em Évora quatro meses.
Cerca das zero horas do dia 8 de Maio entrámos no comboio que nos conduziria ao cais de Alcântara. Pelas onze horas estávamos dentro do navio Uige; ouvida a alocução “encorajadora” do representante do Sr. Ministro, a qual invariavelmente terminava do seguinte modo: - “Ide”! “Boa viagem e feliz regresso!”
O navio levantou ferros e cinco dias depois desembarcávamos em Bissau.
Os primeiros dias na Guiné foram muito intensos! Havia lá, entre a tropa uma descrença enorme! Os militares da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sentiam um prazer enorme em “amedrontar” os “maçaricos” com estórias que, na sua maioria, seriam inventadas, dando largas à sua imaginação.
Logo o nosso capitão, sempre muito atento ao que o rodeava, aconselhou os seus subalternos (recebíamos os seus conselhos como se de ordens se tratasse) a não perder de vista os soldados: - levem-nos para o campo, que joguem à bola, ou a qualquer outra coisa, contem anedotas, escrevam à família, entretenham-nos com tudo mas não os deixem ir à cidade; caso contrário, quando formos para o mato, eles partem já vencidos!
Assim se fez! Só havia intervalos para as refeições e para dormir.
Numa das idas para o campo, o alf. Mendonça “descobriu” uma fazenda... com uma casa grande rodeada de árvores de fruto. Lembrou-se da sua quinta de Felgueiras... a casa da eira! Aproximou-se cautelosamente; queria averiguar se ali também existia... uma casa da eira ou algo semelhante; por entre a vegetação apareceu uma crioula (cabo-verdiana), esbelta, bonita, bem feita de corpo, sorridente, simpática q.b... tinha tudo no sítio... à vista. Conversaram um pouco” o Mendonça ficou louco... sentia-se já dono... daquilo tudo! Horas depois exclamava, olhando para as estrelas: - Meu Deus! Meu Deus! Por que me fizeste tão bonito e tão enfeitiçador?!
No dia seguinte voltou ao local do... crime... que não tinha existido... ainda!
A sereia (cabo-verdiana) apareceu de novo no meio da vegetação... ainda mais desinibida e... menos vestida... quase descascada... pronta (quase) a comer! Palavra para cá... palavra para lá e... num ápice o Mendonça foi convidado (ou fez-se convidado) a entrar na “casa grande” da quinta e “penetrou” também na “quintinha” da crioula doidona. A cena repetiu-se diariamente... o Mendonça era persistente!
Uns dias mais tarde um subchefe da polícia perguntou-me se eu conhecia o Alf. Mendonça; respondi que era da minha companhia.
- Preciso falar com ele... ia-se metendo numa camisa de sete varas... mas que grande alhada!... meteu-se mesmo... mas safei-o... por agora!
Encontrei o Mendonça na cidade e fui com ele à esquadra. O Mendonça estava desconfiado. Mal chegámos o subchefe tira do bolso um BI militar; e pergunta secamente:
- Conhece?
- Sim! É meu!
- Tenha cautela, meu alferes! Muita cautela! Desta já o safei! A “gaja” vinha apresentar queixa contra um alferes que lhe “partiu o cabaço” (catota) Este BI era a prova do crime! Como eu sei que ela já “tirou muitas recrutas”... apanhei-lhe o BI e mandei-a dar uma volta... ao bilhar grande! Mas tenha cuidado! O animal é esperto! O senhor poderá não ter sempre a mesma sorte!
O subchefe estava “inchado” porque tinha safado um alferes; os conselhos eram abundantes... e redundantes.
O Alf. Mendonça fez vénias e mais vénias a agradecer o grande favor que lhe havia sido prestado... mas creio que não ganhou juízo.
Tomávamos diariamente as refeições na messe de oficiais perto do Q.G. onde hoje funciona um hotel.
