
Queridos amigos,
Se alguém ainda tem ilusões que acabaram os livros misteriosos esta “A Pele dos Séculos” irá trazer algum desengano e surpresa. É, do princípio ao fim, um equilíbrio instável de uma escritora inequivocamente fascinada por aquela África onde vivemos e o uso exuberante de um português antigo, manifestamente não convivente com o objecto amado. Daí alguns equívocos que poderá suscitar, mormente se se trata de literatura comprometida (mas será que toda a literatura não é ela própria, em si, comprometida?), qual a mensagem que pretende fazer passar sobre os desastres da guerra.
Trata-se de um livro esgotado e estranhamente esquecido. Talvez na recensão se possam encontrar essas razões.
Um abraço do
Mário
Os desastres da guerra
(ou quando a literatura torna real o que a História deixa no olvido)
Beja Santos
O livro “A Pele dos Séculos”, de Joana Ruas (Editorial Caminho, 2001) é um romance a vários títulos inqualificável: envereda pela dissertação histórica, faz constantes apelos à exaltação etnográfica, etnológica e antropológica; mescla vários discursos entre o português antigo e os linguajares contemporâneos; recorre abundantemente a histórias entrecruzadas em que os protagonistas vagueiam por labirintos, encontram-se e desencontram-se, iludem-se e desiludem-se, entusiasmam-se com a gesta dos combates ou rapidamente prevêem os infortúnios das falsas mudanças. É uma história da Guiné a partir de muitos sonhos africanos, um olhar para dentro do movimento independentista, apercebendo-se das contradições, traições e o fim dos sonhos que alimentaram a luta armada. Joana Ruas culmina com este romance uma experiência guineense prolífica e versátil, conforme consta dos seus dados curriculares: “Na Guiné com o PAIGC”, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974; no jornal da Guiné-Bissau, Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa; traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos bijagós), a lenda da origem das saias de palha; escreve o romance “Corpo Colonial” publicado em 1981; é autor de uma comunicação intitulada “A Guerra Colonial e a Guerra do Futuro”, apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizada pela Universidade Aberta em 2000.
A obra tem uma trama complexa: meninas que se encontram em Angola nos anos 50 e que ciciam dentro de um mosquiteiro; no final do romance, uma delas escreverá que foi à procura da outra na Guiné-Bissau, desencontraram-se, mas a que foi procurar encontrou os elementos para escrever este romance. O romance é caleidoscópico: emerge através de uma dessas histórias de encantar e sabemos que a guerrilheira que é procurada pela autora se chama Julieta; ela sujeita-se a toda a iniciação em que se mistura o animismo e o islamismo, é um mero pretexto para entrarmos no palco da guerra mas também para conhecermos as lendas e a épica dos povos africanos.
Poucas serão as circunstâncias em que Joana Ruas irá detalhar em corpo-inteiro os seus protagonistas. Uma dessas excepções tem elevado recorte literário, como se transcreve: “Dimingo, o engraxador, entrou pelas traseiras e guardou a um canto a caixa com as escovas e as latas de pomada de graxa; esticou o pano de lustrar, uma flanela polida que fazia, ao roçar pela sola das botas dos soldados aquele sonante estalo tá… tátá tão bem feito que era como a sua assinatura bem rabiscada. A verdade é que era bastante procurado pois gostavam do som e ainda daquela carícia prolongada da tira da flanela no calcanhar da bota, fazendo, zuztruz, zuztruz. E quase sempre, de gorjeta, lhe atiravam uma moedinha ao ar que ele apanhava fazendo uma curva bem ilusionista, com a mão, por detrás das costas. E enquanto engraxava abanando a cabeça com ar despreocupado, batendo a tira de feltro ao ritmo do engraxar um ritmo de swing, ia escutando as conversas dos soldados”.
