1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 4 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (33)
O Grupo do Cifra
Perdoem lá, mas este texto é um pouco mais longo, pois o Cifra
quer apresentar-vos as personagens que o acompanharam durante
dois anos neste conflito, em que esteve envolvido, sem nunca ter
dado um tiro, e para ele uma granada, era um bloco de ferro que
o Curvas, alto e refilão às vezes
carregava no bolso.
O Cifra tem
fotografias de alguns, mas como
devem compreender, não as pode
publicar, pois não sabe se estão
vivos, o seu estado de saúde, ou o
seu estado social, portanto não
quer de maneira alguma ferir a sua
muito digna personalidade, oxalá
estejam vivos, leiam estes textos
e se retratem nestas personagens,
pois foram os seus companheiros,
os seus “heróis”, dos quais guarda
as suas imagens, no fundo do seu
coração, e o acompanharam em
momentos de angústia, amargura,
também com muitos sorrisos e às vezes até chorando, durante o
tempo em que esteve neste conflito. Esta é a homenagem que lhe
presta. Portanto cá vai, com a vossa também muito digna
compreensão.
O Setúbal, para o Cifra, era mais do que o
companheiro, o militar, o
guerreiro ou o amigo, era
qualquer coisa como aquele
“garoto”, que todos nós tivemos
na infância, que vivia na porta
ao lado da nossa casa, na mesma
rua ou na mesma aldeia, com quem
brincávamos, jogávamos à
berlinda, à bola, roubávamos
fruta do quintal do vizinho, às
vezes zangávamo-nos e andávamos
à porrada, mas sempre amigos.
Sim, era isso tudo, mas adultos e confidentes, pois o Setúbal,
contava coisas ao Cifra da sua vida privada com aquela que iria
ser a sua esposa amada, e que às vezes o Cifra não queria ouvir
e lhe dizia:
- Essas coisas não se devem contar, são coisas tuas e da tua
noiva, pensa nelas, nesses momentos que são única e simplesmente
vossos, e que ao pensar
neles, mais faz fortificar
o desejo de a tornar a ver,
e deste modo, não a vais
esquecer nunca, e o amor
entre vocês, cada vez vai
ser maior.
Ele ao ouvir isto,
começava a chorar, mas ao
fim de algum tempo, voltava
ao normal, e com a chegada
até eles do Curvas, alto e
refilão, que vocês já
conhecem a sua
desafortunada história, de
relatos anteriores, que foi
abandonado pela sua mãe, que andava “na vida”, ainda criança, e
viveu “ao Deus dará”, como é costume dizer-se, sem nunca ter um
carinho ou alguém que lhe limpasse o ranho do nariz, e sem
nunca ter conhecido a palavra “mãe” ou a palavra “família”,
passando quase a sua adolescência em escaramuças, negócios
ilícitos e em esquadras e cadeias da capital, a perguntar:
- O que é que passa com este agora? Eu não disse, que
depois que veio de férias e viu a noiva, veio um pouco
“amaricado?
Mas adiante, o Cifra, o Setúbal
e o Curvas, alto e refilão, eram
amigos e faziam um grupo unido, era
uma espécie de “Trempe”, era um
“Triângulo”, a quem outros
companheiros, às vezes queriam
modificar, como por exemplo, o
Mister Hóstia, a todo o momento,
nunca perdendo nenhuma oportunidade
de tentar convertê-los em bons
cristãos, dizendo-lhes:
- Toda a vossa força unida
tem que estar ao serviço de Deus,
rezem e ajoelhem-se perante Jesus,
que é o vosso Salvador, no lugar de
andarem sempre a fumar e a beber, só pensarem no mal e nas
“bajudas”, que vão ser a vossa perdição.
Como isto não chegasse, o
Pastilhas, sempre que via qualquer um
deste grupo aproximar-se da
enfermaria, logo ia esconder o frasco
do álcool, e dizia:
- Bêbados, vão morrer queimados
por dentro e eu tenho muito prazer em
ir ao vosso funeral.