Antes da sala havia um bar amplo. No fim do jantar, o Mendonça começava a falar para dois ou três oficiais; em breves instantes estava rodeado por quinze ou vinte ouvindo e rindo das suas estórias: a Dona Micas do Concelho, o Zé da “Esquina” que esteve na 1ª G.G. e nem sequer gaseado veio, a garota da eira da sua quinta em Felgueiras, etc.
Estas cenas repetiam-se diariamente; só mudavam alguns dos ouvintes. Cada estória era narrada usando sempre as mesmas palavras.
No dia 28 de Junho embarcámos no navio Alexandre da Silva; no dia seguinte à tarde, desembarcámos em Binta. Era dia de S. Pedro! Anunciámos a nossa chegada com as tradicionais fogueiras a uns 4km de Binta: havia ali umas casas abandonadas que foram o repasto das chamas... comemorando a noite de S. Pedro. Lá longe responderam com uns tiros... aos quais não ligámos importância. Estava dado o mote!
O Mendonça, como atrás foi dito, já não tinha pelotão; como tal tinha de inventar maneira de... matar os tempos livres... que, aparentemente, até eram muitos.
Quando chegámos a Binta, havia ali uma escassa meia dúzia de civis africanos adultos.
O Mendonça reunia dois ou três e contava-lhes as suas extraordinárias façanhas de indómito lutador; levava-os até junto da casa dos oficiais, pegava num velho telefone que ali havia, já sem fios... (estes tinham desaparecido levaria algum tempo), dava à manivela e gritava:
- É de Lenqueto?! Quero falar com o Paulo Lomba! Rápido!
Este era um lutador afamado e um chefe “turra” bem conhecido na zona, a quem chamavam o “barbas”. Ninguém respondia do outro lado (as linhas haviam sido cortadas no inicio da guerra) mas o Alf. Mendonça simulava uma conversação... a solo:
- Chama o Paulo Lomba! Sim, esse mesmo! O Barbas! É esse mesmo! És o Barbas?! Ainda bem que vieste, pá! Desafio-te para um duelo com alfinete ou... corta-unhas! Se quiseres pode ser a murro ou à bofetada ou a pontapé! Aparece cá! Que eu dou cabo de ti! Faço-te em pedaços! Olha! Antes passa por Farim e pede ao chefe de posto que te numere os ossos para que possam depois colocá-los com facilidade no local certo! Eu parto-te todo! Não demores! Estás com medo?! Aparece!
Os ouvintes saíam dali a lamentar a azarada sorte do Paulo Lomba caso ele ousasse aparecer perante o franzino mas indomável Alf. Mendonça que para eles era duro como o aço e comentavam:
- Nosso Alferi Mendonça é homem valente e... roncador!
Com frequência, entre dois goles de cerveja, o Mendonça distribuía “louvores verbais”... e eram muitos, pois ele demorava cerca de duas horas a bebericar uma cerveja de 0,7l. Humedecia a garganta para não parar de falar.
Em data que não recordo, chegaram à companhia, vindos de Farim, dois soldados trasmontanos com uma “bajuda” (leia-se auto-metralhadora pequena) para nos dar apoio em “operações” mais complicadas. Estes soldados eram castiços! Fazia parte do deu equipamento um autentico trem de cozinha (panela, tacho, pratos, copos, talher e... um fogareiro a petróleo. Chegados a Binta, foram “praxados” com uma caçada aos gambozinos nas imediações das instalações sanitárias (feitas em mogno) das praças.
O Alf. Mendonça avistou um destes soldados com o saco na mão aguardando paciente e gulosamente o fantasmagórico animal e indagou:
- Que fazes ai, meu bom soldado?
- Schiu! Não faça barulho, meu alferes, para não espantar os gambozinos; já estão perto!
- Se apanhares algum, vem mostrar-mo; são animais engraçados e próprios para um bom petisco! Se for um bom animal... logo te louvarei... mas só verbalmente, porque em O.S. só os chefes o podem fazer.