O romance faz gravitar paixões diabolizadas como os amores de Gaspar por Manuela, que o agente da PIDE Travassos, pai de Manuela procurará dinamitar. É num discurso de possessão que o leitor será confrontado com o estéril a que chegou a relação entre Travassos e Bárbara, a sua mulher. Eles trocam acusações e estas, simbolicamente, valem a metáfora da utilidade ou inutilidade daquela guerra. Um tocador de harpa atravessa toda a Guiné, é o novo pretexto para se falar das guerras da religião, depois é introduzido Koloba Mané um pescador que faz o seu ofício no rio Pobreza. Os nomes das personagens não vêm ao acaso: há o rio Arranja a Vida, há um alferes que se chama Pais Sidónio, o tocador de korá Amílcar anseia por conhecer Amílcar Cabral; o médico cubano chamava-se Ernesto como Che Guevara, etc. Joana Ruas, é perceptível, está amplamente documentada sobre os cancioneiros de várias etnias, conhece-lhes os usos e costumes, recupera a atmosfera da Guiné-Bissau de ambos os lados, confabula delações, intrigas, sortilégios.
Uns lutam pela independência, outros combatem irmanados pela sobrevivência. Uns são como Pedro Pão e Água, os portadores da História, grumetes, vadios, à cata do futuro; igualmente a guerra suscita equívocos, até os do coração, mulheres crescidas são perseguidas por quase adolescentes em elevado estado de solidão; Julieta, a guerrilheira, não resiste a tomar decisões implacáveis, como o fuzilamento de guerrilheiros negligentes, está endurecida, de luto por dentro.
Joana Ruas também não ilude a enorme atracção poética mesmo no rebuscado das imagens mais violentas que sacodem aquela guerra, por definição ditando as regras do destino incerto de toda a gente: há fábulas de gente morta que ressuscita, há quase antropomorfismos, quando necessário mascara-se o rigor histórico e Amílcar Cabral aparece em Conacri na noite da invasão, em 1970. As batalhas são estranhas, o vitorioso sente-se derrotado e aquele que é obrigado a fugir veste a indumentária do herói. Dentro desta poética, descobre-se que o maior dos desastres da guerra não é a solidão nem o medo, é a lucidez no entendimento de que depois da guerra o guerrilheiro ficará amolentado pelos prazeres da praça conquistada, Bissau, a gravitação do poder. Ao de leve, Bissau não acolheu os homens vindos do mato, quando chegou a independência, deixou-os entrar, fê-los cair na armadilha de que o bom viver já não eram os sonhos da guerra, o viver frugal mas empanturrado de sonhos. É deste ângulo que se pode entender qual o uso do imaginário que Joana Ruas pretende para esta deambulação ou dolorosa caminhada de africanos à procura de uma Pátria, caminhada de enganos e logros, em que o passado pouco ensina ao presente, a chegada a Bissau foi um corte no rio do tempo. É assim a pele dos séculos, estar à espera do fim da dominação, o africano, desesperado, ainda sonha no devir da Guiné como nação africana portadora de futuro.
Nestes termos, é uma literatura em que o escritor europeu se embrenha no compromisso do diálogo multicultural, enovelando mitos, criando máscaras, fé nos deuses, fascinado por amores imortais, que depois se suspendem ou matam, imprevistamente. Guiné 63/74 - P8702: Notas de leitura (268):É uma literatura de signos e de equívocos: o leitor europeu chega a poder pensar que a autora se embriagou com a épica que forjou nos guineenses; e o leitor guineense chega a poder pensar que a autora se entusiasmou com aquele mosaico étnico e com o desespero daqueles desastres da guerra que terão deixado a Guiné sem futuro, tudo por obra e graça de uma incapacidade da Guiné, à imagem de um continente, não ter meios ou desígnio para se erguer e levantar o Estado. É esse mesmo equívoco que torna ainda mais misterioso a mensagem do romance de Joana Ruas.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8716: Notas de leitura (269): lutte armée en afrique, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)