Claro que o Curvas, alto e refilão,
logo lhe respondia, naquela linguagem
porca e agressiva:
- Oh pastilhas, deixa-te merdas, pois nós sabemos que às
vezes ao fim da tarde, essas faces rosadas na cara, não são só
do sol e o teu nariz às vezes também vermelho não engana, o que
tu queres é o álcool só para ti.
O Furriel Miliciano, era tratado por este nome, porque era o
seu posto militar, mas no
tratamento, era simples, amigo,
parecendo mais um companheiro,
soldado combatente e sofredor. Do
seu grupo de combate fazia parte
entre outros o Trinta e Seis, o
Marafado, o Setúbal, o Mister
Hóstia e o Curvas, alto e
refilão, e diziam que esse sim,
era o líder. Quando saíam em
patrulha, ele gostava do grupo,
convivia, pois via neles uns
“gajos fixes”, que fumavam
cigarros feitos à mão, e sempre
prontos para uma farra.
O Arroz com Pão tinha as suas queixas, mas passageiras, e
no fundo, tirando o roubo do
pão e de algum vinho, até
gostava deles, pois às vezes
ajudavam a descascar
batatas, mas só em última
necessidade, mesmo quando
não houvesse mais ninguém,
pois estragavam mais batatas
do que o normal e queriam
sempre a caneca do café
cheia de vinho, às vezes
dizendo:
- Fora daqui, vai-te
lucro que me dás perca!
O Trinta e Seis, um soldado
telegrafista, era um homem
adulto no seu proceder, até
responsável de mais para a sua
idade, tinha algum poder de
influência sobre o Curvas, alto
e refilão, que o ouvia e só a
ele obedecia, sem refilices.
Diziam que quando saíam em
patrulha, o Trinta e Seis ia
sempre junto do Curvas, alto e
refilão, e além de se protegerem
um ao outro, o Trinta e Seis,
controlava-o nas suas, por vezes,
descontroláveis acções.
O Marafado, no
princípio era alegre,
gostava de vinho, e até
cantava uns fados
desafinados, mas depois
que presenciou uma cena
de uns prisioneiros
mortos, onde os seus
corpos foram queimados e
enterrados numa vala,
nunca mais foi o mesmo
homem, para o final era
um homem calado e
marcado pela guerra, raras vezes se juntava, passava o tempo
ouvindo música, o relato do seu Benfica e notícias no seu rádio
portátil.
O sargento da messe compreendia o grupo, facilitava o
acesso ao bar dos sargentos, talvez porque precisasse da ajuda
do Cifra nas contas, pois era este que lhas acertava
todos os meses, pois tinham sempre que terminar em
zero, sem lucros nem perdas, e ele não era lá muito bom com
algarismos, até diziam que era “burro”, passe o termo, pois era
uma excelente pessoa, pelo menos para o
Cifra.
O Comandante não queria que lhe fizessem
a saudação, talvez para não saberem que era
comandante e que dava ordens que matavam
pessoas, dizia que estavam todos no mesmo
barco mas
com
diferentes
responsabilidades, o Cifra mais
tarde veio a saber que era um
apaixonado pela arte de
fotografar, queria respeito, às
vezes quando as coisas não
corriam bem ficava com cara de
Comandante, e quase todos o
evitavam.
Também havia as filhas do
Libanês que eram importantes para os militares estacionados em
Mansoa, havia até quem dissesse que elas eram as causadoras de
os militares tomarem banho
mais frequentes vezes,
vestirem roupa lavada e
fazerem algumas vezes a
barba, e pentearem o seu
cabelo, portanto tinham
mais poder e influência nos
militares do que os seus
superiores, que podiam
dizer mil vezes para terem
mais higiene pessoal, que
a esses mesmos militares não
lhes importava qualquer
ordem nesse sentido, e que
acima de tudo enchiam a
igreja de perfume exótico, também se dizia que se não fossem
elas a igreja talvez, em alguns dias, ficasse vazia. Talvez não
fosse verdade.