Uns dias mais tarde, um destes soldados deu uma volta nas imediações do aquartelamento; entrou numa casa tipo europeu na margem da estrada de acesso a Binta; ouviu gemidos, pé ante pé o soldado aproxima-se; com muito cuidado levanta o mosqueteiro... viu o Alf. Mendonça de “rabo” para cima; despido... “cobria” uma indígena. Perfila-se, faz a devida continência e pergunta respeitosamente:
- Vª Senhoria, meu Alferes, dá licença que me retire?!
O Alf. Mendonça perdeu o “rancori” imaginando que poderia ter sido o marido ou o pai da sua companheira... daquele momento.
Quando chegámos a Binta, havia ali menos de uma dúzia de pessoas; alguns tinham vindo doutras aldeias. Os habitantes de Binta foram obrigados a ir para o mato ou a refugiar-se no Senegal.
Quando se aperceberam que em Binta havia trabalho, segurança e comida, começaram a apresentar-se no posto fronteiriço de Guidage onde os recolhíamos e trazíamos para Binta. Inicialmente foram alojados em armazéns de zinco até que a povoação foi reconstruída. Abrimos ruas perpendiculares e construía-se uma casa em cada esquina; havia uma horta para cada família.
À volta da aldeia abrimos uma CREB (circular regional exterior de Binta) ao longo da qual havia os necessários postos de sentinela.
Os jovens foram “militarizados” e faziam a autodefesa da aldeia.
Durante a noite, o oficial de serviço passava “ronda”, em viatura, certificando-se que tudo estava em ordem.
Um dia o Alf. Mendonça “engatou” uma jovem africana que vivia com um destes “milícias”. Estava muito entretido com ela na cama quando o companheiro dela entrou em casa com a “mauser” na mão.
O Mendonça levantou-se à pressa e gritou para o jovem:
- “Firme!” “Sentido”
O milícia obedeceu cegamente; o Mendonça pegou na sua roupa, atabalhoadamente, saiu de casa em corrida e vestiu-se já no exterior.
Não se sabe quanto tempo o jovem milícia ali ficou em rígida posição de sentido... não lhe bastava ter sido traído!...
No meu pelotão havia um soldado um tanto estranho e, inicialmente, medroso q.b.; demorou a adaptar-se.. aos perigos do mato... mas conseguiu!
Na nossa primeira viagem a Guidage, demorámos 12 horas a percorrer em viatura outros tantos Km. Não houve grandes complicações com o inimigo; mas viajar numa “picada” em época de chuva é... o fim... da dita.
A meio caminho, em Cufeu, ordenei ao Fur. Moreira que, com a sua secção, passasse a Bolanha (havia ali duas pontes) e montasse segurança um pouco à frente. Quando se preparavam para tomar posição na berma da estrada, avistaram uns combatentes inimigos umas centenas de metros mais à frente.
A secção emboscou-se imediatamente. O bom do Frazão lançou-se em voo picado para fora da estrada; enfiou a cabeça num buraco que ali havia e disparou... para o ar – perdeu-se a surpresa e os independentistas... fugiram.
Chegámos a Binta no dia seguinte; logo o Alf. Mendonça teve conhecimento do sucedido; procurou o tímido soldado e comentou:
- Oh Frazão! Tu metes a cabeça no buraco e o que se... lixe! Assim não podes ser louvado... nem verbalmente.
Eu Tinha um outro soldado, de alcunha “o sujo”... muito complicado. Não tinha medo da guerra (inconsciência pura)... de arma na mão até não era tão mau quanto parecia. Era incapaz de subir para o “slide”; impossível fazê-lo passar o “plano inclinado”; era um fumador inveterado.
Coloquei um pacote de tabaco no topo do “plano inclinado” para que ele subisse até lá e recebesse o brinde... tremia que nem varas verdes... eu insisti... quase caíamos os dois.
