
Queridos amigos,
Procurei atinar com a relevante importância do curso para capitães de Julho de 1970, em Mafra, não terei sido muito bem sucedido. O autor gaba-se de como estes capitães milicianos, em muitos casos ardorosos, entusiastas e valentes, podiam ter contribuído para mudar o curso da guerra, era um sangue novo que foi recusado pelos muitos interesses enquistados dos oficiais do quadro permanente, que neste relato romanceado são, regra geral, tratados a baixo de cão. Seria bom ouvir a opinião daqueles que, à época (entre 1970 e 1974) tenham vivido a incorporação, a guerra em África e depois a rejeição dos oficiais do quadro permanente.
Um abraço do
Mário
Milicianos, os piões das nicas
Beja Santos
Em Julho de 1970, cinco dezenas de cidadãos, com idades compreendidas entre os 27 e os 35 anos, e com formação académica superior, foram convocados pelo Ministério do Exército para se apresentarem em Mafra, na Escola Prática de Infantaria. Estes adultos tinham em comum coisas como estas: havia cumprido já o serviço militar obrigatório, estavam numa fase ascendente das suas carreiras profissionais e não eram propriamente aliados do regime. Receberam quatro meses de formação, foram promovidos a capitão e deram-lhes o comando de Companhia, numa das três frentes de combate. Este é o ponto de partida do relato romanceado “Milicianos, os peões das nicas”, por Rui Neves da Silva (Prefácio, 2007).
Com o passar dos anos e o agravar da guerra, tornou-se indispensável o recurso generalizado a estes capitães milicianos para suprir a falta de oficiais do quadro no comando de Companhias. Durante os primeiros anos, eram oficiais do quadro os chamados, e os alferes, seus subordinados, eram milicianos. A narrativa centra-se no papel que eles desempenharam, a contragosto dos oficiais do quadro permanente. São cerca de 700 páginas de um relato que não esconde o excesso, tanto na linguagem rebuscada como na animosidade a muitas figuras do quadro permanente, isto numa atmosfera em que o vinho a mais, a cartilha de Marialva e a solidariedade são omnipresentes. É uma narrativa composta por três livros: a Escola Prática de Infantaria é apresentada como uma fábrica de oficiais; a guerra como uma fábrica de heróis; e a revolução do 25 de Abril uma fábrica de equívocos. Esses capitães milicianos são apresentados como piões das nicas, numa daquelas diatribes carregadas de gongorismo o autor levanta o véu do conflito latente entre o quadro permanente e os milicianos: “Entre os diversos processos de tirar partido do jogo do pião há um que exige dos participantes um forte instinto destrutivo; trata-se de, lançado o pião, procurar não só que ele gire rápido e de forma equilibrada, mas também que, ao chegar ao solo, acerte do pião do adversário que por sorteio jogou primeiro. Acertando, o vencedor ganha o direito de, com o seu pião, nicar o pião do vencido; ou seja, espetar-lhe através de sucessivos golpes o espigão de ferro na zona mais carnuda e frágil, junto à pequena saliência onde o cordel é preso no acto de lançamento”. E, mais adiante, o tenente miliciano diz a um tenente-coronel: “Neste jogo há um processo de o nosso pião perdedor, ou ganhador, não sofrer o menor dano, que é o de um jogador ter um pião bem equilibrado para lançar, um outro de ponta de ferro bem afiada para escavacar o do adversário… e um terceiro, de ponta gasta e de corpo cheio de lanhos, para levar com as nicas. Senhor tenente-coronel, nesta maldita guerra nós somos os piões que levam com as nicas”.
O autor argumenta que estes tenentes milicianos tiveram necessidade de ser exigentes consigo próprios. E para que não haja equívoco sobre a carga autobiográfica, Rui Neves da Silva esclarece: “Foi em Angola que combati. No Leste e no Norte. Orgulho-me de ter feito parte do único Exército do mundo que venceu uma guerra subversiva. Quando saí desta província ultramarina os três movimentos independentistas estavam de rastos”. O leitor é logo emerso no Convento de Mafra, o lançamento das hostilidades é dado pela pergunta do miliciano a um oficial superior: o que vão vossemecês fazer quando a merda da guerra acabar? Depois o autor aprimora-se a identificar a proveniência destes tenentes, como eles se relacionam entre si, as tascas e restaurantes onde se encontram, os engates, as bebedeiras, as zaragatas, as peripécias da instrução, a ansiedade das suas famílias. Quando há palestras, são inevitáveis as ferroadas políticas, os oficiais do quadro permanente são confrontados com a abertura inevitável de diferentes áreas de comando aos milicianos. Há também o diagnóstico do quadro mental e político de cada um, tudo é superado pela franca camaradagem. Alguns deles irão frequentar o Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego e depois colocados nas Unidades de onde partirão para a guerra, à frente da respectiva Companhia.
Partem todos para a guerra, o epicentro narrativo será Angola, Guiné e Moçambique merecerão igualmente referências, praticamente anódinas e desambientadas. Marcelino, filho de D. Diogo Fermões de Pimentel, parte para Bissum, Daniel Cabrita fica em Bissau. São apontamentos frágeis, ao contrário de tudo quanto é escrito sobre Angola, é um desequilíbrio de que toda a obra se ressente, terá faltado investigação que permitisse dar quadros impressivos e ajustados ao que ele descreve sobre o Leste e Norte de Angola. Vão surgindo as baixas, os sinistros, os capitães mantêm-se em contacto entre si e toda a desconfiança quanto ao quadro permanente jamais abranda. Sensivelmente a partir de Março de 1973, os capitães milicianos da tal incorporação de Julho de 1970 começam a regressar. Marcelino tinha morrido heroicamente em combate.
E chegámos ao período revolucionário, o autor descreve minuciosamente a legislação do ministro Sá Viana Rebelo e o descontentamento que ela provocou, como irão ficar acirradas as relações entre os oficiais preparados na Academia Militar e aqueles que o regime de Marcello Caetano pretende que ingressem no quadro especial de oficiais. É deste ângulo que o autor parte para uma crítica demolidora aos oficiais do quadro que confundiram uma reivindicação com as obrigações que deviam ter mantido com ética militar. O MFA, nesta lógica, foi uma maneira de esses oficiais do quadro terem fugido à competitividade com aqueles que tinham ardor e entusiasmo em combater. Esses oficiais foram politicamente manipulados, os comunistas e a extrema-esquerda. Os piões das nicas descobrem o logro em que caíram. Um mestiço que fugira do MPLA e que desertara do Exército português irá abater um oficial miliciano condecorado no dia 25 de Novembro. Aqui termina a narrativa romanceada e dá-se como demonstrado o nefando papel dos militares de carreira em tudo terem feito para impedir os capitães milicianos para não terem sido compensados com igual estatuto ao seu.
Não se percebe exactamente o que levou Rui Neves da Silva a escrever este relato que ele classifica como história romanceada de um punhado de homens que se assumiram como testemunhas de eventos que militares envolvidos na revolução dos cravos e historiadores teimam em calar ou desvirtuar. Não se percebe a dimensão desta conspiração de silêncio e pasma o silêncio do autor quanto ao alferes e tenentes milicianos que, segundo os historiadores, tiveram um papel fundamental na preparação das condições psicológicas que contribuíram para os oficiais do quadro terem chegado à conclusão que todo aquele esforço de guerra era insano na ausência de uma resposta política, quando não se antevia qualquer solução militar, pelo menos da Guiné e em Moçambique.
____________
Nota de CV:
Vd.- último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)