Havia o “Life Boy”, de quem ainda não falei, mas irei falar
lá mais para a frente, que
veio para o aquartelamento
algum tempo depois, que
parecia um chinês, já sei que
vão dizer que só faltava o
“chinês”, e tinha uma costela
de “Libanês”, pois passado
pouco tempo de ter chegado ao
aquartelamento, já se andava
a fazer a uma das filhas do
Libanês, era um pequeno
comerciante dentro do
aquartelamento.
A menina Teresa era quem
escrevia as cartas que a mãe
Joana mandava ao Cifra, tinha alguma influência nas decisões da
família do Cifra e as
referidas cartas tinham
sempre o seu aval final,
portanto quando o Cifra
lia uma carta da mãe
Joana, mais de metade
eram opiniões dela, que vai ser
protagonista de uma
história um pouco
bizarra.
Só havia o tal Major
das Operações Especiais,
o tal que deu uma bofetada, que mais parecia um murro, na cara
de um guerrilheiro fardado, com as mãos amarradas, e que caiu no
chão desamparado, por lhe ter dito que queria ser tratado como
prisioneiro de guerra. O apelido do Major era Sardinha,
portanto o Major Sardinha logo foi rebaptizado de Major
“Petinga”. Queria a saudação sempre que com ele nos
cruzávamos, o Cifra pensava que devia de ter sido promovido há
pouco tempo, pois
andava sempre vestido
de camuflado, com um
cinto, onde trazia
uma pistola, os
galões novos e
reluzentes nos
ombros, as botas
sempre engraxadas, e
como no comando a que
o Cifra pertencia,
tirando militares
condutores auto, era
tudo pessoal de
gabinetes, que não
deviam de saber
acertar com um tiro
duas vezes no mesmo sítio, alguns nunca tinham pegado numa G-3
nem nunca tinham tirado uma cavilha a uma granada, aquele Major
vestido assim e com aquelas atitudes, fazia rir o pessoal,
portanto, com tanto exagero, tornava-se ridículo.
A apresentação das personagens vai já terminar à frente. Um dia, este grupo do Cifra, do Setúbal e do Curvas, alto e
refilão, mais o Trinta e Seis, regressando da sede do Clube de
Futebol, juntos, passa pelo tal Major, que logo diz, com uma
cara séria, mostrando autoridade:
- Vocês não podem andar assim em grupos, portanto a partir
de agora separem-se, só podem andar dois militares juntos.
Nesse momento, o tal Major estava na companhia de mais dois
ou três militares graduados, e o Curvas, alto e refilão, como
era seu costume, pois não recebia ordens, logo lhe respondeu,
colocando-se na posição de sentido, com a sua medalha Cruz de
Guerra ao peito, fazendo o tal Major “Petinga”, também colocar-se
na mesma posição, dizendo com a maior das calmas:
- Essa lei é só para nós ou para todas as patentes militares?
O Major “Petinga”, que era muito mais baixo na estatura,
virou os olhos para o chão e respondeu:
- Vão lá embora, por esta passam.
Pouco depois, o Curvas, alto e refilão, quando junto do seu
grupo, disse:
- Gostava de apanhar este filho da p..., lá no mato, debaixo
de uma emboscada dos guerrilheiros, pois deixava-o lá sozinho.
Passado uns dias, quando o Cifra foi entregar uma mensagem
decifrada no comando, o major “Petinga”, pergunta ao Cifra:
- Ouve lá, sabes se aquele soldado, a que chamam Curvas,
alto e refilão, já matou alguém? Ele olhou-me com uma cara!
Pronto, já ficaram a conhecer esta “cambada”, que se forem
simpáticos, pacientes e se também tiverem um pouco de heróis
combatentes, mas mesmo muito pacientes, ao ponto de terem
pachorra e resistência para estarem tanto tempo sentados e ler
até ao fim estes textos, que às vezes a brincar, conta a
verdade das situações de dor, sofrimento, angústia e também de
algumas ocasiões menos más, não muitas, que todos nós vivemos
nessa maldita guerra, na então província da Guiné.
Oh meu Deus, só agora é que vi, o texto é mesmo longo,
desculpem lá!
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)