Tentei convencê-lo a aceitar uma troca para não ir ao Ultramar e eu dava-lhe 500$00... nada! Nem pensar! Tinha pavor do escuro... sozinho.
A meio da comissão disse-me que não conseguia dormir... a garota do calendário do companheiro do lado perturbava-o... provocando insónias.
Contei isto ao Mendonça que falou ao Eurico com ar doutoral, convincente:
- Eu sei, rapaz, qual é o teu mal; isso até pode ser grave mas eu vou tratar-te... com mas rezas que eu sei, tu ficas bom em pouco tempo!
O Mendonça vasculhou as suas entranhas para por a descoberto os seus dotes dramáticos e iniciou a representação da benzedeira... com o ar mais sério do mundo:
- Eurico! Olha bem para os meus olhos.
Com a testa a menos de um palmo do Eurico, inquiriu:
- Que é que vês?
- os seus olhos, respondeu o Eurico.
- Tens de dizer: vejo os olhos de Vª. Senhoria.
O Eurico repetiu. O Mendonça continuou:
- Não deixes de olhar nos meus olhos e ao que eu disser, respondes: Ámen!
- Alá seja contigo!
- Ámen!
- Alá é grande!
- Ámen!
- Alá te proteja!
- Ámen!
- Agora ao que eu disser, tu respondes: Alá seja comigo.
- Alahu Waquibaru!
- Alá seja comigo!
Aqui o Mendonça abraçava a sua vítima, dava-lhe palmadas nas costas, na testa e no peito e continuava.
- Alá salam allek!
- Alá seja comigo!
- Eurico! Benze-te com a mão esquerda!
A muito custo o soldado conseguiu benzer-se com a esquerda.
O Mendonça continuou a dar largas à sua fértil imaginação:
- Belzebu! Abandona o Eurico.
- Ámen, dizia o soldado.
- Eurico! Tosse com força! Mais forte!
Aqui o Mendonça tossiu também várias vezes e vociferou:
- O “danado” já saiu do teu corpo! Agora pretende penetrar no meu! Mas eu dou cabo dele! Eu esmago-o!
Tossiu mais um pouco; cuspiu! Bateu com os pés no chão e exclamou triunfante:
- Já está! Esmaguei-o! Eurico, estás curado! Podes ir! Que Alá te acompanhe!
Na verdade o Eurico já parecia outro!
Na manhã do dia seguinte o Eurico procurou o Mendonça para agradecer... penhorado:
- Muito obrigado, meu Alferes! Há meses que não dormia tão bem!
- Não precisas agradecer, meu bom rapaz! Não te esqueças de dizer sempre três vezes ao deitar:
- Alá seja comigo! Só Alá é grande!
O Alf. Mendonça era (é) um bom camarada e um companheiro seguro. È dos tais que não engana... nunca!
Um dia em Binta na sala de oficiais durante uma refeição falou-se de obrigações e deveres, voluntarismo, ser ou não um bom colaborador. O Mendonça, dirigindo-se ao capitão, explanou as suas ideias:
- Na tropa não quero ser castigado! Nada pior podia acontecer-me que ser castigado! Também não farei nada, conscientemente, para ser louvado! No dia-a-dia farei apenas o mínimo para não levar um castigo!
O Alf. Mendonça era inteligente e era dono duma memória prodigiosa... dita de elefante. Quando bem-disposto (leia-se, fora da vista do capitão) declamava excertos de vários autores, principalmente Camilo; recitava “O Espingardeiro de Guimarães” – um texto de página e meia da selecta literária.
Como atrás foi dito o Mendonça comandava um grupo de soldados africanos e milícias (africanos militarizados... mas pouco), os seus black boys, quer na protecção das viaturas quer a montar emboscadas em locais não muito perigosos. Especializou o seu pessoal na defesa anti-aérea, colocando soldados em cima das árvores para... detectar e alvejar aviões.
Não recordo o motivo, mas o Mendonça passou uma noite em Farim. Depois do jantar tornou-se o alvo das atenções a contar as “estórias da sua vida” que pareciam invenções da sua fértil imaginação; ele afirmava que eram verdadeiras... e eram, como pude comprovar uns anos mais tarde – veremos a seu tempo.
Palavra pede copo; se um bebe... todos bebem! Um capitão (pouco depois deixou de o ser, porque foi promovido e passou a ser o 2º comandante do Bat. Art. 733) ficou eufórico... etilizado. Falou-se do oficial de operações (que estava ausente); aquele ainda capitão, por entre alguns soluços, afirmou convicto:
- O Capitão F., embora não pareça, é um gajo inteligente... é mesmo muito inteligente... ele é quase tão inteligente quanto eu!
Era noite alta... um avião, inesperadamente, passou nas imediações de Binta – caso esporádico.
O apontador da Browning, uma metralhadora anti-aéreo 12.7 saltou de imediato para o seu posto, aguardando ordens do comandante interino; só pensava em fazer o gosto ao dedo.
O Alf. Mendonça deixou o tempo correr... já o avião estava fora do alcance da metralhadora; dirigindo-se ao apontador, comentou:
Deixa-os ir, meu bom rapaz! Eles não nos fizeram mal!
Foi uma decisão acertadíssima! Tratava-se dum avião da F.A.P., um dakota – que se deslocou a Farim, três vezes durante a noite, para recolher quase duas centenas de feridos graves dum atentado durante um batuque.
Dada a gravidade da situação, o avião sem meios de orientação nocturna, “seguiu” a iluminação dos vários quartéis e cumpriu a missão.
Mas ninguém se lembrou de avisar os quartéis que iam ser sobrevoados! Podia ter sido um desastre bem maior!
Nós íamos a Farim com certa frequência.
O Alf. Mendonça ia comandar a coluna militar. À hora aprazada, os soldados ocuparam já os seus lugares nas viaturas e o comandante interino não aparecia.
Um soldado foi procurá-lo no seu quarto; encontrou-o de rabo para o ar, “escondendo” uma indígena entre ele e o colchão... em movimentos acelerados e sincronizados.
Este soldado não pediu licença para se retirar mas ausentou-se em “passo de corrida” sem provocar a “perda de rancori” do nosso Alferes.
Um pouco a desoras, lá fomos até Farim depois de o Mendonça ter “mudado” o óleo.
A nossa comissão acabou... as estórias do Mendonça... nem por isso.
Desembarcámos em Lisboa no dia 3 de Maio de 1966.
Gozadas as merecidas férias, o Mendonça partiu para a Bélgica donde regressou com um canudo de Engenheiro Têxtil.
Partiu logo para a América do Sul onde estagiou e trabalhou durante uns anos.
De novo em Portugal, logo emigrou para os países do Norte de África, com os quais ainda mantém contactos interessantes.
Abandonou a emigração e aplicou os seus conhecimentos na Coelima; era um engenheiro muito disputado; a CUF tentou traze-lo para o Sul mas ele entendeu que “teria de ser muito bem pago” para abandonar o seu Minho.
Hoje vive na sua quinta em Felgueiras. Publicou alguns livros sobre a sua especialidade; dedica-se às palestras e à formação de quadros em grandes empresas do ramo.
A C.Caç.675 tem reunido, todos os anos, no 1º ou no 2º domingo de Maio para relembrar a nossa passagem pela Guiné, venerar os nosso mortos e pôr a escrita em dia... verbalmente. O Mendonça andou uns tempos “fora da mãe” devido à sua permanência no estrangeiro.
Um dia, durante umas férias no Norte, fui procurá-lo a Felgueiras. Almocei no Stop bar... e bem. Acabado o repasto, ao dirigir-me à minha viatura, encontrei um cavalheiro mais ou menos da minha idade e perguntei-lhe se conhecia um tal Artur Mendonça; acrescentei logo outros elementos que poderiam ajudar à identificação. O homem empertigou-se e respondeu sorridente e com mestria:
- O menino Arturinho é meu grande amigo!
Descreveu um seu número de atributos abonatórios do amigo comum e adiantou:
- O senhor segue por este estradão ao longo daquele muro que circunda a quinta do meu amigo; quando encontrar um “rombo” no muro, pode entrar; logo verá a casa dos caseiros onde lhe darão todas as informações de que necessite.
Se eu não agradecesse a grande ajuda e me despedisse, ainda hoje estaria ali a ouvir aquele homem a “panegiricar” o amigo Mendonça.
Entrei na quinta pelo tal “rombo” no muro e deparei logo com duas casas – piso térreo e 1º andar – a ladear numa eira; à sombra duma árvore de fruto, uma senhora, na casa dos 40, fazia renda de bilros.
Fiquei estupefacto! Deveras surpreendido!
Eu tinha aquele local com todos os pormenores na minha mente porque ouvi inúmeras descrições minuciosas daquele ambiente bucólico e daquela gente simples.
Depois de curtos cumprimentos perguntei:
- É por aqui que mora o senhor Artur Mendonça, um “jovem” mais ou menos da nossa idade?
- Ai! Procura o menino Arturinho?
- Deve ser mesmo esse; um “rapaz” que esteve comigo na Guiné.
- Mas ele agora não mora aqui; o pai faleceu e esta quinta ficou para a irmã que mora acolá, naquela casa.
Apontou para uma casa enorme, meia solarenga, onde o Mendonça vivera na sua juventude.
- O senhor conhece bem o menino Arturinho? Eu gosto muito dele!
- Estive na tropa com ele; 4 meses em Évora e dois anos na Guiné. Ele falava muito desta quinta e duma moça que vivia com os pais na casa da eira.
- Ele falou-lhe de mim? Que bom!
- Falou “carinhosamente” da moça que vivia na casa eira, que pela descrição, era mesmo esta casa.
- Pois era! Eu era a única moça que cá vivia. Eu gosto tanto dele! Agora vem cá raras vezes!
O Mendonça fez-nos repetidas descrições minuciosas, sempre iguais, utilizando de cada vez os mesmos vocábulos; insistentemente nos falou daquele ambiente campesino e daquela bilreira.
Se eu tivesse tempo e alguma pachorra para continuar a conversa, confirmaria mais algumas minúcias sobre a vivencia do Mendonça naquelas paragens.
Saí pelo mesmo “rombo” do muro, entrei no carro para circundar meia quinta e entrar pela porta principal.
Reencontrei ali o meu primeiro informador. Agradeci mais uma vez o eficiente serviço prestado, e perguntei:
- Por acaso conhece a Dª. Micas do Concelho?
- Não conheço eu outra pessoa! Mas já está um tanto acabrunhada... não diz lé com cré! Era também muito amiga do menino Arturinho!
- E a mercearia dela?
- Já não existe! Os familiares fecharam-na.
- Ouviu falar do Sr. Comendador?
- Sim! Ouvi falar dele; dizia-se que era pai da Dª. Micas.
Uma vez mais eu pude certificar-me que as estórias do Mendonça não eram invenção da sua imaginação prodigiosa.
Mais uma pergunta inquiridora:
- Por acaso conhece um senhor, certamente bem mais velho que nós, a quem chamavam “Zé da Esquina”?
- Esse morreu há já uns bons anos! Bom homem! Bom amigo também do menino Arturinho!
- Por que lhe chamavam “Zé da Esquina”?
- Ele foi chefe de quina da Legião Portuguesa e dizia que fora “chefe de esquina”.
- Sabe se ele participou da G.G.?
- Andou na guerra de 14/18, sim senhor e até escapou aos gases! Sei que foi companheiro do “Milhão”!
O Mendonça nunca nos falou do “Milhão” mas sabemos que foi o nosso grande herói da 1ª G.G.
Entrei de carro na quinta e parei num terreiro amplo junto à casa principal; tudo bem tratado: vinha exuberante e bem aramada, horta verdejante; a água cantarolava, monocórdica, de várias fontes; flores para todos os gostos! Falei com a irmã e a mãe do menino Arturinho que me facultaram o seu telefone e endereço.
O Alf. Mendonça falava frequentemente na Dª. Micas do Concelho; era uma senhora anafada, quase gorda; era merceeira e delegada do MNF em Felgueiras.
Nessa qualidade incentivava os jovens à defesa do “nosso” Ultramar.
O Mendonça visitava-a amiudadas vezes.
Dois dedos de conversa e a Dª. Micas, “cruzando os braços para suportar os volumosos seios, olhando para uma fotografia emoldurada e suspensa sobre a porta de passagem para a habitação, comentava embevecida”:
- Como o meu pai era bonito! Não acha menino Arturinho?! E que bem que lhe fica a encomenda! Referia-se, claro, à comenda.
Ela seria filha bastarda do comendador!
No fim, ela oferecia ao Mendonça dois rebuçados, esclarecendo, de imediato:
- Sou eu que tos dou! Estes não são do MNF!
O Zé da Esquina era uma figura meio castiça... meio badalhoca! Arrotava com grande ruído e comentava: “é porco mas “aleveia”! “Participou na 1ª G.G. e nem sequer gaseado veio!”
Depois da minha ida a Felgueiras, na primeira reunião da C.Caç.675 o Mendonça já esteve presente; fiz uns comentários amistosos ao que ele retorquiu de imediato:
- Oh Tavares! Olha que por vezes as coisas não são o que parecem!
- Tens razão! Mas neste caso as coisas são bem mais do que parecem!
- Talvez tenhas razão! Mas... é chão que já deu uvas!
O tempo passa! A amizade fica... vai crescendo!
Em 2010 fiz termas perto de Resende (Lamego). Decidi confraternizar com os companheiros de entre o Douro e o Minho. Escolhi Felgueiras para lugar de concentração e almoço.
Procurei o Mendonça que logo me propôs que nos encontrássemos na sua quinta para a “abrideira” (abrir o apetite – aperitivo) e escolheu o restaurante; comemos bem!
No fim do almoço convidou-nos a passar de novo pela sua quinta... para mais num copo; o vinho era extremamente bom, maravilhoso – um autêntico néctar do Olimpo.
O sol ia descendo. Eu tinha pela frente mais de 100km de estradas desconhecidas. Também no Minho, de noite... todos os gatos são pardos!
Sugeri ao meu amigo que me oferecesse umas garrafas de vinho para eu saborear nos dias seguintes.
Havia ali um tanque de pedra, de grandes dimensões, para onde jorrava uma grande fonte de água cristalina, pura, deliciosa; era quase tão boa como o vinho! Que frescura!
Coloquei o braço nos ombros do Mendonça e segredei-lhe... de modo que todos ouvissem:
- Enquanto esta água escorrer para este tanque, não faltará vinho nesta quinta!
Ele riu-se e comentou sem perda de tampo:
- Oh Tavares! O meu vinho é muito bom e não necessita de mais água!
O Mendonça embora um pouco mais gordo (deixou de fumar) continua a ser o mesmo... só ligeiramente mais velho.
Lisboa, 08 de Junho de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil. Inf. da CAÇ 675, na disponibilidade
P.S.: O Mendonça autorizou-me, “verbalmente” a escrever sobre os seus feitos, façanhas... ou avarias e dá-los ao prelo!
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série de 5 de Maio de 2011 >
Guiné 63/74 - P8228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (6): Testa de Ponte